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Missão

Conheci um médico dedicado há alguns anos que me contou que resolveu estudar medicina pelo estímulo indireto de sua professora de biologia do segundo grau. A descrição apaixonada e encantadora do surgimento e da estruturação da vida no planeta que ela trazia às suas aulas o aproximaram das ciências biológicas. Sua paixão pela fisiologia humana, pela etologia (o estudo do comportamento animal) e pela botânica enchia de entusiasmo os estudantes. Esta anônima professora de biologia foi – sem o saber – responsável pela carreira de um médico, e as vidas por ele modificadas carregam um pouco de sua paixão. Através da perspectiva cativante dessa humilde professora, o futuro médico teve o estímulo necessário para dar início à sua missão de vida.

É por esta via que eu entendo a “espiritualidade”. Penso que a crença em algo para além do mundo físico “denso” não é uma questão que possa ser racionalmente debatida, pois sobre este tema não me parecem haver evidências suficientes para posturas assertivas e peremptórias. Assim, prefiro entender tal vinculação com o mundo espiritual como essencial e primitiva, algo que tem a ver com como sentimos o mundo, e não como o pensamos. A partir deste sentimento é que o sujeito estabelece sua visão teleológica da estrutura íntima do universo, suas causas e consequências.

Dito isto, eu creio que todos nós nascemos com uma missão. Chegamos a esse mundo para cumprir tarefas, que vão produzir melhorias em nossa compreensão do mundo e da natureza última do universo. Entretanto, não me refiro a forma grandiloquente ou pedante de definir a palavra “missão” que normalmente usamos. Para mim, a “missão” trata de um projeto subjetivo, pessoal e ligado às dificuldades específicas de cada sujeito. Isso determina que o sucesso de uma existência esteja nessa possibilidade pessoal de crescimento, e não nos resultados econômicos, intelectuais ou políticos percebidos. Da mesma forma, não acredito que o sujeito tenha compromissos específicos e prévios antes de nascer; a missão do sujeito aparece nas circunstâncias e nos contextos de cada vida e de cada sujeito, e pode se modificar quantas vezes forem necessárias. Pode trocar os caminhos, mudar as barreiras a enfrentar, modificar os grandes objetivos e subverter a ordem das etapas, mas o fim será sempre adquirir experiência e crescer.

Por esta forma de ver cada etapa de vida, a missão vai sendo construída no labor diário, e pode ser tanto cuidar da sua mãe, educar seus filhos, proteger um marido, acalentar seus parentes, ajudar sua mulher e todas as ações humanas que nos levam para longe do egoísmo e da ignorância. Pode ser também comandar um país, uma cidade ou um Império, mas também dedicar-se a tarefas humildes como aquelas de uma simples professora de biologia. É importante lembrar que as grandes tarefas do planeta só foram possíveis graças ao trabalho anônimo de milhões de pessoas, cada a delas em sua missão pessoal, lutando solitariamente para serem melhores do que quando aqui chegaram.

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Memórias do Homem de Vidro – 16

Asfalto

Tentei fazer a ligação do meu mouse no computador novo, mas percebi que a co­nexão era inadequada. Inútil insistir. Com as mãos na cintura, eu vislumbrava o ventre cibernético do computador aberto à minha frente. Suas entranhas expostas não me traziam esperanças, mas me ofereciam a ilusão ingênua de controlar seu funcionamento. A conclusão era dura e inevitável: meu dispositivo era PS2, e a única porta acessível era uma serial. Eu necessitava de um adaptador, e talvez pudesse encontrá-lo no shopping. Ok, pensei eu, já conformado com o meu passeio compulsório. Aproveito e visito uma livraria. Quem sabe encontro alguma novidade, ou pelo menos leio o meu livro enquanto tomo um café expresso. Tento acordar Bebel para me fazer com­panhia, mas a festa da noite anterior a mantinha agarrada aos braços de Morfeu. Mais tarde agradeci por ela estar presa a este sono de pedra.

A tarde fria já mostrava seus estertores, colorindo de púrpura o céu da cidade. O vento cantava uma fria melodia na fresta aberta da janela do carro, enquanto os faróis dos automóveis lentamente iam se acendendo, produzindo uma dissonância ofuscante de luzes. O rádio é a companhia que me resta, e acompanho o som das músicas com minha voz desafinada. “E é só você que tem a cura do meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Renato Russo fala da saudade daquilo que ainda não vivera, enquanto eu forço a vista para po­der enxergar a mudança nas tonalidades da rua. Penso na força de um ídolo que se foi, e que, ao morrer, tinha a mesma idade que eu. Novo, pensei. Vítima do desregramento que atinge os mais sensíveis, ainda jovem sucumbiu a um turbi­lhão de paixões avassaladoras. Sua poesia ainda encanta os “meninos e meninas” da geração que nem chegou a conhecer.

