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Parto: passado, presente e futuro

O movimento de humanização do nascimento não se produz num vácuo conceitual mas, pelo contrário, surge no bojo das profundas transformações do pós guerra no que diz respeito à distribuição dos gêneros no mercado de trabalho, nos costumes, nos direitos sobre o corpo e nas questões relativas à sexualidade – incluindo aí a contracepção e o ciclo gravídico-puerperal. Nos anos 70-80 pela primeira vez se tornou possível mensurar de uma forma metódica e abrangente o resultado da invasão tecnológica sobre o parto ao confrontarmos os resultados obtidos pela institucionalização do parto com sua versão artesanal e domiciliar que foi o modelo hegemônico por toda a história da humanidade. Por esta razão nesta época apareceram no nosso horizonte os primeiros contrapontos ao modelo vigente.

No que diz respeito ao terreno das ideias, a partir desse período era possível beber em diversas fontes. Entre as principais referências estavam na Inglaterra o obstetra Grantly Dick-Read, que tratou da ambiência do parto e suas repercussões (em especial o ciclo medo-tensão-dor) e o parto como fato social; na França surgiu Fernand Lamaze que falava dos domínios do consciente sobre o parto. Mais uma vez na França surgiu a questão da violência na atenção ao parto, e Frederick Leboyer surgiu com a perspectiva do recém-nascido e o conceito de “imprint”. Ainda na França, Michel Odent abriu um portal no entendimento do parto ao falar desse evento como fenômeno “mamífero”, com seus estudos da etologia e os efeitos da ocitocina para o rtabalho de parto e o psiquismo materno. Finalmente, nos Estados Unidos surge o trabalho da antropóloga e Robbie Davis-Floyd que nos apresenta a perspectiva ritualística do parto, e os elementos simbólicos das rotinas obstétricas. Estes foram personagens e ideias que produziram o arcabouço ideológico que fomentou nossa perspectiva teleológica do processo de nascimento. O modelo humanista, surgido do caldo de ideias desses pensadores, ocorre em contraposição à crescente alienação das mulheres no ato de parir e o domínio da tecnologia sobre seus corpos. Certamente que a tarefa de desconstrução sobre o modelo tecnocrático de atenção ao parto só poderia ocorrer de forma conflituosa, porque sobre o corpo das mulheres existem claras demarcações, zonas de domínio, que são próprias da estruturação do modelo patriarcal. Desta forma, o movimento de humanização passou por etapas cujo reconhecimento é extremamente essencial para sua continuidade. Também é importante entender que, como todo fenômeno social, estas etapas não são estanques e são intercambiáveis no tempo e no espaço.

1- Indignação e Acolhimento

A primeira etapa é o que eu chamo de “Acolhimento“. O acolhimento vai ocorrer quando um sujeito, vítima real de uma situação ou contexto, procura a ajuda de pessoas que possam lhe escutar e entender suas feridas e traumas. Os primórdios da humanização do nascimento, desde o início das “list servers” sobre parto humanizado, eram recheados de histórias e relatos de partos onde a dignidade e a autonomia das mulheres e bebês foi claramente ofendida. Era tarefa dessa comunidade acolher as vítimas de um modelo de atenção que lhes parecia violento e insensível. O problema é que o ser humano tem mecanismos de satisfação que lhe permitem obter vantagens pela sua condição de vítima, seja por benefícios ou privilégios. Essa atitude é muito primitiva em nós, bastando para isso ver uma criança que chora copiosamente ao cair, sabendo que isso significará um ação acolhedora da mãe. Com o tempo esta atitude pode se tornar padrão de comportamento, criando uma criança manhosa, que percebe na sua condição real (ou fantasiosa) de vítima uma chance de receber o prêmio do carinho que deseja. Na atenção ao parto muitas mulheres se recolhem na condição de vítimas do sistema e o movimento de humanização às acolhe, gerando um circuito que oferece a elas um gozo pela sua condição.

