Garrett resgatou o cigarro perdido no bolso do casaco amassado e olhou-o como quem tenta descobrir se ainda presta. Pediu ao barman uma caixa de fósforos e acendeu seu último, anunciando que não se demoraria. Deu duas baforadas e o deixou repousando entre os dedos, enquanto tamborilava no balcão uma música que ele cantava solitariamente em sua própria cabeça, produzindo pequenas ondas no scotch à sua frente. Depois de uma pequena pausa, voltou seu olhar para Elsie e falou com a voz rasgada pelas duas carteiras diárias de cigarro.
– Não seja tola, garota. Não é a justiça que lhe move, Elsie, é o ódio. Você adora se enganar com sua caridade, sua postura superior e sua defesa dos oprimidos. Mas sua bondade não passa de uma grosseira encenação. Sua justiça é uma farsa, tão bem montada que engana a todos, menos o seu velho Garrett.
Elsie deixou que uns poucos segundos passassem, o suficiente para escutar a máquina de café girar seu motor na mesinha à frente do barista. Repousou suas mãos no guardanapo à frente e olhou Garrett por cima dos óculos de aros redondos.
– Nada do que eu lhe diga o fará mudar de ideia, não é? Você me julga por si e acredita nessa mentira porque é a matéria que lhe constitui. Não consegue enxergar para além dos seus limites. Você é um velho patético, Garrett. Não passa de um bêbado, uma fraude.
Garrett não segurou uma risada, misturada com uma tosse carregada.
– Sua arrogância nada mais é do que uma metástase do seu ressentimento, darling. Infelizmente não há sinceridade no amor que você pensa dedicar aos desvalidos, sequer um real desejo de que eles abandonem o mundo de privação que os sufoca. Ele é puro teatro, mas você finge tão bem que engana a si mesma. Sua caridade é a fantasia traiçoeira do desprezo que nutre pelo mundo. Quando confrontada sua essência se reduz a isso.
Apontou o dedo indicador para o cinzeiro à frente onde as cinzas do cigarro repousavam indiferentes e amorfas. Garret se levantou e acenou para o barman, deixando o local sem dizer mais nada.
Austin MacKay, “Into the Depths of Nothing”, ed. Parliament, pag 135
Austin Phillip MacKay é um escritor escocês, nascido em Iverness em 1965. Estudou artes dramáticas e literatura na University of Aberdeen, onde passou a viver após concluir seus estudos secundários. Filho de um ator de teatro e uma enfermeira, dedicou-se muito cedo a escrever sobre ficção científica, uma de suas maiores paixões (além do Celtics). Seu primeiro livro foi lançado em 1990 e se chamava “When there is Only Dust” (Quando houver apenas pó), uma distopia que combina ficção científica, catastrofismo, futuros caóticos e pessimismo escocês. Foi bem recebido pela crítica de seu país, recebendo um prêmio pela obra, o “Booker Prize”, premio escocês de literatura na categoria jovem escritor. Também colaborou com inúmeras revistas especializadas em contos de ficção, como “UFO Scott”, “Outer Paradise” e uma que ele mesmo criou com o novelista Noel Burr “SOS to Earth”. Em “Into the Depths of Nothing” (Nas Profundezas do Nada) Austin conta a história da relação tempestuosa entre dois cientistas responsáveis pelo “Projeto Nova Vida”, uma força tarefa internacional de colonização de outros planetas. Garrett é um cínico, alcoolista, depressivo e gênio projetista da NOAH, nave que carregará milhares de pessoas para a colonização de um planeta que ainda mantém condições de habitabilidade. Elsie é a executiva que está responsável pela gigantesca seleção de passageiros que terão o direito de embarcar nessa missão. Os embates entre ambos se dão na contraposição do idealismo romântico de uma e o pragmatismo depressivo do outro. Na tensão desses encontros se forma a conexão magnética entre ambos, que os coloca em contraponto diante da tragédia que se avizinha. Austin é casado com Leslie Thorpe e tem 3 filhos: James, Cameron e Alba. Mora em Edimburgo – Escócia.
Mais uma vez eu estava saindo do Bazaar sem comprar o que tinha em mente. “Não temos seu número”, disse a simpática vendedora. Ok, pensei eu. Afinal, para ser bem franco, eu não tinha mesmo nenhuma necessidade de comprar nada, muito menos um “tênis para longas caminhadas” em promoção. Bastou a menina da loja me dizer que não poderia satisfazer meu impulso consumista e um alívio tomou conta de mim. Melhor assim. Volto para casa de mãos vazias, mas com a consciência limpa.
Ao dobrar o corredor da cafeteria em direção ao estacionamento eu percebi meu colega Tarik sentado sozinho em uma mesa, absorto com seu celular nas mãos. Encontrei Tarik há muitos anos, ainda na faculdade, e fui o responsável direto pela sua entrada no nosso grupo de trabalho. Conhecia seu serviço e gostava de sua dedicação e iniciativa. Achei, desde o início, que ele poderia somar no trabalho que estávamos iniciando e acreditei que sua presença poderia acrescentar dinamismo aos nossos projetos.
Desviei meu caminho da saída e me dirigi à sua mesa.
– Tarik, tudo bem? Como vai?
Ele me olhou com surpresa, mas de forma pouco expressiva. Eu me sentei à sua frente enquanto ele me dava um “olá” sem muito esforço. Animado pelo encontro fortuito eu lhe disse:
– Eu precisava mesmo conversar contigo rapidamente sobre o que pretendemos fazer no departamento. Estamos com planos importantes e gostaria muito de saber sua opinião e sua posição sobre o que decidiremos na próxima quarta-feira.
Tarik me olhou impassível por alguns instantes e após esta pausa disse:
– Ok, aguarde um instante. Vou buscar o café.
Levantou-se da cadeira e dirigiu-se à cafeteria à frente. Passados alguns instantes ele voltou com uma bandeja que continha uma xícara de café. Olhou-me nos olhos e disse:
– Bem, o que você queria mesmo me dizer?
Foi naquele momento, quando me dirigiu a pergunta, que eu entendi o que, até então, eu havia sido incapaz de perceber. Imediatamente tudo passou a fazer sentido e fui tomado por grande constrangimento. Literalmente eu não sabia o que dizer ou fazer. Por certo que ali estava mais um gigantesco erro meu: uma arrogância imensa e uma profunda incapacidade de enxergar por detrás do meramente aparente à visão desarmada. Fui envolvido por uma nuvem escura de desapontamento, uma vergonha súbita e constrangedora. Baixei o olhar e o fixei mais uma vez no café, seus matizes de marrom e negro, seu vapor hipnótico e seu odor cativante.
– Nada, Tarik, nada. Não era nada. Olha, eu falo com você outra hora, talvez na quarta-feira, antes da reunião. Preciso sair agora. Foi um prazer lhe ver. Mande um abraço para Laila.
Estiquei a mão e cumprimentei Tarik antes de sair. Senti em sua mão um aperto frouxo. Olhei para ele à minha frente e pensei: “Que tipo de pessoa poderia comprar uma única xícara de café ao conversar com um amigo e tomá-la sozinho, sem qualquer constrangimento?”
A resposta era simples: alguém que tinha por mim profundo desprezo. Agora estava explicada a reação de Tarik ao me ver: ele estava claramente constrangido com minha falta de percepção dos seus sentimentos. Eu nunca havia percebido o ódio que Tarik nutria por mim, e o quanto ele me desconsiderava como colega. Estivera ali, por todos esse tempo, e eu nunca fui capaz de enxergar.
Por muitos anos depois desse dia continuei sentindo o gosto amargo da vergonha ao me lembrar de tamanha desatenção. Infelizmente ela aparece com mais frequência no momento em que fixo meus olhos em uma xícara fumegante de café.