Meu caminho em direção ao shopping necessariamente passava pelo estádio de futebol. Aos poucos, vislumbro o topo das torres imensas que guardam os holofo­tes, e sua visão me trouxe à memória minha velha tese de que os estádios tentam reproduzir a estrutura dos castelos medievais, em uma intrigante fidelidade à ar­quitetura das cidadelas. O fosso, as torres sentinelas, a ponte levadiça, os guar­das, o povo alucinado e os exércitos digladiantes: tudo isso me aparecia de forma evidente nas partidas de futebol. Ali os clãs se reuniam para as batalhas, que o processo civilizatório sublimou nos jogos esportivos. Entretanto, o calor dos em­bates futebolísticos frequentemente produzia em mim a memória corpórea de um tempo passado nem tão distante, em que os “gols” eram muito mais sangrentos e as vitórias, realmente “arrasadoras”. Felizmente nossa impulsividade testosterô­nica e guerreira já havia encontrado outras formas mais sutis de expressão.

Quase em frente à curva do estádio, a intuição me fez mudar de rumo. Empurrada por uma vontade repentina, minha mão escorregou no volante e decidi não con­tornar o velho campo de futebol pela esquerda, mas manter uma linha reta e se­guir em frente para somente mais adiante virar em direção ao shopping. Poucos minutos depois, eu ainda questionaria as razões pelas quais tomamos decisões fortuitas, mas que posteriormente nos instigam a imaginação por guardarem uma causalidade aparentemente inexplicável. Ao passar o semáforo, percebi uma aglomeração próxima a um “bailão”, que é uma espécie de boate gauchesca muito ao gosto do povo. Uma pequena multidão acotovelava-se em frente a um posto de gasolina. Diminuí a marcha e me aproxi­mei para ver do que se tratava. Havia um popular, não um policial ou agente de trânsito, a pedir que os carros desviassem. Logo percebi que as pessoas se amontoavam em torno de um corpo caído ao chão. A ausência de agentes policiais me alertou para o fato de que o acidente devia ter ocorrido há alguns minutos apenas, e sequer houvera tempo para que alguma autoridade fosse acionada. Os transeuntes se agrupavam em torno da pessoa caída, me impedindo de ver detalhes do que havia acontecido. Abri o vidro do carona e gritei para o senhor que, com um lenço, fazia sinal para os carros que trafegavam:

— Amigo, eu sou médico. Alguém aí precisa de auxílio?

Ele curvou o corpo para frente, e forçou a vista para me enxergar dentro do carro. Ajustou os óculos com a mão que não segurava o lenço, ainda balançante, e res­pondeu incontinenti:

—- O senhor é médico? Sim, acho que precisamos. Houve um atropelamento. — Voltou-se para trás e, dirigindo-se à turba, gritou:

— Afastem-se. Este senhor é médico. Abram espaço!

Manobro meu carro no posto de gasolina em frente. Corro em direção à multidão, mas ainda preciso avisar: “Sou médico, deixem-me chegar perto”. Uma mulher jazia imóvel no asfalto. Minha experiência com atendimentos na rua é estranha. Parece que as coisas sempre acontecem ao meu lado. Já fui socorrista de muitos acidentes de carro e já auxiliei inúmeras pessoas vítimas do trânsito caótico. Parece uma imantação, ou talvez o fato de que aparentemente eu preciso me aproximar dos acidentes. Pareço ter uma vocação para “anjo da guarda”, o que talvez seja uma boa oportunidade de emprego depois que eu partir “desta para uma melhor”.

Desta vez não foi diferente de várias outras. O acidente havia ocorrido alguns mi­nutos atrás apenas. Depois de esbarrar nos indefectíveis curiosos, chego ao lado da pessoa que estava caída. Ajoelho-me ao lado do corpo e sinto a dureza do asfalto contra minhas rótulas. Instintivamente coloco uma mão no pulso e a outra sobre sua testa. Uma mulher, passando dos 50 anos. Vestia roupas simples, mas os sapatos bonitos e reluzen­tes pareciam novos. Sua calça estava rasgada próximo ao joelho, por onde se po­dia observar o amarelo subcutâneo de um profundo corte. Havia uma fratura ex­posta na altura do fêmur distal, e espículas ósseas agrediam as bordas da pele. Minha visão fixou-se na perna da mulher, à procura de sangue, mas não havia nenhum sinal. Como poderia um corte tão profundo, associado a uma fratura, não sangrar?