É evidente que esta ação não pode perdurar porque uma regra básica das relações humanas é que a pessoa que se encontra na condição de vítima não pode ser protagonista, uma condição antagônica a esta posição. Desta forma o padrão maternal acolherá a criança ou o adulto vítima e lhe dará o cuidado necessário para sua proteção e recuperação, mas manterá o sujeito preso a um vínculo de dependência. Somente a posição paternal subsequente poderá livrar o sujeito dessa condição, obrigando-o a uma posição proativa. É importante notar que posições maternais e paternais se referem às funções e não aos personagens mãe e pai e muito menos às identidades de mulher e homem.

2- Punição

Essa condição de vítima é geradora de ressentimentos e o ressentimento vai produzir o segundo passo neste processo que é o “Punitivismo“. Esta foi uma tendência marcada nos primeiros anos do movimento de humanização. Se conhecíamos as vítimas de uma atenção inadequada por certo que haveria aqueles a quem culpar, em especial os que detém mais poder e conhecimento autoritativo. Nessa etapa muito se discutia sobre as punições devidas aos médicos e hospitais que utilizavam de forma exagerada e insensata os recursos tecnológicos. Da mesma forma como o enxergamos nos problemas sociais, o punitivismo na obstetrícia se baseia na crença que o aumento ou alargamento das punições sobre médicos e hospitais poderia garantir uma maior qualidade da atenção, pela simples eliminação da impunidade. Décadas de observação e inúmeras experiências nos mostram que esta é uma estratégia equivocada e de resultados pífios. Se punir quem vendia álcool na lei seca não diminuiu seu consumo, porque a punição aos médicos poderia trazer qualquer benefício, em especial quando sabemos que eles são igualmente reféns do “imperativo tecnológico” que os mantém prisioneiros de um modelo tecnocrático e intervencionista, mesmo quando têm pleno conhecimento de que não é o mais adequado.

3- Idealismo

A etapa seguinte eu chamo de “Idealismo”. Esta etapa ocorre quando vemos o florescimento de uma enorme quantidade de ideias e propostas relacionadas à atenção ao parto. Começamos a nortear nossas ações centrados nos trabalhos, pesquisas e estudos de ideólogos e pesquisadores que produziram um olhar desafiador sobre o parto. Assim, o “parto Leboyer” surgiu como uma prática – repleta de variantes – a partir das ideias do obstetra francês Frederick Leboyer. Alguns anos após, outro francês, Michel Odent, nos convidava a refletir sobre nossa ancestralidade e as reais necessidades de uma gestante em seu momento de parir. A partir deles, muitos outros vieram, entretanto, como pode ser facilmente observado, “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam”. O livro de Robbie “Birth as an American Rite of Passage” foi publicado há mais de 30 anos, e nessas três décadas o cenário do nascimento humano no mundo ocidental apenas piorou no que diz respeito à autonomia das mulheres, mesmo com grande acúmulo de perspectivas inovadoras e estudos que as embasam. As taxas de cesariana no Brasil chegaram a um platô que se situava entre 55 e 57% e não conseguem descer abaixo disso – em verdade os últimos relatórios falam de uma taxa de 59.7% de cesarianas e 82% no setor privado – inobstante as boas iniciativas de algumas instituições e poucos profissionais. As Intervenções continuam em alta, apesar de inúmeras publicações demonstrando sua inutilidade e mesmo seu efeito deletério para o binômio mãe-bebê

Fica evidente que as ideias são incapazes – por si só – de promover mudanças. Por mais que os médicos saibam da inutilidade da episiotomia, da alta taxa de cesarianas, dos enemas e da posição de litotomia, o simples reconhecimento desses erros não os leva a mudanças significativas em suas atitudes. Esse tipo de pensamento idealista nos levou a fazer “caravanas” pela humanização do nascimento no início do século, baseados na ilusão de que a simples confrontação com a verdade das pesquisas seria capaz de imprimir novas condutas médicas. Ledo engano; não houve nenhuma mudança significativa; nenhum índice de intervenção se tornou melhor pela demonstração prática de sua inadequação. Mesmo o programa “Parto Adequado” que foi utilizado em hospitais privados – o ponto nevrálgico das intervenções desmedidas – teve um “sucesso” inicial de diminuir em 1% as intervenções de nascimentos cirúrgicos, mas os valores voltaram a crescer algum tempo depois. A “educação médica” não parece surtir efeito, pois parte de uma perspectiva que não reconhece a dinâmica de poder que permeia a atenção à saúde.