Aisha Boukhalfa, “Oásis de Ideias”, ed. Sextante, pág 135
Aisha Boukhalfa é uma escritora argelina nascida em Batna, em 1975. Fez seus estudos em Argel na Benyoucef Benkhedda Universidade de Argel, tendo se graduado em jornalismo em 2005. A partir de então tem se ocupado com o movimento feminista argelino, a participação no partido Comunista da Argélia e seu trabalho como doula atendendo partos nas cidades de Argel, Blidas e Boumerdas. Por seu ativismo feminista e seu trabalho como doula ela acabou se tornando cronista, e suas histórias acabaram se transformando em livro. “Oásis de Ideias” é uma coletânea de histórias sobre suas experiências, em especial com o trabalho com gestantes em um país onde os direitos reprodutivos e sexuais continuam muito defasados quando comparados com a Europa ocidental. Suas crônicas são distribuídas através do seu blog pessoal e do Facebook. Mora em Argel e é casada com o enfermeiro Omar Boukhalfa, com quem tem uma filha nascida de parto domiciliar chamada Iasmin.
Sim, mesmo que me falem de todos os outros amores, o amor do casal estará sempre em primeiro lugar porque é o único dos amores do qual somos dependentes para a continuidade da espécie. Se eu tivesse que proteger um, seria esse. Os outros, inobstante serem importantes para a vida de comunidade, não nos garantem a reprodução. Já passei pela experiência de pai de crianças, e sei enquanto minha nova função de avô é gratificante e significativa, porém certamente ela é acessória.
Eu concordo que estas formas contemporâneas de poliamor, trisal e outras arquiteturas são “mais do mesmo”; no fim das contas as mulheres biológicas vão engravidar de alguma forma e os cuidados dessas crianças será distribuído de forma não uniforme para quem estiver em volta. Se houver afeto como laço, tanto melhor. “O amor é isso que uma mulher devota ao seu filho, e todos os outros amores são dele derivados”. Nem bom e nem mau, apenas uma força coercitiva extremamente poderosa. Feita assim mesmo, para ser violenta e avassaladora, pois que desta energia depende toda a vida.
Ardian Kovaçi, “Romancë, cigare dhe vodka” (Romance, cigarro e vodka), ed. Paqe dhe Drejtesi, pág.. 135
Ardian Topalli Kovaçi é um escritor e terapeuta albanês nascido em Tirana em 1957. Filho de agricultores viveu uma infância de pobreza durante o governo socialista de Enver Hoxha, mas pôde estudar psicologia na Universidade em Tirana. Dedicou -se à clínica privada nos primeiros anos de formado vivendo na capital, enquanto escrevia para os jornais da Sociedade Albanesa de Psicologia. A coletânea desses artigos compõe seu livro mais conhecido, “Sob as Ruínas da Tabacaria”, de 2000, onde faz uma crítica mordaz ao totalitarismo albanês, tendo como cenário a famosa tabacaria onde Enver Hoxha criou a primeira célula do Partido Comunista da Albânia. Trabalha como colunista do Lajmi i Fundir, escrevendo sobre amor e relacionamentos. É divorciado e tem dois filhos.
Martyn pediu uma cerveja e dois copos ao garçom e ajeitou-se na cadeira do restaurante, como que a procurar espaço para poder dizer o que queria.
– Terry, você lembra da minha queda na cozinha, não? O hospital, a mancha roxa, o seu colega médico mal educado, a minha bronca. Pois eu lembro muito bem, parceiro, inclusive da sua gentileza em me buscar em casa na madrugada. Nunca pude lhe agradecer o suficiente por isso.
Ensaiei um “que é isso, amigo é prá essas coisas”, mas ele me interrompeu com um tapinha no braço.
– Era mentira, Terry. Era tudo mentira. Hoje resolvi lhe contar a história toda. Não fique bravo comigo, tenho certeza que você vai entender as minhas razões para ocultar a verdade.
Mentalmente minha memória viajou dez anos para trás, e pousou exatamente no dia em que, no início da madrugada, Martyn me ligou pedindo socorro. O ponteiro maior do relógio já havia completado quase uma volta inteira depois da meia noite quando o telefone berrou nos meus ouvidos enquanto eu saboreava Nabocov na cama. Por sorte Ellen continuou dormindo sem se impressionar com a estridência do aparelho. Seu sono pesado era uma lenda conhecida por toda a sua família. No dia em que o mundo acabar ela só vai acordar do outro lado da vida. Imaginei que se tratava de uma chamada do hospital, mas eu não estava de sobreaviso.
– Terry, preciso de ajuda. Não é uma emergência, mas preciso que você venha aqui em casa agora.
– Martyn, é você? Alguma coisa que eu deva me preocupar?
– Um acidente doméstico, não precisa se preocupar tanto, mas não há como lidar com isso sozinho. Você pode vir aqui? Tipo, agora?
– Claro, claro. Fique aí. Espere só eu me vestir.
Martyn é meu amigo de infância, talvez meu único grande amigo. Crescemos juntos, e frequentamos as mesmas escolas apesar de eu ser mais velho uma meia dúzia de anos. Seu irmão, Mark, foi meu colega de escola, na mesma sala de aula, mas ele acabou se afastando de mim pelas derrapagens que a vida dá. Não foi o caso com Martyn. Fizemos muitas coisas juntos, torcíamos pelo mesmo clube, festas, conversas, bebedeiras, filosofias… mas também porque tínhamos uma perspectiva de vida igualmente sombria e pessimista. Nossas sombras eram carregadas com as mesmas tonalidades de cinza.
Martyn era casado com Anna, uma mulher inteligente e ambiciosa. Trabalhava na Bolsa de Valores e era uma espécie de expert em alguma coisa que ela um dia me explicou, mas não guardei na memória. Minha cabeça de cirurgião não tem nenhum contato com o mundo do comércio, valores, poupança, ativos, lucros. Em verdade, sequer o dinheiro exercia qualquer atrativo especial para mim. Minha mulher Ellen reclamava que eu poderia ganhar muito mais com as minhas cirurgias se tivesse um pouco mais de habilidade para cobrar, mas não há dúvida que nessa área sempre fui um fracasso.
O prédio onde Martyn morava não ficava mais do que 15 minutos de distância. Quando cheguei lá ele estava parado na rua, na frente do edifício. Achei estranho que ele não ficasse dentro de casa esperando minha chegada, mas talvez não quisesse acordar Anna. Quando parei o carro ao seu lado na rua percebi que ele abriu a porta de forma um pouco estranha. Deduzi que havia machucado o braço
– Então Martyn, o que houve? Foi algo no braço?
Ele deu um meio sorriso.
– Você sabe o quanto consigo ser desajeitado quando quero. Fui pegar algo na prateleira da cozinha e desabei do banquinho que coloquei para subir. Bati com o pulso na borda do balcão. Já faz umas duas horas, mas agora a dor apertou e eu temo que tenha quebrado algo.
– Posso ver?
Meu amigo levantou com cuidado a manga da camisa e pude ver uma grande mancha que coloria de roxo a parte inferior do seu braço direito. Era grande, e mostrava que algum vaso havia se rompido.
– Martyn, não sou ortopedista, mas sei que isso aí é uma fratura. Sua religião faz alguma restrição a amputações?
Martyn sorriu do meu característico humor negro. Em seguida explicou que não pensava me chamar mas não conseguia nem segurar a chave do carro, quanto mais dirigir até o hospital.
– Não sabia o que fazer, então resolvi lhe chamar. Sei que só mesmo um outro idiota como você entenderia minha patetice.
Rimos um pouco e lembramos de alguns fatos engraçados que passamos juntos na escola. Martyn, entretanto, parecia mais sério do que de costume, mas acreditei que sua face circunspecta era o reflexo da dor que por certo estava sentindo. Ao chegarmos ao hospital não tardou em ser atendido. Pedi para entrar junto e me apresentei como médico. Aquele era o hospital em que eu fizera minhas primeiras cirurgias, meus primeiros atendimentos de emergência há mais de 20 anos. Ainda guardava nas narinas o cheiro das salas de clínica, onde o odor de sangue e vômito se mistura com os desinfetantes poderosos utilizados. Martyn explicou para o plantonista da ortopedia o que havia ocorrido. Este, depois de um breve exame físico, pediu uma radiografia.