Pensei no pior. Olhei sua cabeça que, de lado, parecia tentar escutar o negro as­falto. Uma poça de sangue coloria de rubro o chão escuro. Sem movimentá-la, abri bem seus olhos e não percebi nenhuma reação das pupilas, que se encontra­vam imóveis. A dobra de sua orelha estava azulada e fria, mas o resto do seu corpo ainda mantinha o calor. Tinha uma extensa lesão por abrasão nas costas, de um vermelho intenso. Seus olhos, agora semiabertos, pareciam querer olhar um ponto qualquer do outro lado da rua. O som dos automóveis passava por entre as pernas das pessoas, e o círculo ao redor do corpo ia se tornando menor. Por entres os espectros dos curiosos amontoados ao meu redor, eu podia ver os vi­dros dos carros se abrindo para que cabeças fossem impulsionadas para fora, na ânsia de verem do que se tratava. Ao seu lado, uma senhora me falava:

— Ela é mãe da doutora Fulana, que é ginecologista. O genro dela é o doutor Fu­lano. O senhor os conhece?

Os médicos a quem ela se referia eram meus colegas. Sua filha era da mesma especialidade que eu, curiosa coincidência. O genro, outra coincidência, tinha um dos nomes igual ao meu. Não era meu amigo, mas sabe-se lá quantas vezes já havíamos nos cruzado nas galerias dos hospitais. A filha era provavelmente mais jovem do que eu, porque não reconheci seu nome.

— Ela está bem doutor? Estávamos atravessando a rua quando esta motocicleta apareceu de algum lugar. Ela não viu. Como ela está, doutor?

Não havia nenhum movimento respiratório. As pupilas estavam fixas, os olhos imóveis. Parecia ainda procurar algo do outro lado da rua, fixada em um ponto perdido entre a calçada e o horizonte purpúreo. Botei mais uma vez minha mão no seu pescoço na esperança de encontrar pulso carotídeo. Nada. Nem um mínimo sinal de vida. Olho para a amiga, que ao meu lado chora, e vejo nos seus olhos uma súplica. Pede uma esperança, uma chance. É uma bela mulher, passada também dos 50 anos. Está vestida com um casaco de couro mar­rom claro, e um batom vermelho vivo cobre seus lábios.

— Sua amiga morreu. Não há um sinal qualquer de vida. O trauma na cabeça, ou alguma lesão interna, deve ter sido o causador. Eu sinto muito.

Ela abraça-se a mim e chora. Seu soluço é baixo, mas sua dor é algo que sinto na pele. Os curiosos se aproximam mais ainda, e os ônibus diminuem a marcha pró­ximo ao acidente para poder democraticamente saciar a sede das pessoas pelos espetáculos mórbidos. Pessoas me perguntam se ela ainda está viva, e eu digo que devemos esperar a ambulância. O motoqueiro se aproxima e vejo espanto na sua expressão. Parece não acreditar no que vê. Seu olhar procura uma reação na mulher, mas esta não se move. A amiga continua a falar, tentando extravasar sua ansiedade. Diz que não conse­gue ligar para a filha da amiga, mas penso que ela na verdade estava sem cora­gem para isso. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que dar uma notícia como essa. Continuo a olhar a pobre senhora, cujo corpo rapidamente parece esfriar junto com a noite outonal que se aproxima.

— Ela saiu para dançar. Estava atravessando a rua para uma aula de dança de salão. Ela está bem, doutor?

Quem me dirigiu a palavra foi um senhor gordo com uma camisa vermelha, já passado dos 70 anos. Talvez fosse um colega de aula; quem sabe um antigo amigo. Finalmente consigo entender para onde a mulher parecia olhar. Do outro lado da avenida um cartaz jazia, pendurado à parede de cimento cru: “Aulas de Dança de Salão”. Seu olhar continuava fixado no cartaz, como que a negar o que o destino lhe impusera. Apoiei a mão no ombro do senhor de camisa vermelha e disse-lhe em voz baixa:

— Ela faleceu, meu amigo. Não há mais nada a fazer.

Minha voz saiu como um sussurro proposital, para não criar confusão. Ele apenas falou “Meu Deus…”. Pedi que trouxesse do bar que existe em frente uma toalha para cobrir a senhora. Não conseguia aceitar os olhares dos passantes, que teimavam em chegar bem perto como que para ver a morte o mais próximo possível. Curvei-me mais uma vez em sua direção. Coloquei minha mão no seu rosto e fechei-lhe as pálpebras, tentando entender o que se passou. Uma pessoa sai de casa para uma aula de dança. Seus sapatos novos e reluzen­tes me diziam que ela era uma mulher vaidosa, caprichosa. Seu cabelo castanho pintado tentava disfarçar os fios brancos que teimavam em aparecer bem próxi­mos à raiz. Quem sabe estava procurando um namorado, uma companhia, ou apenas diversão e risadas marotas com as antigas amigas. Encontrou a morte ao atravessar a rua.