4- Reformismo

A próxima etapa é derivada do idealismo e se refere a um movimento que ainda é hegemônico entre os obstetras “liberais”, aqueles simpatizantes do parto normal (também conhecidos como “vaginalistas”) e entre muitos profissionais das correntes da humanização do nascimento. Ela se chama “Reformismo“, que consiste na ideia de que é possível transformar a atenção ao parto se houver uma educação ampla, reforma no ensino da medicina, contratação de médicos alinhados com os projetos de humanização e estímulo à contratação de enfermeiras obstetras pelos centros de atenção ao parto. Essa proposta acredita que é possível “moralizar” a atenção apostando no sujeito, nos “bons profissionais” (os “good guys”) na suavização de suas práticas, na eliminação de intervenções desnecessárias, na educação e na informação científica atualizada – mas não na mudança do sistema no qual estes profissionais estão inseridos.

Existem inúmeros hospitais de caráter reformista na atualidade, alguns por acreditarem nessa proposta, enquanto outros por entenderem que se trata de um modelo intermediário para uma verdadeira mudança que só ocorrerá num futuro distante. No último congresso internacional da ReHuNa houve um momento profundamente revelador dessa proposta: o convite para que o presidente da Febrasgo (Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia do Brasil) tivesse uma fala. Nesta ocasião ele se mostrou educado, afável e compreensivo com as reivindicações dos seus entrevistadores. Para muitos um ato de reconhecimento de nossa relevância. Todavia, deveria ter ficado evidente para todos os presentes em sua palestra que a sua concordância – ou não – com as nossas propostas é absolutamente irrelevante para uma real transformação. O mesmo acontece com uma mesa em que representantes israelenses se encontram com a população palestina para discutir o futuro da região. As posições jamais serão alcançadas através da simples concordância com as visões dispares de mundo, e qualquer solução só poderá brotar do atrito e do choque de poderes – mais ou menos violento. Para isso é preciso uma abordagem “materialista e dialética”.

O Materialismo dialético é uma concepção filosófica e uma metodologia científica que propões a visão de que o ambiente, o sujeito e os fenômenos materiais e físicos tanto modelam a sociedade e a cultura quanto são modelados por eles; ou seja, que a matéria está em uma relação dialética com o psicológico e o social. Por mais que seja evidente a correção da luta por autonomia das mulheres em relação ao parto e nascimento, estas ideias somente terão avanços quando o ambiente social se modificar e as próprias mulheres se colocarem à frente do processo de mudança. Precisamos tanto de melhores profissionais quanto melhores clientes para o parto. Médicos e gestantes estão sujeitos ao mesmo modelo, atuam dentro dele e ao mesmo tempo são afetados por ele, e precisam agir em consonância para que este seja transformado. No atual estado da arte, a Medicina e sua lógica da intervenção está em antagonismo com as reivindicações das gestantes que desejam um parto humanizado. Jamais conseguiremos uma modificação profunda no sistema através de reformas que não mudam em profundidade o sistema de poderes que governa o corpo das mulheres, sua sexualidade e reprodução.