Alguns minutos depois ele voltou com a radiografia e, com um sorriso no rosto, anunciou:
– Muito bem Sr. Martyn, sua travessura foi premiada. Conseguiu o que desejava: uma fratura no rádio distal. Agora o senhor vai ficar alguns dias sem fazer os deveres da escola.
Martyn fuzilou o médico com os olhos e disparou:
– Quem sabe o senhor se mete com a sua vida, seus pacientes, e me deixa em paz? Quem é você para vir aqui debochar de mim? Vá fazer piadas para a sua turma!!
Segurei o braço do meu amigo e o puxei para trás. O ortopedista ficou perplexo e balbuciava coisas como “hei, eu estava só brincando, calma, desculpe”. Coloquei Martyn sentado em uma cadeira próxima e fui falar com meu colega médico.
– O que há com seu amigo? Não sabe brincar?
Expliquei que ele deveria estar com dor e que o desculpasse. O médico fez um muxoxo e disse que ele seria transferido para uma sala ao lado onde colocariam uma tala, mas que deveria procurar uma clínica em uma semana para o gesso definitivo. Entregou-me uma receita de analgésicos, despediu-se e saiu caminhando pelos corredores do hospital.
Perguntei a Martyn o que tinha acontecido e por que dera aquela resposta.
– Ahh, desculpe aí Terry, mas não aguento esses seus colegas. São uns arrogantes, metidos a besta. Ficam fazendo piadinhas com os desastres que acontecem com as pessoas. Agem como se fossem superiores, como se fossem adultos rodeados de crianças travessas; eles são os infalíveis enquanto nós somos os tolos e idiotas.
Pedi que tivesse calma, e ele deu de ombros. Caminhamos até o estacionamento e pegamos o meu carro. Já passavam das 3h e eu tinha que atender o ambulatório pela manhã. Ele ficou em silêncio até chegarmos no seu edifício. Quando estacionamos na frente ele olhou para cima pela janela do carro, para saber se havia luz no apartamento.
– Não quero acordar Anna, Terry. Obrigado por tudo. Não sei o que dizer e nem como lhe agradecer. Falamos depois. Boa noite e durma bem.
Dirigi e voltei para casa. Entrei no quarto e Ellen permanecia dormindo. Lolita teria que esperar mais um dia para que eu voltasse a me ocupar dela. A lembrança dessa cena permaneceu adormecida, num canto da gaveta de memórias, e foi despertada apenas agora pelas palavras de Martyn. Já haviam se passado dez anos da cena.
– Foi a estatueta e não uma queda do banquinho numa travessura na cozinha, Terry. E por trás da estatueta estava Anna.
Pedi que explicasse melhor.
– Foi Anna, Terry. Foi apenas mais um acesso de fúria contra mim. Durante anos eu havia me acostumado às suas agressões, e colocava na conta da vida estressante que ela tinha na Bolsa de Valores. Aquele dia havia sido especialmente ruim para ela. Perdeu dinheiro e clientes. Estava frustrada. Eu fui pegar pratos para a gente jantar e um deles escorregou da minha mão e caiu. Era um prato que havia ganhado de sua mãe no enxoval do nosso casamento. Aquilo a enfureceu. Passou a gritar como se fosse a maior tragédia da sua vida. Quando tentei acalmá-la passou a mão na estatueta que estava na sala e a jogou contra o meu rosto. Sabe aquela meia face pedindo silêncio? Essa mesma. Tive tempo apenas de me defender com a mão. Ela se assustou com o som do objeto batendo contra o meu braço, mas mesmo assim nada disse e se trancou no quarto. Fiquei mais de uma hora sentado na sala esperando a dor passar, e só então resolvi ligar para você. Eu até pretendia lhe contar, mas não queria que você me julgasse e muito menos que tivesse sentimentos contra Anna. Bem sei o quanto você gostava dela e não desejava que esse acidente se tornasse uma barreira entre vocês.
Eu apenas escutava e não me atrevia a dizer nada. Martyn continuou.
– Essa não foi a primeira e nem a última agressão que sofri. Sequer foi a mais dolorosa. As violências morais eram muito piores e muito mais cruéis. Eu tinha vergonha daquele comportamento dela mas, como uma boa vítima, acreditava que eu tinha culpa, que deveria ganhar mais, não quebrar coisas, ser mais impositivo no trabalho ou ser mais romântico. Sei lá… a gente não sabe exatamente o que nos falta, mas acredita carregar essa culpa, pelo menos em parte.
Martyn continuava seu relato e eu não ousava interrompê-lo.
– As violências eram diárias e eu não sabia o que fazer. As brigas continuaram até eu descobrir do caso que ela teve com Peter. Essa foi a gota d’água, e foi quando eu fui até sua casa e pedi para dormir lá por uma noite. Na semana seguinte nos separamos.
– Sim, lembro bem que você anunciou o fim do casamento e me pediu para não insistir ou tentar contemporizar. Percebi que algo de muito sério havia ocorrido e resolvi oferecer apenas a minha mão para ajudar.
– Esta foi a derradeira violência, mas as brigas foram um problema que perdurou a exata extensão do nosso casamento. Depois disso nos separamos, eu casei de novo e nunca mais a vi. Queria lhe dizer mais uma vez obrigado pela sua compreensão, por não ter insistido com perguntas quando eu não tinha condições para responder. Obrigado por ter ficado em silêncio ao meu lado; significou muito para mim. Eu nunca falei disso para ninguém, e por razões óbvias. Um homem apanhar em casa é algo vergonhoso em uma cultura machista. Nunca falei para ninguém desses fatos, e jamais ameacei Anna com essa verdade, mesmo quando ela tentou me tomar um dinheiro indevido em nossa separação. A minha vergonha era tanta que nenhum dinheiro pagaria isso.
Eu continuava a olhar para Martyn para entender o significado dessa confissão. Não acredito em casos de violência e abuso onde não exista a participação de ambos na construção do enlace doentio, e no caso de Martyn não poderia ser diferente. Mas por certo que ele era a parte frágil do casal, o espírito mais dócil e submisso. No seu caso ficou bem claro como a questão física – aparte de ser importante – não é o único determinante para os casos de violência, inclusive física. Agora, depois da separação de Martyn e Anna (por quem eu até nutria amizade e afeto), ficou bem mais clara a verdadeira imagem de Anna. Em minha mente ela era uma perversa de funcionamento neurótico, com um longo histórico de perversão e abandono na família. Afastada de ambos os pais foi criada pela avó, que também recebeu seu quinhão de maus trator por parte dela. O que ela fez com Martyn durante os anos em que estiveram casados teve características de pura crueldade. Até hoje, sempre que penso em Anna, imediatamente me vem à mente a personagem de Juliette Binoche que contracena com Jeremy Irons no filme “Perdas e Danos”. Um filme brilhante e sombrio, que eu sempre lembro, mas não consigo rever. As histórias de mulheres agressoras não são muito exploradas em um mundo infestado de machismo, e numa cultura violentamente patriarcal a escuridão que emana da agressividade masculina eclipsa a sombra da violência feminina.
Martyn recebeu as garrafas da mão do garçom que imediatamente as abriu. Serviu meu copo e saboreou um pouco da cerveja, enquanto olhava para a rua cinzenta que aos poucos perdia os últimos raios de sol. Violências domésticas com “sinal trocado” é um tema que eu tenho contato há muitos anos por causa de alguns textos que li e por inúmeras histórias de consultório. No ambiente feminino em que circulei durante décadas o tema é tabu. Falar de “misandria” é como falar de “racismo reverso”; quando eu tocava no assunto a reação variava do escárnio à fúria, em especial perto de colegas feministas. Entretanto foram tantos os casos de abuso contra homens que eu acabei por me interessar pelo tema. Apesar de ser um assunto que me atrai reconheço que no contexto em que vivemos este será por séculos um assunto “marginal”, mas não menos doloroso.