A fragilidade da vida é o que lhe empresta grandeza e fascínio. O fato de que po­demos nos retirar bruscamente dessa existência é o que nos faz pensar que cada momento é único, porque irreprodutível, e que a cada instante travamos uma luta contra nossa finitude. Com minha mão em sua face, tentei mentalizar sua passagem. Imaginei o cortejo espiritual que ao nosso lado deveria estar se realizando. Certamente ela teve em sua vida amigos, amores, familiares e pessoas que, já tendo passado para o lado de lá, a estariam auxiliando. Provavelmente ao meu lado haveria algum tipo de “Serviço de Recepção e Auxílio”, para ajudar aqueles que estavam regressando prematuramente à casa espiritual. Meu futuro emprego, pensei eu. Passei essa vida inteira recebendo os que vêm do outro lado, por que haveria de ser diferente depois de morrer?

Chegam os agentes de trânsito. Com suas “caixinhas falantes”, mandam informa­ções ao Pronto-Socorro. Apresento-me a um deles e explico que a mulher acabou de falecer. Ele transmite a informação para a central, mas confirma que a ambu­lância deve se apressar. Falo com a mulher da central e digo que a mulher não mais respirava, e que o caso era realmente fatal.

Minutos após, a ambulância chega, fazendo alarde. A mulher no asfalto jaz co­berta com a toalha do bar, e o paramédico apenas confirma minhas informações. Nada mais há para fazer.

Levanto-me e abraço mais uma vez a amiga. Pego um papel e escrevo meu nome, para que ela entregue à filha, minha colega ginecologista. Talvez ela qui­sesse perguntar alguma coisa, ou saber como estava sua mãe quando veio a fale­cer. Afasto-me da multidão e olho para o corpo miúdo que começa a ser carregado para a ambulância. Digo mentalmente adeus, pedindo para que ela possa ser bem recebida no lugar para onde está indo. Entro no meu carro e sigo meu caminho. Ligo o rádio. A lembrança de V. instantaneamente me vem à recordação.

“Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”, grita Belchior.

Ela também saiu de casa para uma aula de dança. Queria bailar no ritmo de uma canção há milênios cantada. Queria passar pelo seu rito, sem ser obstruída por uma sociedade que recrimina a autonomia e a liberdade. V. sabia que o caminho da libertação passa pela coragem e pelo enfrentamento. Morreu ao atravessar sua última avenida, atropelada pela inevitabilidade de uma doença imprevisível e im­possível de prevenir e abatida pela infecção contraída no que deveria ser o “san­tuário da antissepsia”. Logo ela, que tanto tentou evitar uma fatalidade ao procurar na humanização do seu parto a forma mais segura de lidar com o evento.

Dobro finalmente em direção ao meu destino. As imagens se multiplicam na minha mente, e eu continuo a pensar na morte e seus significados. A morte é o tabu-mor da medicina. É a maldita palavra não-dita. “Palavras são energia”, já dizia minha mãe. Nós, médicos, não pronunciamos essa palavra de cinco letras, talvez para afastar de nós a sua aura temida. Faz parte da nossa mi­lenar herança mística, e dos rituais que cercam nossa profissão. Não falamos feto morto, falamos “FM”; não nos reportamos ao câncer, e sim ao “CA”, e mesmo nós, imitando os pacientes, falamos das doenças malignas como “aquela doença”. Nossa ojeriza à morte, e ao fim determinado por ela, só pode ser compreendida se adentrarmos a sutileza dos alicerces que sustentam a medicina. Tentamos desviar da boca a palavra amarga, para que não chegue aos corações e mentes a marca indelével da nossa falibilidade. Morte em medicina significa o fracasso último de nosso intento fantasioso de sobrepujar a natureza e seus ditames.

Morrer é tão da vida quanto nascer, e enquanto não pudermos entender as pontas da existência como um tubo que se fecha, jamais seremos capazes de sobrepujar a dor de partir. Zeza ainda ontem me falava da dor de nascer, e deixar para trás aqueles que tanto nos amam e a quem deixamos órfãos de nossa presença espiritual. Também do lado de lá deve haver saudade, senão por que sorririam ao nos ver regressar aqueles que já se foram? Seria o humano fadado a um eterno acenar de cais? Seria a criatura de Deus um eterno suplicante de amores deixados para trás, na longínqua memória de tempos e paixões já idas? Seria a completude da presença constante um idílio mentiroso, tão falso quanto aquele em que a princesa e seu escolhido “viveram felizes para o sempre”? Será a existência maior marcada, em essência, pela fatalidade da partida, a sombra da despedida e a dor de um olhar a perder-se? “Viver é preparar-se para morrer”, diria Sócrates. Sem o desapego às coisas e às pessoas, nossa passagem se torna um mar de aflição e tormento. Viver é prepa­rar-se para a separação, para a distância.