Enquanto o parto for considerado “ato médico” e se mantiver nas mãos de cirurgiões nenhum avanço significativo será alcançado, pois que a perspectiva médica e a visão da parteria são antípodas no espectro da atenção. A lógica médica aplicada ao nascimento objetualiza as pacientes, transformando-as em objetos dóceis e inermes para a sua atuação e intervenção. Essa lógica é essencial para o tratamento de muitas doenças e em especial para a realização de cirurgias, mas não se aplica ao atendimento de um evento fisiológico como o parto sem excluir as mulheres e seus bebês da equação. A aventura da Medicina no percurso do nascimento humano levou inexoravelmente ao apagamento das mães de qualquer decisão, colocando nas mãos dos médicos toda a responsabilidade do que vai acontecer a elas. Não por outra razão em nossa cultura os médicos “fazem partos”.

5- Revolução

O que resta como solução é deixar para trás as ilusões, entendendo a arena do nascimento como uma “luta de classes” que não vai chegar a qualquer consenso enquanto os médicos mantiverem o controle político e econômico sobre o processo de parir. Somente com a queda deste poder, e a ascensão das especialistas no parto – parteiras profissionais e tradicionais – haverá possibilidade de uma verdadeira “Revolução do Parto”, mas que só vai acontecer quando as massas, nutridas pela inescapável indignação, reivindicarem que a assistência volte ao controle das próprias mulheres e através do auxílio dos profissionais mais capacitados para este ofício. Cabe também resguardar aos médicos a nobre tarefa de agir nas circunstâncias em que a trilha da fisiologia se perdeu no emaranhado único de cada nascimento e adentrou na rota perigosa da patologia, para que eles sejam os heróis que tanto necessitamos. Todavia, diante dessa tarefa, é importante lembrar de Simon Chapman, professor de Psicologia na Austrália, que durante muitos anos estudou a questão do tabagismo e expôs a indústria de tabaco pelos seus malefícios à saúde humana. Em suas palavras “uma vez que seu trabalho ameace uma determinada indústria, corporação ou ideologia dominante, você será atacado sem tréguas e de forma cruel. Portanto, crie para si mesmo uma couraça de rinoceronte”. Todo aquele que deseja confrontar os poderes estabelecidos sobre o parto e, portanto, sobre o controle da sexualidade feminina, será atacado de forma incessante e violenta por aqueles que se sentem ameaçados pelo novo paradigma. Nunca isso foi tão verdade como agora.

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Parto humanizado e mídias sociais

Eu as vezes sou convidado a assistir palestras sobre obstetrícia que tratam de temas que há muitos anos debatemos no movimento de Humanização do Parto e Nascimento. Nesta semana assisti mais uma vez o mestre Michel Odent – pensador e escritor francês de 91 anos – falar de suas teses centrais, como o “imprint” e a importância de oferecer à mulher um entorno de proteção, intimidade e privacidade para que a “entrega” seja a mais tranquila possível. Ter sido contemporâneo de Michel é um grande privilégio para qualquer pessoa que um dia trilhou pelos caminhos da humanização. Posso estar cometendo um sacrilégio mas, na minha perspectiva, os trabalhos de Odent e Robbie Davis-Floyd no campo da compreensão dos significados últimos e inconscientes do processo de nascer adquirem uma importância ainda maior do que aqueles conceitos sobre o “nascimento sem violência” oferecidos a nós um pouco antes por Frederick Leboyer, outro baluarte da grande revolução do parto.

Escutei também o comediante Rafinha Bastos falando sobre partos e doulas, na entrevista que fez com sua irmã – que é doula e professora de Yoga – e achei que sua visão superficial, preconceituosa, jocosa e até debochada do processo de nascimento é uma amostra razoavelmente adequada do pensamento médio dos homens brasileiros. Sua ignorância a respeito de elementos mínimos da proposta de humanização, sua repulsa com tudo o que existe de selvagem e essencialmente humano no parto – além da sua exaltação da “praticidade e limpeza” das cesarianas – são muito demonstrativas da visão majoritária que ainda é prevalente entre os homens. Acho lamentável sua percepção sobre um tema tão delicado, mas saber que ele se dispôs a escutar é algo que devemos saudar como positivo. Quando trocamos ideias com os companheiros das mulheres que nos procuram pela expectativa de um parto humanizado é importante ter em conta que estes sujeitos representam uma fatia francamente minoritária nesta sociedade.

