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Lágrimas na Chuva

Esta é uma experiência corriqueira, ainda que eu creia que este drama é compartilhado por milhões de viventes como eu. Acordo de um sonho espetacular no meio da madrugada e penso demoradamente no que ocorreu na trama da qual sou espectador e protagonista ao mesmo tempo. Analiso seus mínimos detalhes, recordo as falas, os personagens e, quiçá, a própria música incidental que delineia e acompanha os movimentos de câmera com seus acordes envolventes. Interpreto suas múltiplas facetas segundo vários autores, Freud, Klein, Skinner, Lacan chegando até Pedro de Lara. Nada resiste ao escrutínio profundo da análise.

Dou risadas das incongruências lógicas do sonho, um humor involuntário que surge da tentativa do Ego em tomar as rédeas em um território que não lhe pertence. Finalmente faço um resumo mental da trama e dos significados psicológicos de cada tomada de cena e, já comprometido com a ideia de colocar o enredo no papel pela manhã, volto a dormir.

Ao acordar só o que me vem à mente é… “Eu vi coisas que vocês, humanos, nem iriam acreditar. Naves de ataque pegando fogo na constelação de Órion. Vi Raios-C resplandecendo no escuro perto do Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de acordar”. E aí, tudo vira poeira, fragmentos dispersos de luz perdidos no infinito cósmico.

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Distopias

Tomei contato com um debate interessante, que passa por Blade Runner, Matrix, O Exterminador do Futuro, O Dia Depois de Amanhã e Star Wars, entre outros: por que nossa literatura e nosso cinema insistem em desenhar futuros distópicos, desesperançosos, lúgubres, tristes e dramáticos? Por que não nos oferecem possibilidades para imaginar utopias ao estilo de Gene Roddenberry, que concebeu Jornada nas Estrelas a partir de uma perspectiva essencialmente otimista do futuro? Para ele a solução dos conflitos e do egoísmo na Terra nos levaria a conquistar o Espaço, a “Última Fronteira”, já que, em nosso planeta, estas barreiras já teriam sido derrubadas.

Minha amiga antropóloga Robbie Davis-Floyd (uma Trekker) me contava que a ideia de Roddenberry se baseava em uma proposta inovadora: a solução dos problemas do planeta estava no fim do consumismo (e com ele a sociedade de classes). Entretanto, esta revolução não viria pela escassez dos recursos finitos do planeta e a consequente convulsão social, mas através da tecnologia. Máquinas de recombinação molecular fariam com que fosse possível criar facilmente qualquer “coisa”, qualquer objeto, a partir de seus componentes básicos. Assim, ao simples apertar de um botão poderíamos criar um Stradivarius do século XVII, ou um Porsche 911 GT3, com o mesmo custo de um pacote de bananas, apenas recombinando matéria. Com isso as coisas – pela facilidade absoluta de aquisição – perderiam o valor, e a verdadeira riqueza (e o poder dela derivado) se tornaria o conhecimento.

Desta forma, resolvidos os problemas na Terra, a Enterprise partia da Terra para resolver os dramas do Universo. Todavia, Star Trek é uma exceção entre os filmes de ficção científica. Estes, quase sempre, mostram mundos degradados, destroçados, gelados e onde a luta é pela dura e heroica sobrevivência dos poucos remanescentes. Por que insistimos em apostar em um futuro de horror e perdição?

Acho que a resposta é até simples: não mostramos futuros bons e perfeitos no cinema porque eles não vendem, da mesma forma que as novelas só apresentam ao público partos dramáticos, cheios de correria, angústia, dor, sangue e drama, e jamais apresentam nascimentos tranquilos, domiciliares, rápidos e cercados de paz. Essa felicidade e esse bem estar não vendem, não nos mobilizam. A bem da verdade, nem Star Trek mostra isso; apenas aceita que resolvemos as diferenças na Terra, mas na distância do cosmos imperam ainda o egoísmo e a violência; e é lá que as tramas se desenrolam.

Experimente aparecer em um estúdio de Hollywood dizendo: “Quero apresentar um projeto de filme que se passa em 2222. Nesta época da humanidade tudo dá certo, ninguém explora ninguém, não há crimes e sequer temos roubos. O marxismo venceu, a fraternidade impera, somos irmãos de todos, há equidade entre pessoas e povos, exterminamos a violência bruta e não há barreiras ou bordas. Não há sentido para as guerras, etc…” John Lennon na veia, “imagine all the people”

A resposta dos diretores seria: “Desculpe, no seu filme não há diversão alguma, não há conflito e, portanto, não há solução que se possa imaginar. Seu mundo é como uma montanha russa em linha reta, sem quedas, sem sustos e sem pânico. Entretanto, somos movidos por essas emoções. Sem o pavor despertado pelas distopias a vida se torna insuportável; elas são o bode colocado na sala da realidade“.

A má notícia é que não há possibilidade de aguardarmos uma revolução tecnológica como a que ocorreu na fantasia de Jornada nas Estrelas para acabarmos com a sociedade de classes. Muito antes que seja possível recombinar átomos para criar a matéria que compões os objetos os recursos do planeta estarão escassos, os conflitos se multiplicarão e a tensão entre a diminuta classe burguesa e as multidões de operários, trabalhadores, miseráveis e famintos fará o mundo ascender a um modelo político e econômico superior. Gene Roddenberry por certo sonhou com uma fantasia de tecnologia redentora, mas a realidade material não suportará que o desnível criado pelo capitalismo continue até que ela seja realidade. O socialismo virá muito antes da Enterprise, do capitão Kirk e do Dr. Spock.