Toquei no ombro de Martyn e disse com meus olhos o que ele já sabia: “Conte comigo sempre, parceiro. É para isso que servem os amigos”.
William F. Prescott, “So down there I can’t even see” (Tão lá em baixo que nem consigo ver), ed. Panacea, pág. 135
William Francis Prescott é um escritor, ensaísta, jornalista e produtor teatral americano nascido em Westbrook no Maine em 1965. Filho de um pastor protestante e uma enfermeira ele começou a escrever desde muito cedo para os jornais da escola. Em 1983 foi estudar na University of Maine em Augusta, onde cursou jornalismo. Logo depois da graduação casou-se com Lorraine Madison, e mudaram-se em 1995 para Nova York para trabalhar na Revista New Yorker como assessor de Roger Angell, quando então começou a se dedicar à reportagem esportiva, especialmente o Baseball. Pelos contatos na revista tornou-se amigo de Woody Allen, uma amizade que perdura até hoje. Escreveu seu primeiro livro de ficção, “Até que horas posso ficar?” em 1998 que logo se tornou um sucesso de público e de crítica, para posteriormente fazer carreira na Broadway, tendo sido estrelado por Patrick Wilson no papel do coronel Samuel Bakerston. Seu segundo livro, também uma comédia dramática, foi “Azul não lhe cai bem”, onde narra as desventuras de uma vedete do teatro de revista que se envolve com um cirurgião plástico apenas para conseguir uma cirurgia de mamas por preços módicos, mas percebe que seu namorado é um traficante de drogas cuja clínica médica é apenas uma fachada. Seu terceiro livro foi “Tão lá em baixo que nem consigo ver”, que é seu único livro de contos, recolhidos de histórias verídicas que colheu enquanto jornalista no New Yorker. Mora em Washington com sua esposa Lorraine e os filhos Jeremia e Alicia
Sentado na cadeira à frente da escrivaninha de Mark eu não tinha a exata noção do que ele desejava comigo. Poderia ser apenas algum informe novo sobre nossa intervenção no Parque Halliburton e todas as questões ambientais envolvidas, que fortuitamente atrasaram a execução do projeto. Como uma ONG de proteção ambiental, era nossa tarefa combater os assentamentos irregulares que pudessem colocar em risco a delicada natureza que ainda sobrevivia em nossa cidade. Imaginei que Mark deveria estar ocupado desde nossa última reunião, há uma semana, quando discutimos a possibilidade de um patrocínio para nossa ação de proteção do banhado, o rio e as salamandras do Condado de Lippville. O oferecimento partiu do instituto “Century”, controlado pelo bilionário de origem romena Atanase Ardelean, conhecido por suas ações predatórias na bolsa de valores americana. Para além disso, é um pródigo financiador de rebeliões neoliberais, o que faz das doações a entidades identitárias uma perfeita cortina de fumaça a encobrir suas ações de reforço ao capitalismo sem fronteiras e sem barreiras, modelo que tanto admira.
Por certo que uma instituição como a nossa, a “Climate Green Challenge”, composta de ativistas que doam seu tempo e seus esforços para a construção de uma sociedade em harmonia com a natureza, precisa de ajuda – em especial de dinheiro. Entretanto, a Fundação Century nunca me pareceu confiável, em especial porque seu controlador é uma figura sinistra, ligada a ataques financeiros, cujas repercussões desestabilizam países inteiros. Não creio que seja adequado ou sensato valer-se do dinheiro de um sujeito que se tornou bilionário pela exploração dos trabalhadores, através do tráfego de influências e incentivando a miséria capitalista disseminada pelo mundo.
Na reunião passada, nossa colega Jesse expôs sua visão positiva sobre o aporte financeiro da Fundação Century para os nossos projetos, em especial a proteção do Parque Halliburton. Falou que muitas outras instituições já foram beneficiadas por este tipo de “grant” e que seria tolice não pleitear esse dinheiro; afinal, não era uma quantia advinda do crime e não estamos em posição de recusar ofertas. Eu escutei sua posição e resolvi responder com a visão que tenho sobre a Century e sobre o próprio Atanase. Minha opinião foi expressa em poucos minutos, porque nosso chefe Mark a todo tempo sinalizava para que eu a interrompesse em função do pouco tempo que tínhamos para encerrar o encontro. De qualquer modo, deixei muito claro que a situação era eticamente delicada, pois o envolvimento de uma ONG de ecologia com um bilionário internacional envolvido em inúmeras ações controversas poderia nos causar constrangimentos no futuro.
A reunião terminou depois de várias outros assuntos terem sido tratados. Desde aquele momento – e até antes disso – ficou claro para mim que eu era uma voz dissonante de todo o grupo. É bem provável que ninguém além de mim tinha informações mais detalhadas sobre a parte sombria da Fundação Century e muito menos sobre as controvérsias mais sérias a respeito do magnata Atanase. Para meus colegas tratava-se de uma instituição “do bem” e Atanase não passava de um filantropo moderno e progressista. Sabia eu também que, mais do que aceitar ou não esse tipo de verba, era preciso que todos avaliássemos com cuidado todos os pontos de vista, as perspectivas e as repercussões dessa iniciativa.
Finda a reunião tive a sensação que Jesse havia se sentido desconfortável. Quando questionei nossa possível união com a Fundação Century ela pareceu ter se sentido pessoalmente atingida. Afinal, a ideia partiu dela, e ela o fez com a melhor das intenções. Senti a necessidade de explicar a minha forma de enxergar a questão. Como tenho seu contato no telefone resolvi mandar uma mensagem para ela à noite do mesmo dia.
Conversa com Jesse
“Não quero mais polemizar sobre este tema, pois acho que apenas atrapalharei as decisões para serem tomadas pelo grupo, mas aqui está meu posicionamento em relação ao Atanase e em particular sobre o tema das suas ações em nível internacional”.
Assim comecei minha comunicação com ela, e depois disso mandei um texto elaborado sobre o histórico de Atanase Ardelean e sua instituição, mas é óbvio que o fiz diante da minha perspectiva marxista e anti-imperialista. Anexei posteriormente um vídeo explicativo de como essas organizações – como a Fundação Century e similares – podem ter intromissões deletérias nos países onde se estabelecem.
Ela respondeu de forma educada e ofereceu também suas explicações. Mandou um vídeo sobre a instituição de Atanase e a explicação sobre algumas de suas obras mais importantes. Percebi que suas informações não eram tão elaboradas quanto as informações que eu tinha, e ela parecia ter uma visão bem próxima do que eu classificaria como “senso comum” sobre o tema: Instituição do bem, bilionário generoso, progressista, a favor da diversidade etc.
Mantivemos esse debate via WhatsApp por mais de uma hora até quando fui dormir. No dia seguinte, acordei com um longo texto em que ela expunha a sua opinião – francamente contrária à minha – dizendo que minha perspectiva era constituída apenas por opiniões e análises confusas. Respondi que a atividade de Ardelean não podia ser entendida apenas pela ponta aparente, a “benemerência identitária”, mas no contexto político do capitalismo transnacional de “portas abertas” que ele propunha, o que é uma forma de manter a miséria e a exploração de vastas porções do planeta.
A conversa se manteve por mais 6 horas com idas e vindas. Por duas vezes, já cansado, me despedi da conversa e fiquei sem responder, mas ela insistia em atacar minha posição tratando-me como exagerado e radical. No final do debate deixei claro que reconhecia que a minha posição era minoritária – para não dizer isolada – e que o nosso grupo precisaria apenas fazer uma votação para decidir. Partiu de Jesse uma pauta consensual:
“Certo. Então proponho uma reunião de deliberação e votação no Colegiado. Porque as negociações estão avançando e o nosso escritório tem um encontro marcado com a Fundação Century na próxima semana para uma conversa inicial. Até que me digam o contrário eu estou avançando no projeto com o aval de Mark.”