Um pouco depois escutei a aula de uma enfermeira obstetra que falou sobre o tema da violência obstétrica para alunos universitários, um tema que a cada dia assume uma importância maior nos debates de gênero na Internet. Na minha perspectiva ela falou de uma forma bastante superficial, talvez um pouco mais do que o necessário, mas entendo que ela imaginava se dirigir a uma plateia ainda muito desinformada sobre o tema e, portanto, preferiu uma abordagem mais geral e simplificada.

Em verdade eu prefiro as perspectivas sobre o parto que são mais complexas, mais obscuras e menos debatidas e sobre as quais pouco se fala, em especial no que diz respeito à atenção ao parto como evento da sexualidade. Entretanto, tocar nesse ponto é arriscado e perigoso. Vivemos em uma sociedade de cancelamentos onde as ideias sucumbem à interpretação que se pode fazer delas, e onde a verdade é menos importante do que a aceitação e o reconhecimento das nossas “personas sociais”. Fugir de certos maniqueísmos é tarefa complexa, e seria um risco muito grande tratar desse tema para um grupo tão heterogêneo.

Nas perguntas que se seguiram à sua exposição chamou minha atenção algo que vi repetidas vezes quando tratei publicamente deste tema. Percebi que, o que muitas mulheres chamam de “violência obstétrica” é, na verdade, tão somente a ponta de um imenso iceberg, uma fração menor do que seja a violência que ocorre no parto. A maioria das mulheres (e também seus parceiros) aponta como violência apenas aquilo se que tornou visível e palpável, a parte que ultrapassa a linha das ondas e emerge do oceano como barbárie. Da mesma forma, a violência do encarceramento obsceno das sociedades capitalistas aparece sob a forma de desumanidade, tortura e morte, para só então ser condenada. Parece que a nós somente quando a brutalidade estrutural e ideológica submersa se torna evidente pelo exagero de um processo – que já é violento por natureza – temos a possibilidade de denunciar sua existência.

Ainda espero das jovens ativistas uma definição mais clara, concisa e firme do que seja “parto humanizado”. Parece faltar uma percepção mais elaborada, que fuja da ideia de “parto gentil”, “parto delicado”, “parto adequado”, “obediência às evidências científicas”, que são elementos importantes deste processo, mas que não contemplam o cerne da definição, o qual está visceralmente ligado à ideia de “garantia de protagonismo” às mulheres. Precisamos falar mais sobre a história desse movimento social, debater seus pilares de sustentação e entender que esta proposta surgiu muito recentemente como uma contraposição ao modelo tecnocrático hegemônico, que despersonaliza e objetualiza as gestantes, uma condição que se fortaleceu pela dominação do paradigma biomédico estabelecido de forma marcante a partir do século XX.

Na palestra da jovem professora ela elogiou as Casas de Parto e deixou claro para todos a importância das enfermeiras como cuidadoras primordiais do parto, o que é muito bom. Para além disso, eu me surpreendi com as perguntas feitas pelos estudantes a ela, o que sugeriu que ela poderia ter ido mais fundo nas definições, contradições e dificuldades no combate à violência obstétrica. Talvez ela tenha subestimado mais do que devia a capacidade de crítica dos alunos presentes à sua palestra.

Saber que esse tema toma a Internet hoje em dia me oferece a esperança de que estivemos fazendo certo em denunciar um modelo anacrônico de atenção ao parto e de mostrar que há perspectivas mais humanas e dignas de trazer as pessoas ao mundo.

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Cesarianas “humanizadas”

A respeito de uma cena de cesariana realizada de forma delicada – com nascimento empelicado – e o debate que se seguiu, onde alguns participantes afirmavam que se tratava de uma “cesariana humanizada”, uma discussão que acompanho há mais de 20 anos.