Maximilian uma vez me disse: “Se quiser trabalhar com a vida, entenda a morte. Morrer é o que confere à vida sua grandeza e significado. Esta se torna mais vali­osa quando mais frágil a reconhecemos.” Max era certeiro, e sabia o que era a dor de perder alguém. O destino é realmente surpreendente. Pergunto a mim mesmo qual o sentido disso tudo. O medo da resposta me fez aumentar o volume do rádio. Haverá uma razão para o sofrimento?

Volto para a realidade asfáltica do meu percurso em direção ao shopping e tento me preocupar com a peça faltante do computador, para assim afastar os pensa­mentos dolorosos que tomaram conta da minha mente. Sigo meu rumo olhando o rosto das pessoas nas calçadas. Escondido no carro, os passantes não percebem minha angústia e minha estupefação diante do patético da existência. Tenho ga­nas de baixar o vidro e gritar: “Hei, você aí parado. Você mesmo, na parada de ônibus, de camisa amarela. Podia ser você. Isso mesmo… podia ser você”. Desligo o rádio, e uma música da infância me vem à memória, tomando o lugar da balada romântica. Era uma música evangélica polifônica, à capella, tão ao gosto do meu pai. “Se a morte vier hoje o buscar, como está com seu Deus?”

E se ela viesse?

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Crime e Castigo

Hoje eu vi o vídeo do médico que teria dado um tapa na paciente em Manaus. Nada justifica uma agressão contra uma mulher em trabalho de parto e devemos cobrar que a violência obstétrica seja extirpada das salas de parto. Os hospitais continuam sendo as principais fontes de violência de gênero contra as mulheres e esse fato precisa ser denunciado.

Entretanto, neste caso em especial, o vídeo se presta muito mais para atacar a presença de acompanhantes em sala de parto do que para ser um libelo contra violência no parto. A presença de outra mulher na cena (a mãe?) ameaçando e constrangendo os profissionais e exigindo uma cesariana por puro despreparo emocional, é tudo que a corporação deseja para atacar nossas recentes conquistas, como a presença de acompanhantes de livre escolha.

Quem já trabalhou com parto em qualquer função – de doulas a obstetras, passando por anestesistas, enfermeiras, técnicas de enfermagem e neonatologistas – sabe como é tenso o momento que antecede o nascimento de uma criança. Ver uma familiar grosseiramente ameaçando a equipe de atenção é inadmissível. Ninguém consegue frieza e concentração para tomar decisões com este tipo de coação. Se há vilões nessa história podemos começar com a senhora que ameaça chamar a imprensa e tenta dar ordens para levar a paciente ao centro cirúrgico.

O que acontece depois é imperdoável, mas é possível ao menos tentar entender. O médico, diante da ameaça explícita da mulher na sala de parto, perde a cabeça e tem um gesto brusco e violento contra a paciente. Inadmissível e absurdo, mas é importante deixar claro que foi realizado após ter sido ameaçado, mesmo que isso jamais possa ser usado como desculpa.

Não tenho porque defender as atitudes desse profissional, o qual desconheço, até porque já me causa repulsa ver uma paciente parindo em posição de litotomia (deitada na cama) em pleno século XXI, um antifisiologismo anacrônico que, por si só, podia ser a causa principal pelo atraso do parto e o cansaço da mãe. Por outro lado, é impossível para qualquer parteiro trabalhar decentemente sob ameaças, ouvindo uma pessoa sem qualificação fazer “indicação de cirurgia” aos médicos presentes. Este foi o primeiro fato de gravidade que acabou produzindo todos os outros erros subsequentes.

Para humanizar o nascimento é fundamental também humanizar as famílias e garantir o respeito pelos profissionais, sem o qual cenas como esta se repetirão, infelizmente.

Não são só os médicos que precisam se humanizar. A sociedade que os forma e os sustenta também precisa beber na fonte da humanização. Médicos e sociedade não são instâncias separadas; são vasos comunicantes. A sociedade sempre tem os médicos que quer, assim como a polícia e os políticos que deseja. Quando me perguntam o porquê de tantas cesarianas abusivas podemos falar da formação tecnocrática dos profissionais, mas é bom dar uma ouvida atenta no discurso da “sogra” ameaçando os profissionais para entender como uma cesariana é, muitas vezes, o alívio ilusório de uma pressão indecente sobre os profissionais.