Como eu estava cansado aceitei de pronto, até porque esta era exatamente a proposta que eu estivera o tempo todo perseguindo. Concordei dizendo apenas que desejava que todos estivessem cientes do que esta proposta significava. Terminei nosso longo diálogo dizendo:
“Concordo. Sei que serei o voto vencido, mas gostaria que todos se comprometessem com essa escolha. Não acho justo que alguém no futuro venha a dizer que “não sabia destas questões quando foram apresentadas”. Certo?”
Jesse apenas respondeu “Perfeito” e nada mais falamos. Diante das lembranças e acontecimentos de uma semana atrás, imaginei que Mark havia me pedido para ir à sua sala apenas para me dar informações sobre nossas propostas e ações em Lippville. Talvez estivesse interessado em ouvir também o meu ponto de vista sobre o Atanase Ardelean, o que não me parecia provável, uma vez que na própria reunião mostrou-se claramente favorável a este patrocínio.
Depois de alguns minutos Mark entrou na sala e me cumprimentou. Trazia um sorriso estranho no rosto e uma pressa tão grande em me dizer algo que não se permitiu sequer fazer um preâmbulo.
Mark
– Meu amigo, falei com Jesse há pouco, Ela ficou muito incomodada com a conversa que tiveram na semana passada. Disse que você enviou um quantidade enorme de textos e vídeos para ela. Usou também fontes suspeitas para falar da Fundação Century – como o New York Times. Por esta razão acabei de mandar uma circular para todos os nossos colaboradores. A partir de agora você estará suspenso das nossas reuniões. Sua conexão com o Whatsapp do grupo está cancelada. Você terá uma semana para pensar nas suas atitudes e para compreender que não pode usar estes veículos de comunicação desta forma. Na próxima reunião você terá tempo para defender sua proposta, mas não poderá usar as fontes que usou até agora – elas não serão aceitas. Sua atitude em relação a Jesse foi considerada assédio. Como ela se sentiu incomodada, e eu acredito que só a vítima pode dizer dos seus sentimentos, é assim que vou considerar. Ahh, e antes que eu me esqueça, você está com mensalidades da “Green” atrasadas, faça o favor de pagar o quanto antes.
Nos primeiros segundos fiquei em silêncio, atônito e estupefato, realmente confuso. Eu não conseguia acreditar no que estava escutando. Percebi que os meus olhos escureceram de raiva, mas respirei fundo antes de dizer qualquer coisa e correr o risco de me arrepender. Olhei com o canto do olho para o meu celular e vi que meu acesso ao WhatsApp do grupo havia realmente sido suspenso. Era verdade; Mark havia me expulsado do grupo após escutar apenas uma parte da história. Considerou como “assédio” uma conversa livre, educada e cordial entre duas pessoas. Imediatamente veio à minha mente a pergunta: “se conversar com alguém por WhatsApp sobre temas eminentemente técnicos de forma educada e cordial pode ser considerado assédio, o que não seria?” Se uma pessoa pode retrospectivamente – já havia se passado uma semana – perceber que uma troca de ideias com um colega poderia ser considerada como assédio, porque essa mesma conversa com Mark e qualquer outro diálogo que tive em 20 anos trabalhando nesta instituição não poderiam também ser considerados assédio? Por que esta troca de mensagens em especial merecia ser chamada desta forma mas as ligações de Mark para a minha casa durante os 20 anos em que concordamos e discordamos em diversos assuntos da instituição não seriam também criminosas?
Percebi também que o que movia Mark era um espécie de zelo pelo “politicamente correto” com as demandas femininas, mas que também é frequentemente usado com outras minorias. Partia do princípio de que a queixa de uma mulher é verdadeira até prova em contrário, uma inversão do ônus da prova que me obrigaria a provar que não cometi nenhum delito, e não a ela provar que algo criminoso ocorreu. A justificativa de Mark era uma velha conhecida minha: “a vítima sempre tem razão”, que é uma das maiores aberrações jurídicas criadas pelo identitarismo. Ela surge de um conceito bizarro, que eu chamaria de “legislação subjetiva”, ou seja, a ideia de que qualquer um cria suas próprias leis, derivadas de seus sentimentos e percepções subjetivas, mas que deverão ser obedecidas por todos. Assim, se sou negro, exijo que as pessoas ao meu redor usem apenas as palavras que eu permito, pois que algumas tem efeito negativo em minha subjetividade. Se eu for mulher, não aceito que determinadas expressões sejam usadas, e nem mesmo o uso de argumentos fortes e definitivos. Nesta perspectiva, o outro sempre carrega uma dupla posição: vítima e juiz, pois que não há uma instância de lei externa e neutra; o próprio sujeito que se coloca como vítima é quem decide se as palavras e ações alheias que lhe atingem serão lícitas ou não.
Jesse nunca reclamou de nada durante nossa conversa. Pior: ela retomou o debate no dia seguinte, quando para mim já poderia ter sido encerrado. Ainda mais, ela manteve a conversa em duas ocasiões, mesmo depois de eu ter encerrado o debate e ter me despedido dela!! Se há alguém que poderia ter uma base qualquer para se queixar de um fantasioso assédio este seria eu…. e não ela.
Por instantes fiquei pensando que durante nossa conversa eu poderia ter usado uma piada, um gracejo ou qualquer coisa que pudesse ter um duplo sentido, e que isso pudesse tê-la constrangido. Por sorte nossa conversa estava toda no celular e eu poderia investigar com cuidado se isso porventura tivesse ocorrido. Todavia, apesar dessa minha “culpa masculina essencial” eu tinha certeza que nossa conversa foi absolutamente técnica e tocou em vários aspectos delicados da ligação da “Green” com a Fundação Century. Nada pessoal, nada áspero, nada dúbio, nada confuso e nada que pudesse se configurar como “assédio”
Na medida em que os segundos iam passando, e ainda sem saber o que responder, peguei o papel da mão de Mark, que ele parecia estar tentando me oferecer. Era uma cópia do email mandado para todos os membros da diretoria e associados. Meus olhos cravaram na palavra assédio que se situava bem no meio da página impressa, pulava do texto e se chocava contra a minha retina. Lembrei que o termo “harassment” e o termo “abuse” em inglês têm um sentido mais geral, porém em português “assédio” e “abuso” ganham uma conotação claramente sexual. Qualquer membro da diretoria que pusesse os olhos nesse e-mail imediatamente pensaria que eu estava mandando mensagens pornográficas para a minha colega ou fazendo insinuações indevidas. Esta seria, por certo, a primeira primeira coisa que pensariam, a impressão inicial, mesmo que a maioria dos meus colegas conhecessem a mim e a minha família há mais de duas décadas. Era inacreditável o que estava diante dos meus olhos.
Não fui procurado para esclarecer qualquer problema por parte de Jesse. Ela se comportou como uma colegial, uma menina de não mais de 12 anos de idade, confusa com o debate que tivera comigo. Ao invés de escrever uma mensagem diretamente para mim – ou mesmo me bloquear – foi queixar-se para Mark. Diante da dificuldade de metabolizar minhas informações e meus receios com a parceria que estava para se estabelecer ela se refugiou no estereótipo da menina indefesa diante do homem opressor. Já Mark, num surto de autoritarismo e grosseria, resolveu me punir sem que eu tivesse a oportunidade de me defender. Pior ainda: me puniu institucionalmente por uma situação que só poderia ser entendida como privada, já que minha conversa com Jesse não ocorrera no ambiente físico da nossa instituição, em seu horário de funcionamento ou em uma ação na qual ambos deveríamos tomar decisões relacionadas ao nosso trabalho. Não, tratou-se de uma gentileza de minha parte de explicar particularmente a ela a minha posição quanto à Century, para não atrapalhar o ambiente da “Green”. Essa minha grande mágoa: no afã de proteger as mulheres criamos um modelo onde sua defesa pressupõe tratá-las como tolas, ignorantes, desqualificadas e frágeis – como crianças, incompetentes para tomar decisões e incapazes de estabelecer limites.