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“Uma cesariana pode ser delicada, humana e respeitosa, mas jamais “humanizada”.

Vejamos porque não aceito essa definição para estas cirurgias. Faço, já há muitos anos, esta diferença porque o conceito que utilizamos é de que a humanização do nascimento se apoia em três elementos constitutivos:

  1. a atenção baseada em evidências
  2. o enfoque interdisciplinar
  3. o protagonismo do evento garantido à mulher

Não é difícil de entender que em uma cesariana o protagonista do evento é o médico e suas habilidades cirúrgicas. Portanto, uma cesariana – mesmo escolhida pela mulher ou com indicações médicas claras – não pode ser “humanizada” por não possuir um dos elementos basilares da humanização: o protagonismo garantido à gestante. Na cesariana, como em qualquer cirurgia, o paciente será sempre objeto da arte médica e não sujeito do processo.

Não se trata de um julgamento de mérito, mas uma questão semântica, de conceito. Como eu defino a humanização como sendo uma estrutura suportada por três pontas (protagonismo, Saúde Baseada em Evidencias e a interdisciplina) eu não posso considerar uma cesariana como humanizada – mesmo quando ela for útil, delicada, humana, bem indicada e até salvadora – pela falta de um dos elementos estruturantes.

Além disso, sabemos que existe uma questão semiótica neste rótulo reivindicado pelos propagadores das “cesarianas humanizadas”. Essa demanda serve para criar confusão entre uma cesariana – que é uma intervenção cruenta e artificial – e os mecanismos fisiológicos e naturais do corpo, chamando ambos os procedimentos de “humanizados”. Assim, para muitos fica a mensagem de que “tanto faz a via de nascimento se ambas as formas de nascer forem humanizadas“, certo?

Não, cesariana é cirurgia, parto é parto, assim como fórmula láctea é uma coisa e leite materno é outra. A superioridade em termos de riscos diminuídos e promoção da saúde do leite materno e do parto normal sobre suas variantes artificiais sequer precisa ser discutida.

Todo nascimento tem sua beleza. Mesmo a cesariana, que é uma cirurgia de grande porte, pode ser realizada com delicadeza e respeito, fazendo do nascimento pela via cirúrgica um evento igualmente belo e significativo. Não se trata de desmerecer esta cirurgia e muito menos quem porventura precisou se submeter a ela, mas é um cuidado para resguardar o conceito de humanização para os processos naturais e fisiológicos, onde a própria mulher mantém o controle dos tempos, das presenças, das posições e dos ambientes.”

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Parto Adequado

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Fiquei sabendo que 10 mil cesarianas foram evitadas pelo programa “Parto Adequado”, cujo nome foi criado com um único objetivo: tirar o nome “humanização” dos projetos de incentivo ao parto normal. Como sabemos, os médicos sempre se ofenderam com essa palavra (“está nos chamando de desumanos?”). Essa diminuição de cesarianas e a consequente queda nas internações em UTI neonatal parece ser um bom indicador. Entretanto, quando percebemos que são realizadas mais de 1 milhão de cesarianas por ano, esta redução representa menos de 1% de todas as cirurgias realizadas no país.

Claro, o programa não foi aplicado no país inteiro, mas penso que sem mudar o paradigma médico intervencionista pelo modelo de parteria nenhuma mudança significativa e mensurável será percebida em um futuro próximo. Apesar dos resultados aparentemente promissores, o projeto “Parto Adequado” parece querer provar que é possível melhorar o atendimento ao parto dentro do velho paradigma, baseado na intervenção, no médico e no hospital.

Não creio…

A simples diminuição de cesarianas não fará a menor diferença. Estaremos evitando cesarianas a que preço? Podemos acabar trocando altas taxas de cesarianas por partos cheios de intervenções, além de acrescentar riscos decorrentes de uma atenção vaginalista, mas que mantém o mesmo viés centrado na intervenção.

Humanizar o nascimento é bem mais do que trocar um corte em cima por um mais em baixo.

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