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Desespero

É possível entender as razões pelas quais as pessoas estão idolatrando Luigi Mangione, o garoto americano que eliminou o chefão da empresa de saúde privada UnitedHealthcare , Brian Thompson. Também é claro que essa idolatria é aumentada pelo fato de do rapaz ser atlético, bonito, inteligente e (supostamente) de esquerda. Ele assume a posição de um “anti-herói cultural” do nosso tempo, um “vingador” que tomou para si as dores de milhões de americanos que se sentem traídos por estas empresas sanguessugas. É possível entender também que tudo isso é decorrência da raiva acumulada da sociedade americana pelos personagens à frente de tais empresas; as piadas, os memes e os gracejos que se seguiram a este ato tresloucado fazem parte desse contexto, mesmo que seja inadequado fazer festa pela morte de uma pessoa, seja ela quem for. Um sujeito que lidera um conglomerado de empresas assistência médica nos Estados Unidos que, para gerar lucro aos seus acionistas, diminui o quanto pode suas despesas negando sistematicamente atendimentos e coberturas para pessoas doentes, só poderia ter uma imagem péssima diante da população. Esse é o mesmo tratamento historicamente dado aos sujeitos que vêm cortar sua luz por falta de pagamento ou a para os condutores da “carrocinha” que pegava cachorros de rua. São posições ingratas, malvistas e estigmatizadas, sobre as quais recai o preconceito e a hostilidade do povo.

Por outro lado, esse fato demonstra de forma dramático um fato sobre o qual me debruço há 30 anos. Quando eu visitava os Estados Unidos para participar dos encontros do CIMS – Coalition for Improving Maternity Services – (Coalizão para Melhoria dos Serviços de Maternidade) muitas vezes descrevi para uma plateia de ativistas do parto o nosso sistema universal de assistência à saúde – o SUS. Era impressionante perceber o brilho no olho das ativistas dos Estados Unidos quando eu explicava coisas simples, como a atenção gratuita nas emergências, cirurgias cardíacas complexas, transplantes, medicamentos e – em especial – a atenção ao parto, oferecidos de forma “gratuita” para a nossa população, e até para os visitantes. Coloquei aspas no “gratuito” porque bem sabemos que o sistema no Brasil é pré-pago: tudo que você recebe como atendimento à saúde foi previamente pago através do desconto no seu salário, para garantir dignidade na atenção à doença e aos ciclos da vida.

Uma pesquisa realizada pelo Marist Institute for Public Opinion a pedido da emissora NPR, rádio pública norte-americana, indica que a grande maioria, 83% dos cidadãos daquele país, considera a atenção à saúde um direito essencial básico, e que deveria ser de acesso universal a toda população. O estudo também perguntou se esse direito deveria ser garantido pelo Estado e uma expressiva maioria de dois terços dos entrevistados responderam afirmativamente. Ou seja: a imensa maioria do povo americano deseja uma saúde universal, com amplo acesso para toda a população, mas isso não ocorre porque os governos americanos – de qualquer partido – são controlados pelas empresas de seguro médico que lucram com a exploração da doença. O lobby feito por estas corporações é violento e se expressa através dos financiamentos de campanha, a exemplo do que ocorre com o controle dos sionistas sobre o parlamento.  Não por outra razão, médicos ganham milhões em subsídios da do AIPAC, da indústria farmacêutica e das empresas de assistência médica privada.

Assim, não se trata de uma questão “moral”, onde um bando de gananciosos especuladores capitalistas lucram com a desgraça alheia; isso seria por demais ingênuo. A questão muito mais profunda do que eleger culpados e sair eliminando-os com ações heroicas. O problema central é a incapacidade da democracia liberal em transformar as legítimas aspirações populares em ações de governo. Isso ocorre porque, apesar da aparência de liberdade, o modelo capitalista deixa os governos atrelados aos poderosos interesses do mercado, dos conglomerados financeiros, dos rentistas e da burguesia. A estes não interessa que o cidadão americano tenha saúde como direito universal, ou que a saúde da população seja uma obrigação do Estado. Para eles a saúde é mais um produto nas prateleiras; compre quem tiver dinheiro.

