
Estou iniciando o terço final de um processo respiratório agudo. “Grips”, como se diz. Estou saindo da fase “astênica” e entrando na fase “estênica”. A primeira se refere ao quadro inflamatório inicial, com tosse seca, febre, suores, mal estar, inapetência, fraqueza, cansaço, sono etc. Já a segunda se caracteriza como a fase resolutiva: desaparecem a febre e surgem os fenômenos catarrais, com secreção brônquica, febre ausente, reaparecendo lentamente o vigor físico e a fome. Comentei o fato com algumas amigas da Internet que não são da área médica e todas me fizeram as mesmas perguntas, com algumas minúsculas variações:
– Você já foi ao médico? O que está tomando?
Minha resposta para elas foi:
– Estas doenças de tipo viral tem seu ciclo bem característico. Duram de 5 a 7 dias. Ou seja, usando ou não drogas, tomando água benta, chá de erva doce ou antibiótico, elas irão embora em uma semana. Acho melhor não usar droga nenhuma que interfira no ajuste autonômico do corpo, obedecendo seus ditames. Sono? Durma. Cansaço? Descanse. Sem fome? Não coma. Sede? Beba água, etc. Acredito que as medicações para melhorar sintomas podem ser úteis, mas somente se eles forem insuportáveis. Penso mesmo que os efeitos adversos dessas drogas são importantes demais para serem negligenciados.
A relação entre medicina e drogas é recente e se incrementou muito no início do século passado com o “Flexner Report” de John Rockefeller e a criação da medicina orientada para a Indústria Farmacêutica nascente. Além disso, ir ao médico é sempre um risco; os médicos hoje em dia, em especial nos atendimentos de urgência, prescrevem sob pressão: de um lado a pressão de seus pares e da indústria de remédios, e do outro lado dos próprios pacientes, que exigem que algo seja prescrito, pois depositam nas drogas a solução mágica para os seus males, o que raramente é o caso. Via de regra não conseguem sair da consulta apenas com conselhos e orientações: é preciso que haja receitas e exames para sacramentar o ato médico. Pergunto: sendo evidente que estou com um quadro respiratório alto (IVAS) o que poderia um médico dizer que eu já não sei? Que poderia ele me prescrever que eu aceitaria tomar? Que conselho útil poderia me dar que eu já não esteja fazendo? Que diferença essa consulta faria no transcurso dessa doença aguda?
Sim, eu me conheço e sei como estas doenças se comportam em mim. Sei também que se o quadro fosse de piora crescente não evitaria uma visita à emergência; porém, não é o caso. Sendo absolutamente racional e usando sempre o bom senso, faço o mesmo há 45 anos: fico em casa, curto a minha gripe, escrevo e leio entre espirros e paroxismos de tosse, fico com a cara inchada, perco litros de catarro pelo nariz, acumulo dores pelo corpo, fico descadeirado e espero pacientemente a tempestade passar. Esse é um excelente exercício para o sistema imunológico, e muito positivo para a economia do corpo. Abster-se das drogas – quando possível – sempre me pareceu uma atitude lúcida.
A réplica de todas teve o mesmo teor, usando quase as mesmas frases:
– Você não pode ser tão radical. Muitos remédios ajudam pessoas. Deixar de tomar remédio é um erro. Para que esse fanatismo? Tem vergonha de pedir ajuda? Isso não passa de arrogância.
Eu respondi a elas que essa conversa era às avessas. Como era possível que alguém que transitou 40 anos pela Medicina pudesse defender a abstenção das drogas sempre que possível enquanto uma paciente defendia seu uso indiscriminado? Expliquei que não havia nada de “fanatismo” em uma postura pessoal. Não sinto necessidade de usar, por que deveria tomar? Exatamente por conhecer as drogas e seus dilemas prefiro não usá-las, a não ser que seus benefícios ultrapassem – em muito – seus potenciais malefícios.
– Não vou discutir com você. Esta é uma conversa estéril; eu tenho minha opinião e você está encastelado na sua.