De nada adianta humanizar médicos e enfermeiras se estes estiverem inseridos em uma sociedade que cultua o mito escatológico da tecnologia redentora que se coloca acima da natureza.

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Ambrosia

Esta é uma história verídica, mas os nomes dos personagens foram trocados.

Conheci Ildo há muitos anos atrás quando fazia meus primeiros plantões como “interno” em um pronto Socorro da minha cidade. Ao contrário do Dr Emerson, meu colega das quartas-feiras, eu encontrava o Ildo apenas nos plantões de fim de semana. Diferentemente do que acontecia com o Dr Emerson eu não precisava chamar Ildo de “doutor”, pois ele não chegava aos 30 anos de idade, o que era pouca diferença dos meus 20 anos recém feitos. Ele havia se formado há alguns poucos meses em uma faculdade do exterior e estava começando seu trabalho como médico pelo lugar mais divertido: um Pronto Socorro, cheio de estudantes, colegas jovens e histórias curiosas.

Nossos plantões eram muito divertidos, principalmente porque Ildo tinha uma forma jovial e curiosa de pensar. Era cheio de frases e bordões gauchescos, já que toda sua infância foi passada na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Era recém-casado com uma belíssima mulher que se chamava Angélica. Muitas vezes saíamos de um atendimento e fazíamos uma breve parada em sua casa, na parte antiga da cidade, para um breve café e uma rápida conversa. Eu me encantava com o charme e a beleza de Angélica, que sempre me perguntava como estava a faculdade e mandava lembranças para a minha namorada. Um casal aparentemente feliz e cheios de sonhos.

Uma tarde, num plantão no pronto-socorro, encontro Ildo absolutamente alterado. Não parava de sorrir e de falar alto. Parecia excitadíssimo com uma novidade. Quando seus colegas médicos se afastaram me aproximei e perguntei a razão de tanta alegria.

– Eu fui escolhido, Ric. Fui chamado. Acabo de receber o telegrama que tanto esperava. Vou para o Rio de Janeiro no mês que vem e vou estudar com o maior cirurgião plástico de todos os tempos: Dr Ivo Pitanguy!

Claro que tamanha alegria transbordou inevitavelmente para mim. Certamente que isso parecia ser algo fora do comum, uma oportunidade única de estudar cirurgia plástica com um dos mais renomados cirurgiões do mundo, conhecido até pelas pessoas que não são da área médica. Cumprimentei-o e desejei a ele a melhor das sortes. No nosso último plantão despedi-me de Angélica, sua linda esposa, e disse que sempre me lembraria deles como um casal maravilhoso, amigos do coração. Ela me abraçou e pediu que eu transmitisse à minha namorada um grande abraço, e que um dia queria conhecê-la. Ildo nunca mais voltou àquele pronto-socorro. Seu estágio de mais de um ano com o famoso professor fez com que ele retornasse para nossa cidade já ostentando um nome, uma carreira promissora e muitas promessas. Por intermédio de amigos médicos eu ficava sabendo de suas conquistas. Uma clínica de cirurgia com seu nome, o casamento que se mantinha sólido, a fama repentina, mas merecida. Parece que as coisas tinham funcionado da maneira como ele sempre desejou. O sucesso e a fortuna haviam sorrido para ele.

Aqui faço um recorte no tempo e costuro com nosso reencontro 25 anos depois daquela despedida afetuosa em sua casa, no último plantão de pronto-socorro que fizemos juntos. Eu deixava o hospital e estava parado à frente do elevador do quarto andar, depois de uma visita pós-parto. Olhava fixamente para a porta metálica esperando que ela se abrisse quando senti uma mão em meu ombro, seguida de uma expressão e um sotaque “gaudério” inconfundíveis.

– Mas e aí vivente, que tal?

Só um guasca de fora fala assim. Era Ildo, com seu costumeiro linguajar gauchesco.

– Ildo, disse eu, !! Como vai? Quanto tempo? O que fazes aqui?

Eu sabia que ele dificilmente estaria operando um paciente naquele hospital, já que era dono de uma clínica famosa de cirurgia plástica na cidade. Sua presença era no mínimo estranha, como alguém muito “chique” para estar em um hospital comum como aquele.

– Eu… bem, eu… vim visitar uma parente minha que está internada.

Seu titubeio não passou despercebido, mas não insisti na pergunta. Talvez não quisesse me dizer o que ela tinha, ou apenas julgou que não era um assunto importante para interromper um reencontro que ocorria depois de um quarto de século. Ildo continuava um homem muito bonito. Estava bem mais magro do que quando o conheci, mas guardava uma nobreza facilmente identificável. Roupas caras, andar portentoso, um relógio dourado e extravagante. Um homem de sucesso.