Por outro lado, apesar de entender a atitude do jovem que fez justiça com as próprias mãos, não é possível aceitar que a solução dos problemas da assistência médica de um país ocorra mediante justiçamentos ou linchamentos. Nada justifica um assassinato e os mandatários destas empresas são apenas a cara bem barbeada de gigantescos impérios econômicos. A atitude do garoto significaria o mesmo que atirar no gerente do supermercado porque os preços aumentaram. A solução de problemas sistêmicos só pode ocorrer por meio de ações sistêmicas, que revolucionem o modo de produção, que acabem com a propriedade privada dos bens de consumo, derrubem o modelo econômico e garantam não apenas saúde, mas moradia, alimentação, segurança e transporte para todos. Somente essas mudanças poderão retirar o cidadão comum da condição de refém de um sistema ineficiente e incapaz de gerar bem-estar para a grande maioria da população.

Se alguma lição podemos tirar da morte brutal de um empresário do ramo da saúde é que a insatisfação da população com um modelo que lucra com a doença está chegando no seu limite. Por isso é preciso que algo seja feito para mudar esta realidade, antes que atitudes desesperadas como essa se repitam. Não haverá seguranças suficientes para proteger pessoas tão odiadas, representantes da falência do capitalismo em oferecer dignidade aos doentes. Entretanto, sair por aí matando empresários como pura expressão de ódio, indignação e desespero jamais será o melhor caminho.

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Desejo de Matar

O Brasil inteiro ficou chocado, na última semana, quando surgiram nas telas da TV as cenas de assaltos cometidos por grupos de jovens nas ruas de Copacabana. Impossível não se identificar com o horror das vítimas, muitas delas meninas, que foram espancadas pelos meliantes. Nas cenas, a população parece indefesa, sem ação, atônita e sem qualquer proteção das forças policiais.

A reação nas ruas e nas redes sociais foi de indignação. Brotaram na Internet os conhecidos jargões da extrema-direita, exigindo desde espancamentos até linchamentos, pena de morte e mesmo a execução sumária dos assaltantes. A elite da extrema-direita vociferou sua previsível violência contra os delinquentes, mas a imprensa burguesa também foi igualmente incisiva. Alguns lembraram do caso do rapaz despido e amarrado a um poste após um assalto frustrado, quando até setores da imprensa aplaudiram a ação dos populares.

Ato contínuo aos arrastões no Rio de Janeiro, lutadores de Jiu-jitsu apareceram em cena oferecendo-se como proteção à população, agindo como vingadores, heróis acima da lei, salvadores dos fracos e indefesos habitantes do Rio. Assim, foram criados “comandos” populares de rapazes musculosos, que foram filmados espancando suspeitos (normalmente os pobres e pardos) e espalharam arbítrio, violência e um aroma de “Whey Protein” pelas ruas da cidade maravilhosa. Como Charles Bronson em “Desejo de Matar” – de 1974, um filme que contém as sementes do fascismo e do racismo – os lutadores do Rio acreditam na fábula de consertar uma sociedade com a ferramenta da vingança violenta. No filme, Charles Bronson produz um banho de sangue contra delinquentes (todos de pele escura) para vingar da forma mais cruel a morte da sua família. No início dos anos 80 este filme era um campeão das locadoras, e isso levou dois produtores israelenses (coincidência) a comprar os direitos da franquia, fazendo mais 4 filmes de sucesso.

Como sempre, estas reações da sociedade, carregadas de emocionalismo, levam a uma contenção imediata dos assaltos, mas invariavelmente passageira. Assim que os Comandos deixam de atuar, a normalidade dos abusos volta a ocorrer. E assim acontece porque continuamos a moralizar a questão, acreditando que esses ataques ocorrem pelo choque entre duas classes: as pessoas de bem (nós) e os bandidos, meliantes covardes e oportunistas. Continuamos a olhar para os bandidos como seres deformados, moralmente deteriorados, que usam de sua malícia e força para atacar pessoas inocentes pelo simples prazer de roubar e machucar. Acreditamos que se trata de uma questão moral, e não econômica, política e sistêmica.