Adeus, Mark
Poucos segundos e estes pensamentos todos se acumularam em minha cabeça, mas eu nada conseguia falar. Era inegável que a questão não se resumia ao fato específico da minha conversa – repetindo, cordial e respeitosa – com Jesse. Havia algo de pessoal com Mark, uma mágoa, um ressentimento de algo que fiz ou deixei de fazer. Talvez – como saber? – algo relacionado ao que eu sou. Mais do que um malfeito, algo da minha essência que me tornaria insuportável aos seus olhos, e a crise criada por Jesse sobre uma troca de postagens privadas nada mais fez do que permitir que estes sentimentos eclodissem e subissem à tona. Talvez não se tratasse mesmo de uma questão “relacional”, mas “ontológica”. No entanto, eu nada podia lembrar que justificasse estas ações. Nossa amizade de mais de 20 anos não possuía nenhuma nódoa grave que pudesse produzir ressentimentos de minha parte. Tivemos centenas de conversas, até desentendimentos, ligações que Mark me fazia no meio da noite, domingos, feriados e a qualquer momento para me falar de seus problemas pessoais e até perguntar como eu estava. Da mesma forma, não conseguia enxergar algo em minhas ações que pudesse produzir tamanho ódio no meu amigo.
– Isso que você está fazendo é um absurdo, Mark. Minha posição a respeito da Century é clara, cristalina e simples. Minha opinião não é a “Verdade”, mas tão somente a minha perspectiva, que tem tanto valor quanto qualquer outra. Entretanto, conheço todos os colegas da diretoria e sei que eles enxergam esse problema com olhos diferentes dos meus. Não vejo problema algum em ser “voto vencido” em qualquer debate, porque durante toda a minha vida me postei no contrafluxo da vida, abraçando causas perdidas, utopias distantes e sonhos inalcançáveis. Sofri durante anos com os ataques dos poderosos que denunciei. Fui atacado, expulso, humilhado e agredido por todos estes anos e nunca reclamei porque sabia que lutar por estas causas minoritárias é apenas semeadura para que a colheita seja feita por outros, nas futuras gerações. Da mesma forma eu hoje tenho garantidos os direitos que muitos conquistaram para mim no passado, e vários pagaram com a vida por sua ousadia. Por outro lado, uma instituição como a nossa, que se propõe produzir um ambiente mais livre, com menos toxicidade e sem venenos não pode reproduzir em seu seio a mesma violência que combatemos quando usada contra a Natureza. Se pretendemos humanizar o meio ambiente, retirando dele o lixo que nossa ganância acumulou, é justo que façamos o mesmo com nossas relações pessoais. Ou então seremos apenas hipócritas, que encontramos o cisco no olho alheio e não percebemos a trave a nos obliterar a visão.
Mark manteve-se sério sem pestanejar. Iniciou a falar sobre as regras que eu teria que cumprir para a próxima reunião e, como um professor de escola primária, me deu conselhos de como deveria me portar, assim como pedindo que eu aproveitasse o tempo de suspensão para reavaliar minhas atitudes. Não havia como não me sentir um escolar de 60 anos recebendo um “pito” da professora.
Dobrei o papel com a cópia do e-mail e coloquei no bolso do casaco. Tentei me levantar mais senti que estava pesando algumas toneladas. As minhas juntas estava enrijecidas e os meus músculos tensos e doloridos pelo choque dos últimos minutos. Mesmo assim me coloquei de pé, estendi a mão para cumprimentar pela última vez Mark e falei sobre a minha despedida.
– Caríssimo Mark… nada disso será necessário. Sei que minha visão é minoritária e se você assim o desejar não será preciso sequer colocar este tema em discussão. Logo você vai entender. Todavia, acho importante esclarecer que não fiz assédio de tipo algum. Não incomodei ninguém e apenas debati com Jesse para que ela entendesse minha perspectiva. Não falei com mais ninguém sobre o tema além da minha manifestação na última reunião da Green, e apenas contactei Jesse porque ela estava à frente da proposta e não queria que ela pensasse que eu a estava desprezando. Em nossa última reunião manifestei minha inconformidade pela ligação da Green com este tipo de organização de forma clara e concisa, sem interromper outras falas e sem retomar o assunto depois de ter me manifestado. Depois escrevi um texto no WhatsApp com a minha posição, igualmente de forma educada, para deixar claras as minha motivações.
Suspirei com pesar e me preparei para finalizar a minha fala, controlando cada palavra para que elas não me traíssem e deixassem escapar a decepção que havia me tomado.
– Infelizmente, como fica claro a partir de agora, não há como continuar a trabalhar nesta instituição. Perdi completamente a confiança em você. Nada – literalmente – impede que qualquer um de nós telefone para a casa de um colega fora do expediente do trabalho para trocar ideias e, depois de um ato de cordialidade e amizade como esse, ser considerado um “assediador”. Não é mais possível correr este risco. Um lugar que cultiva esse tipo de relação está doente. Um lugar onde a confiança desapareceu não tem mais sustentação.
Baixei os olhos por uns instantes e finalizei.
– Espero que a Green continue em sua trilha de sucesso, em suas várias frentes de trabalho. Sei o quanto esta tarefa é importante e o quanto eu amei trabalhar aqui por mais de 20 anos. Aqui eu cresci, como ser humano e como cidadão. Sei da magnitude das responsabilidades e o quanto essa tarefa é prioritária no planeta, mas minha presença aqui se torna impossível. Eu jamais concordaria com o abuso que você está me submetendo, muito menos com as ameaças e as humilhações. Não tenho idade ou temperamento para aceitar este tipo de atitude. Também não quero mais ouvir o que você tem a dizer; eu entendo que isso foi produzido por uma terrível dor que você carrega, mas para a qual eu não tenho acesso e nem capacidade de ajudar. Peço agora apenas que aceite a minha saída e me esqueça. Que sigamos todos em paz.
Levantei-me sem dizer mais nada, enquanto Mark ainda tentou expressar algumas palavras para contemporizar. Apenas virei de costas e me dirigi à porta de saída. Olhei pela última vez para os quadros nas paredes, as fotografias, o azul do céu nas gravuras cheias de verdes e flores multicoloridas e abri a porta com a tristeza em carne viva na ponta dos dedos. Respirei o ar da rua e caminhei sem destino certo, à procura de um café que pudesse abrir as portas do entendimento, para que, assim, alguma luz pudesse entrar.
Anwar Fayed Ghazawwi é um escritor americano de origem palestina nascido em New Hampshire em 1958. Estudou jornalismo em Yale e passou trabalhar como correspondente de guerra por vários anos. Foi contemporâneo de Chris Hedges na cobertura da Guerra da Sérvia, tendo sido gravemente ferido na época durante um bombardeio em Saraievo, necessitando voltar para os Estados Unidos para terminar sua recuperação. Depois desse episódio cobriu muitos outros cenários de guerra, até o seu derradeiro: a Guerra dos 51 dias em Gaza, nos ataques israelense que resultaram em mais de 2500 palestinos mortos, entre eles 500 crianças. Depois desse episódio voltou para sua casa em Austin no Texas e passou a escrever sobre o mundo corporativo, que conheceu bem durante as coberturas de conflitos pois, segundo ele “a guerra é acima de tudo um grande comércio. Iludem-se aqueles que enxergam nela apenas patriotismo; há um quinhão de cobiça imenso em cada combate”. Seu primeiro livro foi “Empire of White Delusions”, em que trata das empresas escolhidas para a reconstrução do Iraque destruído pelo imperialismo e a corrupção que coordenava as ações das companhias que se debruçavam por sobre o espólio de milhares de mortos e milhões em destruição. Depois seguiram-se “The Carpet Crawlers” e finalmente “Top Business”, que conta a história de um magnata da indústria do petróleo que “mudou de lado” e resolveu se dedicar à luta pela ecologia e pela preservação da natureza e da vida silvestre. Anwar é ainda músico e toca saxofone na banda de “folk” “Terry versus Ohio”. É casado com Norma Barrington, uma advogada de Austin e tem dois filhos e 3 netos.