– E a …..

– Zeza? Vai bem. Tivemos dois filhos, que já são grandes.

– Parabéns Ric!!

– E Angélica como vai? Eu, obviamente, me lembrava muito bem do nome de sua esposa.

– Vai muito bem, melhor do que nunca.

– Eu não acredito que ela ainda está com você!! Ela não conseguiu arrumar nada melhor? Que desperdício!!

Conversas de homem, como sempre tolas e divertidas.

Subitamente ele ficou sério e me olhou de uma forma diferente. Fixou-se em meus olhos e perguntou:

– E você Ric, o que fez da sua vida? Resolveu mesmo ser obstetra? E então, ficou rico?

Eu sorri e respondi que ser rico era uma possibilidade praticamente nula, mas que nunca foi meu objetivo. Trabalhava com o que gostava e da forma como desenhei muito cedo na minha vida. Humanizar o nascimento era um ofício e uma bandeira; um trabalho e um sonho de vida. Ele continuou a me olhar como que tentando me decifrar. Finalmente falou de si.

– Pois eu fiquei rico, muito próximo do que se pode chamar um milionário. Comprei casas, apartamentos, mansões, uma clínica, um pequeno Iate, dinheiro no banco, viagens pelo mundo todo. Fui o introdutor no nosso meio de uma técnica que vi no Rio de Janeiro e que estava apenas começando a ser utilizada. É a lipoaspiração, conhece?

Abanei a cabeça sorridente. Como não conhecer algo que havia revolucionado a cirurgia plástica? Ele continuou.

– Pois choviam paciente para fazer isso. Eu ganhava em dólares. Cinquenta, as vezes cem mil dólares em um único mês. Era muito dinheiro. Fiquei muito rico mesmo.

Curiosamente, eu não percebia na conversa do meu colega nenhuma arrogância. Não era exibicionismo o que eu presenciava; era algo bem mais profundo. Ildo parecia trazer à tona o relicário de sua vida, uma avaliação de suas conquistas e do valor real que elas possuíam. Parecia ter perguntado sobre o meu percurso apenas para relativizar o seu. Não havia uma expressão de vitória ou de pedantismo em suas palavras. A imagem que eu via era a de um homem que desejava ansiosamente saber o valor do que conquistara, e se o que ocorreu com ele havia valido a pena.

– Não, Ildo; minha vida passou longe disso. Não nasci com este talento. Gosto de atender minhas pacientes, tenho um grande prazer em atender partos, mas nunca serei rico. Não tenho nada contra ser milionário, mas jamais me esforcei nesse sentido.

Ele não ficou constrangido com a minha resposta, e sequer achou que eu estava desprezando sua capacidade de fazer dinheiro. Seu olhar era de sincero questionamento. Parecia querer saber o que havia acontecido naqueles 25 anos que nos separaram.

– Bem, foi um grande prazer lhe reencontrar, Ric. Continue seu trabalho sempre. Eu vou indo, pois estão me esperando. Um abraço para ….

– Zeza, disse eu.

– Isso, mande um abração para ela.

Desejei o mesmo para Angélica e olhei sua silhueta virando a curva do corredor, enquanto eu aguardava a chegada do elevador. Caminhei até o estacionamento do hospital e liguei meu velho carro.  Antes de sair ainda olhei para os lados, esperando encontrar a Mercedes ou BMW que eu imaginava ser do meu colega. Não os vi, mas me diverti pensando nos 25 anos e nos milhões que nos separavam.

Algumas semanas depois encontro sobre minha mesa, ainda dentro da capa plástica, o exemplar de uma revista médica da minha cidade. Normalmente eu nunca leio nada dessas publicações, pois as matérias são essencialmente corporativas, enfadonhas e recheadas de propagandas de remédios. Entretanto, desta vez fiquei tentado a folhear suas páginas acetinadas. Entre matérias insossas e fotos de medalhões da medicina da província, encontrei na última página o quadro de obituário médico. Nela apareceram nomes de médicos falecidos naquele mês e, entre aqueles que eu nunca ouvira falar, meus olhos repousaram sobre um nome conhecido.

– Dr Ildo Buaiz.

Cheguei a me assustar ao ver o nome do meu colega na lista de falecimentos. “Como poderia ter morrido, se há poucas semanas o encontrei no hospital, quando pudemos trocar ideias e recordar o nosso passado nos plantões do Pronto-Socorro?