Foi o que disse uma delas, evidentemente contrariada e, ao que tudo indica, ofendida com minha postura de evitar o uso de remédios. Foi esta reação indignada que me pareceu digna de um comentário. Houve também o comentário de uma médica: “Sou médica há 36 anos mas minha postura é bem diferente em relação a sua; entretanto tenho a tranquilidade de opinar e não colocar de modo tão enfático posições no mínimo questionáveis. Espero que fiques bem e em paz!! Boa noite!!”
Os médicos também não suportam que se questione o uso irrestrito de drogas. Pergunto: por que questionar o “Império das Drogas” os deixa tão ofendidos, ressentidos e até magoados? É como se o seu conhecimento sobre “qual remédio usar para o quê” fosse o elemento primordial de sua arte, o elemento que sustenta seu significado e importância social; retire-se isso e o seu valor desaparece. Eu as vezes penso que na hecatombe nuclear que se avizinha os médicos – já sem as drogas e sem os hospitais – se tornarão inúteis, pois a perspectiva mais ampla da “ars cvrandi” deu lugar à iatroquimica, deixando pouco espaço para a empatia, o acolhimento e o acoselhamento. Os médicos deixaram de ser sábios para se tornarem técnicos e especialistas. Terá sido uma boa troca?
Outra questão me deixou intrigado: por que essa vinculação de “doença ——> drogas químicas” ficou tão naturalizada a ponto de não se conceber um transtorno clínico qualquer sem que ela seja preponderante? Como pudemos criar uma ligação tão violenta entre quadros sintomáticos agudos (dos quais 95% tem resolução espontânea em poucos dias!!) e a necessidade – ou até obrigação!!! – de usar produtos da indústria trilionária de medicamentos?
Por outro lado, sei bem como é o outro lado da moeda: experimente dizer para um paciente “não faça nada, não precisa usar nenhuma medicação” para ver a reação. Muito lançam um olhar de fúria, como a dizer: “paguei, quero receita!!”. Entretanto, em muitas oportunidades esta é a frase mais justa e ética a dizer. Como educar as pessoas a pensar racionalmente sobre estas alternativas se somos bombardeados diuturnamente com a ideia de que “a verdade está lá fora”? Ou seja, para o capitalismo, a cura dos sofrimentos (só) pode ser alcançada através de algo que você acrescenta ao seu corpo, algo que lhe falta, do qual está carente. Seria uma droga, que concentra o poder de lhe devolver a paz perdida, a resposta que aguardamos? Não creio, mas para mudar esse roteiro é necessário, por parte do profissional, muita firmeza, segurança e carisma; por parte do paciente, uma forte transferência. Uma junção bem mais rara de encontrar.
Creio que a razão para tamanha conexão entre doenças e drogas pode estar em uma hipótese que carrego há muitos anos, a qual aponta para a sutil e insidiosa doutrinação que as crianças e seus pais recebem nas primeiras consultas depois do parto e nos primeiros anos de vida. É ali que se planta a semente de que “há remédio para tudo”, fazendo-nos crer que a solução para as dores e as doenças está fora de nós, em pílulas, xaropes, pastilhas e injeções, uma ideia que carregamos pelo resto da vida. Não surpreende que os adolescentes, diante da angústia mordente sobre sua sexualidade, seu futuro, sua capacidade, seu brilho e seu valor, apelem para as soluções exógenas, seja cheirando ou fumando substâncias mágicas para seus sofrimentos físicos e emocionais.
Quando eu tinha apenas 6 anos de idade e era atacado por estas febres infantis minha mãe me dizia: “Você vai ficar com febre, vai tremer e depois vai suar por todo o corpo. Depois vai ficar frio de novo, vai tremer de novo; as sensações vão voltar e desaparecer mais umas vezes e assim por diante. É assim mesmo que o corpo se ajusta. Não se assuste e não tenha medo. Estarei aqui se precisar”. Passei a acreditar na sabedoria destes processos adaptativos desde muito cedo, e fui obrigado a esquecer os abusos da medicina quando me foram ensinados. Minhas conhecidas se despediram e não creio que voltem a falar comigo. Neste instante devem estar falando para as amigas: “não imagina o que tem de fanático anti-remédio por aí“