Os botões coloridos na parede ao lado das portas de aço se apagaram, sinalizando a chegada do elevador. Apertei o 12, que era o meu andar, enquanto cantarolava mentalmente uma música que havia me contaminado desde a manhã ao acordar. Depois de um dia intenso de trabalho esperava chegar ao meu quarto de hotel, ligar para casa, tomar um banho e dormir o quanto fosse possível. Minha apresentação seria à tarde, mas queria assistir o trabalho dos colegas desde cedo. Segundos antes da porta metálica se fechar, minha colega Kathleen entrou mantendo a porta aberta com a mão esquerda, enquanto com a direita carregava a pasta da conferencia.
– Olá, Kathy. Tudo preparado? Que pensa desse seminário? Acha que será bom?
– Creio que sim, mas não é o que me preocupa agora
Kathleen era uma mulher grande, corpulenta, sensual e sempre fez um estilo sedutora, “femme fatale”. Na minha imaginação era “Jessica Rabbit”, capaz de deixar alguns homens tontos com sua presença. Não há como negar que desde que os conhecemos eu também senti atração por ela… quem não? Não apenas pelas suas curvas voluptuosas, mas por sua inteligência e sua imposição diante dos debates da nossa área. Física quântica não é um campo em que mulheres são frequentemente vistas como diretoras de institutos, muito menos como articulistas, escritoras e palestrantes reconhecidas. Por certo que a mistura de sua competência específica em nossa área e a presença física impositiva e voluptuosa mexiam com a imaginação de qualquer um de nós.
Kathleen acabara se tornando minha amiga quando da publicação do meu primeiro livro “A Física Tao qual a imaginamos“, que recebeu boas críticas dos colegas e uma indicação para o “Quantum Awards”. Por esta época acabamos nos tornando correspondentes e trocamos muitas ideias sobre a o decaimento radioativo, as quais acabaram sendo um enorme estímulo para a publicação do meu segundo livro “Afinal, qual é a do elétron?”, baseado nos trabalhos de Werner Heisenberg e Paul Dirac, dois gênios da física quântica que desenvolveram suas próprias estratégias para compreender o comportamento do elétron. Minha abordagem era, a exemplo deles, totalmente diferente daquela de Schrödinger, o qual desprezava a importância das ondas mesmo fornecendo resultados igualmente exatos. Por essa amizade e conexão que surgiu de nossas mútuas concordâncias profissionais, eu solicitei a ela que escrevesse a orelha do meu último livro, o que ela fez combinando uma espetacular capacidade de síntese com a sensualidade que expressava em cada palavra que saía de sua boca, inexoravelmente emoldurada por um batom carmim.
“Para vocês, que sempre desejaram dar uma voltinha à bordo de um elétron, embarquem nessa viagem emocionante ao lado de Ray Olson, e eu garanto que a travessia será excitante e absolutamente inesquecível.”
Para muitos, a frase da orelha do livro seria suficiente para fechar a questão. “Ela está a fim de você, garoto. Não seja tolo”, muitos (e muitas) me disseram. Não nego que, nas conversas no meio da madrugada – enquanto eu escrevia textos e corrigia provas, e ela preparava seminários para seus alunos na Faculdade de Física – rolou sedução nas conversas, mas de uma forma quase juvenil. Não há dúvida que, para um homem mais velho, ser elogiado por uma colega mais jovem e brilhante, é sempre algo capaz de envaidecer. Entretanto, essas coisas para mim têm um limite bem claro; não me aventuro a procurar o fim do buraco do coelho exatamente porque reconheço que não terei como achar o caminho de volta. E, por certo, meu casamento com Jill tinha finalmente encontrando um platô de serenidade após vários anos. Depois de turbulências e desencontros, muito em função da morte de Laura, nossa filha recém nascida, finalmente havíamos encontrado um pouco de tranquilidade a ponto de até nos aventurarmos a reencontrar uma intimidade quase perdida. Mas, inobstante estes sentimentos, houve durante esse tempo de conversas a curiosidade de saber se a admiração de Kathy estava restrita aos aspectos intelectuais ou se, por baixo daquele cabelo comprido e das unhas vermelhas havia um corpo com algum interesse erótico em mim.
– E qual seria essa sua preocupação? perguntei, enquanto a porta do elevador lentamente se fechava.
Sua resposta foi seguida de um movimento brusco em minha direção.
– Você…
Dizendo isso segurou minha com a mão cabeça e beijou meu lábios com força, e os percebi serem abertos com a voracidade de sua língua quente e ágil. Sem saber o que dizer – como se fosse possível – cedi momentaneamente aos seus avanços até perceber que eu estava na posição da donzela surpreendida pelos avanços do homem vigoroso de atos impulsivos. Essa reversão de papéis me chocou de forma imediata, mas com surpresa me senti na pele de milhares de mulheres de quem beijos foram roubados, distâncias foram rompidas com energia e cujos corpos foram envolvidos por mãos ávidas e sorrateiras.
O elevador fez um clique ao passar pelo segundo andar e pude ver com o canto do olho a bolinha vermelha subindo no painel ao lado da porta. Nesse fragmento de segundo olhei para cima com medo de encontrar uma câmera, mas antes que fosse possível encontrá-la minhas mãos afastaram Kathy de mim, como um ato reflexo de proteção.
– Desculpe, Kathy, mas eu creio que você está confundindo as coisas. Eu…
Imediatamente a frase ecoou em minha cabeça, e nas suas várias versões que a escutei só o que apareceu foi o mais manjado dos clichês sexuais da história da humanidade. Pior: por quantas vezes eu não pensei que esta frase poderia servir tão somente como um aperitivo para o que estava para acontecer, um anteparo momentâneo, tão falso quanto convidativo, para o mergulho nas dimensões mais desabridas da luxúria. Entretanto, essa era a verdade do que eu sentia, e ninguém melhor do que eu para pressentir que seguir com aquela cena poderia me levar a um lugar conhecido chamado “pesadelo”.
O elevador fez um novo clique e percebi que havíamos passado pelo quinto andar. Kathy me olhou nos olhos, ainda sorrindo, sem se dar por vencida.
– Você não pode negar que também quer. Tem o mesmo “problema” que eu. Não pode esconder que pensou em mim e que naquelas madrugadas fantasiou, como eu, este encontro. Não minta para você mesmo.
Não, eu não podia negar. Entretanto eu sabia que vida não pode ser vivida como a simples realização de fantasias. Talvez não exista caminho mais seguro para a loucura do que a possibilidade de levar adiante todas as que criamos. Elas, por mais convidativas e prazerosas que sejam, esbarram na realidade, no outro, nos limites, no interdito. Romper essa rede de obstáculos pode ser – e frequentemente é – o primeiro passo para grandes tragédias.
– Não se trata disso Kathy. Eu, eu… entenda, não faz sentido. Somos colegas e amigos. E além disso…
Eu ia falar de Jill, mas tive medo do que Kathy diria. Talvez ela usasse uma estratégia que conheço bem pela voz dos homens, que nada mais propõe do que minimizar os significados culposos da cena, “seguir o fluxo”, “permitir-se”, “viver o momento”, “aproveitar o clima” e curtir as oportunidades que o destino graciosamente nos oferece. Nada dessa conversa era novidade, mas causava estranhamento porque a equação, desde o princípio, estava com o sinal trocado. Os olhos de Kathy diziam isso, e por mais que eu tentasse não conseguia imaginar o que ela enxergava enquanto me olhava.
O elevador anuncia a passagem pelo nono andar. Sei bem que, de minha parte, não era falta de vontade. Seu corpo por muitas vezes estivera presentes em devaneios, sonhos e fantasias. Kathy era uma mulher bonita, madura, livre e provocante, mas a posição de “objeto de desejo” em que ela me colocou foi demasiado brutal para os meus preconceitos patriarcais. Confesso que eu estava despreparado para a reversão das expectativas e fiquei sem saber o que fazer ou dizer. A perfeita imagem de um garoto sem chão.