É evidente que o aparecimento das “brigadas populares” , compostas por lutadores das academias do bairro, também se dá pela falência da segurança pública da cidade, controlada por uma polícia que está infiltrada em todos os níveis pela contravenção. Entretanto, a simples repressão destes marginais (e aqui uso no sentido de estarem “à margem”) pela polícia não seria uma solução muito melhor, apesar de produzir menos ataques discriminatórios – mas não muitos. 

Estes sujeitos, cansados de espiar pelos buracos do muro, resolvem invadir a festa do consumo como verdadeiros penetras, subtraindo dos desatentos as bugigangas que carregam. Quem não aceitar ainda leva um olho roxo. Por certo que não há como aplaudir como os pobres e excluídos do Rio de Janeiro decidem, de forma paroxística e desordenada, reclamar seu quinhão na festa do capitalismo usando as ferramentas do terror. Entretanto, não há como negar que uma sociedade de classes, onde a imensa maioria é expulsa do consumo (o caminho para a felicidade), é pródiga em produzir este tipo de reação. É improvável que se consiga manter por muito tempo tamanho desequilíbrio sem uma enorme força repressiva, mas também é justo esperar que muitos vão reagir – com maior ou menor violência, maior ou menor organização. Os assaltos no Rio de Janeiro tem suas raízes profundamente inseridas na terra fértil da desigualdade e da injustiça social. 

Da mesma forma, não é possível manter uma população de milhões de habitantes presa em um campo de concentração ao ar livre ou submetida à humilhação diária de espancamentos, prisões ilegais, abusos, desapropriações e assassinatos e não imaginar como natural a reação – até violenta e incontrolável – contra essa barbárie. Acreditar ser possível solucionar a situação na Palestina através da violência, seja pela eliminação do Hamas, a expulsão de toda a população restante ou até mesmo com a “solução final” – admitida por fascistas israelenses – é uma tolice, pois que a razão desse ódio é a invasão, o colonialismo e o imperialismo, da mesma forma que o ódio represados dos descamisados e favelados brasileiros é a traição do capitalismo ao seu desejo de participar da colheita dos frutos do trabalho. 

A solução, como sempre, está longe das alternativas paliativas. A brutalidade genocida de Israel e as brigadas de lutadores cariocas não podem solucionar problemas que não começaram na semana passada no Rio ou no 7 de outubro na Palestina; são doenças sociais ligadas à estrutura mais profunda e constitutiva de cada uma dessas realidades. Sem o fim do sionismo e do capitalismo nada será suficiente para dar fim à barbárie. Uma sociedade cuja matriz é perversa e onde a desigualdade é vista como natural será eternamente incapaz de solucionar a indignação dos excluídos através da violência. 

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Abraços

Alguém pediu pra eu fazer um post “bonitinho” sobre o tema e eu respondo que “não me peçam que eu lhes faça um post como se deve, suavemente limpo, muito limpo e muito leve, sons e palavras são navalhas, e eu não posso falar como convém, sem querer ferir ninguém.”

Só o que digo é que os espetáculos punitivistas expõem de nós sempre o que temos de pior. Nenhuma pessoa movida pelo sentimento de vingança fica bem na foto. O punitivista é sempre um espírito de direita, conservador, mesmo quando veste roupas de arco-íris, cor de rosa ou grita “paz”. A ideia de que “punições exemplares”, “penas emblemáticas” de “lavar a alma” podem produzir mudanças estruturais é uma ilusão que muitos acalentam. Não salvam uma vida sequer, não nos educam, não nos protegem, não nos fazem avançar, mas fazem surgir os “justiceiros”, os “vingadores”, personagens do radicalismo mais primitivo, cuja visão de mundo está baseada no binômio “crime e castigo”, que acredita na punição como elemento supremo da pedagogia. Punitivismo não funciona há 100 mil anos na cultura humana. Não seria agora que a pedagogia da dor passaria a ser válida. Se esse modelo tivesse efeitos positivos a aplicação da pena de morte teria feito sucesso e a palmatória não teria sido arquivada. A destruição e a vingança como propedêutica sempre fracassaram; a história ensina.