Como isso teria acontecido? Pensei num homônimo, mas dois médicos na minha cidade com o mesmo nome não parecia razoável. Achei que a melhor hipótese seria um acidente. No nosso país as pessoas morrem todos os dias nos mais absurdos desastres de automóvel, e meu colega Ildo poderia ter sido mais uma vítima dessa tragédia cotidiana. Passei vários dias com esta pergunta na cabeça até que, alguns dias depois, indiquei uma cirurgia no hospital e pedi para minha colega Andréa para que viesse ao hospital me auxiliar. Durante o procedimento eu comentei que ainda estava abalado pela morte de um colega nosso, de forma repentina e sem explicação até então. Contei o episódio de nosso encontro na frente dos elevadores do hospital e da minha surpresa com a notícia.

– Como é o nome dele, perguntou minha colega.

Eu disse que se chamava Ildo Buaiz, um antigo amigo e colega do tempo do Pronto-Socorro.

Ela ficou estática me olhando e exclamou:

– O Ildo é da minha cidade, lá da fronteira. Eu não sabia!! Mas ele é jovem, não tinha sequer 50 anos! Que será que houve?

Expliquei a ela que não tinha ideia, e que ele me pareceu bem durante nosso breve encontro, apesar de estar bem mais magro do que no tempo que fazíamos plantão.

– Deixe comigo, Ric. Vou descobrir o que houve.

Passaram-se algumas semanas e reencontrei Andrea em outra cirurgia. Perguntei se ela tinha notícias daquele caso do nosso colega e ela disse que me contaria depois de terminada a operação, na sala do café. Depois de finda a nossa tarefa, nos encontramos na sala de conforto médico, e ela me relatou a história que havia desenterrado.

– Câncer, Ric. Fulminante.

– Sério? Que coisa!!

– Um tumor galopante. Ele fazia tratamento nesse hospital, foi por isso que você o encontrou aqui.

Visitar uma parente”, disse ele. Em verdade ele estava se tratando, mas não quis me dizer.

– Sim, Ric. Ele teve um tumor raro e absolutamente inoperável. Em poucos meses ele passou de um cidadão rico e feliz para um quadro desesperador. Foi rápido demais, até para poder se adaptar à essa realidade. A vida às vezes tem dessas surpresas.

Enquanto ela me descrevia as informações que colhera com seus familiares na sua cidade eu tentava recuperar da memória os detalhes do nosso breve encontro. “E você Ric, ficou rico?”. Essas palavras agora tinham um outro sentido, mas confirmavam a clara impressão de que não se tratava de exibicionismo ou arrogância. Não, ele apenas queria saber o que significava toda a sua vida, os seus sucesso, sua fama e seu dinheiro. Naquele dia, tudo parecia estar escorrendo pelos dedos.

– Ele faleceu aqui no hospital, continuou Andrea. Ele sempre foi muito discreto, mas lá na minha cidade todos acabaram sabendo. Ele era muito querido pela família. Seu pai foi político e era um homem influente. Uma tristeza isso. Jovem, bonito e bem sucedido.

– Muito triste, respondi

– Conheço uma tia dele que mora lá, e falei com ela há alguns dias. Nos últimos dias antes de falecer ele pedia a ela que trouxesse de nossa cidade um presente muito especial, algo que o fazia voltar aos seus tempos de criança, quando tomava banho no rio e caminhava descalço pelo campo.

– O que era?

Ambrosia. Ele era louco por ambrosia, mas se privava de comer para não engordar. Durante muitos anos não fez o que seu desejo mandava, mas quando percebeu que seus dias estavam contados resolveu aproveitar seus últimos momentos fazendo o que lhe dava tanto prazer: uma deliciosa ambrosia com calda açucarada.

As palavras do meu colega ainda ecoavam na minha cabeça. Seu olhar fixo era em busca de respostas para o sentido de sua vida. Provavelmente por muitos anos ele pensou que a vida era feita para obter sucesso e usufruir das coisas que o dinheiro pode comprar. Seus dólares, entretanto, não foram suficientes para comprar o mais caro de todos os bens: o tempo. Antes de chegar à terceira idade seu tempo se esgotou, e toda a riqueza que ele conquistou na vida perdeu completamente seu sentido. Era isso que Ildo perguntava para mim: “Qual o sentido da vida? Qual a importância de lutar para conquistar valores que se esvaem por entre os dedos?

Eu não sei Ildo, não posso lhe dizer. Mas creio que a próxima vez que tiver vontade de comer uma ambrosia lembrarei de você, e vou saborear sabendo que esta é uma das melhores coisas da vida. E que as coisas mais importantes não podem ser compradas com dinheiro, mas são os afetos que plantamos durante nossa existência.

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