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Relevâncias

A partir de uma conversa com Andreia Coelho

Olha… tenho pensado muito nisso, sobre o tema recorrente, em especial para os velhos, da “ilusão da relevância“, ou a ideia de que somos muito mais importantes e imprescindíveis do que realmente somos. Eu percebo hoje – com um pouco de tristeza mas um certo alívio – que somos muito mais insignificantes para a engrenagem da vida do que fantasiamos. Não tenho mais dúvidas que o mundo se recuperaria da minha desaparição em não mais que uma fração de segundo.

Tal como a cauda de um cometa, deixamos em nosso rastro a poeira dos sonhos, fragmentos de ideias, recortes de frases, observações soltas, risadas, comentários tolos, lembranças vagas, histórias e imagens. Um dia, que via de regra chega rápido demais, ninguém mais lembrará de nós, como o velho que morre – mesmo estando morto – na animação “Coco”, da Disney.

Meus netos não conheceram meu avô, e as lembranças dele vão cessar quando eu desaparecer. Assim como eu em breve, suas memórias vão ficar nas páginas de um livro bolorento, guardado em uma gaveta, que talvez será encontrado por escafandristas de um oceano de gases, num milênio distante, quando a lua estiver mais próxima e o sol um gigante vermelho e brilhante.

Por mais que seja duro admitir, ninguém saberá de mim passadas tão somente duas gerações. Tudo que hoje penso, as ideias, as palavras, os amores estarão diluídos na memória da vida como… lágrimas na chuva – com o perdão do diálogo final de Blade Runner.

Então talvez apostar na imortalidade seja mesmo uma profunda perda de tempo. Quem sabe o valor está na colheita das bergamotas, na corrida das crianças, no dormir de conchinha, ao rir de uma comédia pastelão, ou ao chorar por um drama. Quem sabe seja esse o segredo da vida e não o o sonho de imortalidade e de consciência perene.

De qualquer maneira, seja qual for a crença que nos motiva, vale mais a pena curtir o que a vida nos oferece agora de prazer e transcendência do que o sonho dourado de uma relevância infinita.

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Lágrimas na Chuva

A letra desenhada e curvilínea sempre foi esteticamente perfeita. “Letra de professora”, dizíamos. Ao lado das colunas impressas de tantos livros ela rabiscava suas ideia, opiniões e pensamentos. O livro se coloria, se avolumava, ganhava uma coautoria e assim se engrandecia. Mais do que ler, minha mãe os estudava, dialogando com os autores de forma pessoal e íntima.

Os livros na estante olham para seu corpo envelhecido ressentidos pela sua ausência. Reclamam a falta dos rabiscos, das críticas e do carinho delicado que sua letra por décadas trilhou no papel já amarelado. Choram sua falta e reclamam seu olhar.

– Sabe estes livros aqui na sua frente? diz meu pai. Você os leu a todos!!

Ela sorri, um pouco sem jeito. Olha com surpresa para o arranjo de volumes encadernados e do fundo de seu olhar tenta puxar uma lembrança fugidia, uma ponte para alcançar a lembrança que lhe escapa.

– É mesmo? Que impressionante!!, diz ela com seu sorriso envergonhado.

Aquela letra tão linda, todos aqueles livros, aquelas ideias, todos aqueles amores. Todos desaparecem como lágrimas na chuva.

“Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.” (Discurso final Blade Runner)

No lusco-fusco do quarto seu olhar estático mira o teto como a viajar pelo tempo a fazer-lhe perguntas. Ponho a mão em sua testa e me aproximo de seu rosto, que se volta para o meu.

Mãe, sabe quem sou eu?, pergunto.

Ela esboça um sorriso e de pronto responde “É claro…

– Então diga quem sou, insisto

Ela interrompe o sorriso, seu rosto fica mais sério, franze as sobrancelhas e aperta as vistas.

– Eu não vou pergatilhar nomes…

Pergatilhar é apenas mais um dos seus curiosos neologismos. Talvez – como saber? – seja um verbo comum, quase banal, usado nesse lugar que seus olhos visitam enquanto dissimuladamente vasculham o teto a procura de lembranças.

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Belo e Triste

Blade Runner
Agarrado à vida, o replicante espera o derradeiro momento.

Como pode algo ser tão bonito e tão triste ao mesmo tempo?

E porque por tantas vezes tais momentos se conjugam, bizarramente acoplados na teia do tempo? São eventos que parecem nos falar de uma beleza estranha, que se esconde atrás de momentos tão solidamente tristes a ponto de baterem contra o nosso peito como um tijolo arremessado pelo destino.

Mas, se a escolha do olhar ainda me pertence, prefiro enxergar aquilo que verte de belo e resplandecente no breu das lágrimas.

Vi Blade Runner, de Ridley Scott, na adolescência, e a cena final nunca me saiu da memória. O desespero do protagonista, o replicante Roy Batty – o melhor trabalho do Rutger Hauer para o cinema – para descobrir o sentido da vida, que só poderia ser elucidado através da morte, sempre me tocou de uma forma muito especial. As memórias, os amores, as tristezas, as alegrias, as perdas, os fracassos e as vitórias, todas elas desaparecendo, diluindo-se como lágrimas na chuva no triste momento do “desligamento”. E o apego à vida, qualquer uma, mesmo à vida daquele a quem pretendia matar. O replicante salvou seu desafeto porque viu nele algo precioso demais para ser desperdiçado: a própria Vida, preciosa por ser frágil, que agora se esvaía melancolicamente de seu corpo de máquina. Momento épico do cinema…

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