Comemorem, mas lembrem que nesta punição está escondido um segredo: por que ele, e não os outros famosos cujo crime foi idêntico, tanto nas características quanto na época em que ocorreu? Por que blindamos alguns enquanto outros são colocados na fogueira? Será porque o ataque é ao futebol – arte masculina em suas origens – enquanto outras artes seriam protegidas?

Fica a minha curiosidade…

Alguém também me pediu que interpretasse o abraço que os jogadores deram em Cuca no final da partida, assim como a defesa que fizeram de seu amigo e parceiro – mesmo sem mencionar o crime do qual é acusado. Respondi que se meu filho estivesse sendo acusado, culpado ou não, eu o abraçaria. Meu abraço significa o seguinte: “Mesmo que você tenha errado continua sendo alguém que amamos. Na boa e na ruim não vamos te abandonar.” Os jogadores abraçaram um amigo, não seu delito, muito menos um crime. Uma mãe, mas também um irmão, cuida dos seus mesmo (e principalmente) quando estes erram. Se formos deixar de abraçar as pessoas que cometeram delitos – e até crimes – restarão poucas pessoas para a gente abraçar. Eu mesmo sinto que seria privado eternamente desse cuidado e desse carinho. Quando a gente abraça um irmão o faz sem julgamentos. Você abraçaria Simone de Beauvoir ou Marie Curie pelo trabalho maravilhoso que fizeram pela humanidade?

Se você as abraçaria, mesmo sabendo quem foram, vai entender o que digo.

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Justiciamentos

linchamento 01

Sobre os justiciamentos populares…

“Qual a dificuldade de entender que qualquer criminoso, qualquer que seja o crime, tem direito a defesa e não pode ser maltratado? Fora isso teremos apenas justiciamentos, típicos de republiquetas onde a barbárie impera. O criminoso precisa pagar pelos seus crimes, mas a sociedade NÃO PODE ser mais doente que o sujeito. Para quem curte linchamentos, não esqueça que a civilização começa quando o estado de direito se impõem sobre a selvageria. Os crimes, quando comprovadamente cometidos, não podem ficar impunes e o meliante precisa ser afastado da sociedade.

O resto é apenas vingança de pessoas que, em essência, não diferem muito dele….

E por favor…. não aguento mais discurso de “vingadores” ao estilo “se fosse comigo…“, muito menos coisas como “leva pra casa“, “tem que pendurar num poste“, ou “tratam bem esses caras, mas…“. Chega. Estudem. Leiam o que diz a constituição de QUALQUER país civilizado. Esse tratamento digno com os criminosos ocorre em países como os Estados Unidos e na Europa, mas o que vocês preconizam existe no Zimbábue e na Nigéria.

Estou cheio de justiceiros que preferem viver na África do que na Suécia, desde que isso os beneficie. Tipo, os “outros” que se “ferrem”, o importante é manter meus privilégios.

Meu ponto de vista é que a civilização cobra caro a sua construção e manutenção, e o preço é entender que não se faz justiça maltratando o criminoso e nem jogando sobre ele nossas raivas e nossa indignação, carregadas de fúria cega. NENHUMA sociedade desenvolvida se consolidou sem antes passar pelo processo penoso de respeito às instituições em um esforço conjunto pela consolidação do estado de direito. Tratar com humanidade e respeito o criminoso NÃO SIGNIFICA desreconhecer a dor das vítimas, e nem MUITO MENOS perdoar os crimes por eles cometidos. Tratar com justiça não é tratar com crueldade e nem com violência.

A sociedade precisa ser pedagógica e não vingativa. Existem questões acima de qualquer debate, e entre elas estão os DIREITOS HUMANOS, que são elementos que cada um de nós carrega na essência de seu ser: não podem ser retirados por nenhuma circunstância ou contexto.”

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