Fui salvo pelo gongo. O elevador bateu no 12o andar e a porta se abriu. Ela saiu primeiro e eu a segui. Por instantes desejei que seu quarto estivesse em um corredor diferente, mas ela parecia ir para o mesmo lado que eu. Enquanto caminhava ela parecia ter certeza que era questão de tempo a minha rendição. Fiquei em absoluto silêncio enquanto permitia que suas nádegas me guiassem pelo corredor escuro do hotel. Seus saltos batiam no chão em sincronia com as batidas do meu coração e era possível sentir o perfume que ela exalava ao passar. Finalmente, ao chegar na porta do seu quarto, ela parou e deu meia volta, ainda com um sorriso confiante no rosto. Seu quarto era exatamente em frente ao meu e, por instantes, ela ficou em silêncio me olhando, com um sorriso enigmático nos olhos e segurando a maçaneta do quarto com a mão.
– Olhe Kathy, eu gostaria de lhe explicar que…
Ela sorriu enquanto pressionava a maçaneta para baixo abrindo a porta dos aposentos.
– Não precisa dizer nada, Ray. Eu já entendi tudo. Tenha uma boa noite.
Entrei no meu quarto ainda com o coração apressado. Tomei um banho rápido e me deitei. Liguei para casa e falei com Jill sobre banalidades, a conta do gás, o homem da TV a cabo, a escola das crianças e que horas ela me buscaria no aeroporto. Fiquei olhando programas tolos na televisão até pegar no sono. Pela manhã cheguei ao restaurante do hotel e lá estava Kathy sozinha em uma mesa. Sentei com ela e tentei iniciar uma conversa sobre o que havia acontecido. Ela me interrompeu educadamente e disse apenas “não se preocupe, eu entendi tudo”. Deixou sua xícara manchada de batom com café pela metade e despediu-se dizendo que precisava preparar sua conferência.
Na hora de sua palestra eu estava lá, na primeira fila. Com a desenvoltura habitual, e os slides confusos como marca registrada, ela discorreu sobre o seu – o nosso – tema de forma fluida e correta. Mas não pude deixar de notar que no último quadro de sua apresentação mostrou um gráfico retirado do meu livro, onde meu nome apareceu com a grafia incorreta. Parecia ali um sinal, o aviso de que um vaso delicado havia trincado e que não haveria mais como consertá-lo.
Alguns anos depois envolveu-se comigo em um debate sobre tunelamento quântico em um canal para pesquisadores sênior. Tratou-me a princípio com absoluta frieza, como um mero desconhecido e, na medida que as posições se tornavam mais claras e mais radicais, colocou-se no polo contrário ao meu, apesar do fato de que já havíamos discutido esse aspecto da teoria e estivéramos de acordo com a proposta de que “qualquer lugar em que a função de onda tenha alguma amplitude será aí um lugar onde o elétron poderá estar“. Portanto, nada mais óbvio que seu posicionamento de agora só poderia ser uma resposta rancorosa, vingativa e puramente emocional. Para piorar, não havia nada que eu pudesse fazer ou dizer, até porque não existem argumentos racionais capazes de abalar uma posição construída de forma irracional. No dia seguinte ela me bloqueou nas Redes Sociais. Meses depois escreveu um texto violento – mesmo sem citar meu nome – dizendo que não pretendia voltar a conversar com pessoas que defendiam posturas tão retrógradas e que, acima de tudo, não eram eticamente confiáveis. Por certo que não respondi, apenas deixei que as páginas da vida encerrassem esse capítulo.
Até hoje me pergunto o que teria acontecido se eu tivesse feito outra escolha. Poderia ter deixado o vento me levar para onde ele estava soprando, mas respondi com medo e pudor. Agora colho os frutos do desprezo, mas talvez estivesse agora colhendo as vinhas amargas de uma tragédia anunciada.
Gregor O´Sullivan, “O Ensaio”, ed. Parkland, pág 135
Gregor O´Sullivan é um cronista, jornalista, escritor e crítico literário, nascido em Belfast na Irlanda em 1954. Completou seus estudos de jornalismo em sua cidade natal e posteriormente fez carreira em Londres. Atualmente se dedica a escrever no “Daily Mail” em uma coluna semanal sobre política Irlandesa. “The Essay” (O Ensaio) é seu único livro de ficção, onde descreve as desventuras de um homem em crise de meia idade chamado Ray Olson e sua trajetória na Academia nos meses que antecederam sua indicação prêmio Nobel de física. O pai de Gregor foi Seamus O´Sullivan, um renomado estudioso da física que escreveu vários livros sobre o tema, tendo participado do círculo de grandes nomes da química e da física ocidentais como Ernest Rutherford e Erwin Schrödinger. O personagem é baseado na história e na perspectiva de mundo do seu pai. Mora em Londres com sua esposa Saoirse e seu gato…. Schrödinger.
Pegou o papel grosso e amarelado em suas mãos e olhou com viva atenção para os detalhes, deixando aberto o livro de onde o retirou. O cabelo, o rosto liso, os olhos castanhos sem anteparos. Na face limpa um brilho denunciava o visgo da juventude. A expressão séria e o paletó bem alinhado. A gravata combinando com a camisa clara. Era evidente a familiaridade no semblante.
– Que bonito. É você vovô? Não pode ser, pois eu acho que você sempre teve barba, desde que nasceu.
O velho segurou nas mãos a antiga fotografia e sorriu.
– Não sou eu, não. Imagina. Esse deve ser um artista de cinema americano, um caubói bonitão de filmes de faroeste. Acho até que já vi alguns filmes dele.
A menina sorriu da história, mas reconheceu na foto os traços do próprio pai.
– Meu pai vai ficar como você, de óculos e cabelos brancos, mas daí eu já estarei muito grande e já vou estar trabalhando como dentista pela manhã e mecânica de carros à tarde.
Enquanto a menina continuava a vasculhar o caleidoscópio de cores, distribuídas erraticamente pelas lombadas de livros da prateleira, o velho sorriu ao escutar seus planos. Todavia, não se furtou de olhar mais uma vez e demoradamente para a foto desgastada. Não, certamente não era ele na imagem. Aquela era a foto de um jovem que não mais existia. Era a imagem de uma alma forjada na ilusão da onipotência, na crença da imortalidade, nas certezas e na esperança. Um garoto cheio de arrogância que saía para a vida sem guarda-chuva, desprezando as tormentas que inexoravelmente cairiam sobre si. Um espectro para o qual olhava com um certo assombro, mas seguramente com alívio. Afinal, se podia vê-lo é porque, apesar dos erros e tropeços, conseguiu sobreviver a ponto de se reencontrarem.
Deteve-se por um tempo a olhar para si mesmo no passado, e o fez de maneira tão intensa que subitamente seu olhar se despregou do rosto e saltou para a foto à sua frente. Agora, era o jovem que encarava o velho, e sua mente juvenil se surpreendeu com as marcas do tempo esculpidas na imagem à sua frente. Percebeu nela as tristezas, as alegrias, as decepções e também as marcas da injustiça e da saudade. Imaginou as agruras e experiências que preencheram este lapso de tempo. Tentou sorrir do futuro que o aguardava, mas sua imagem imóvel apenas manteve o olhar fixo nas expressão de nostalgia do velho. Mais alguns instantes e sentiu a luz se apagando. Escutou um barulho surdo e voltou a dormir no escuro labirinto, prensado entre as paredes feitas de letras nas páginas do livro.
– Guarde no lugar de onde tirou, meu amor. Vovô pode precisar desse livro e tenho que saber onde ele está.
A menina colocou o volume na estante abarrotada e saiu correndo para o jardim, mal sabendo que a vida inteira cabe num flash.
Alberto de Sá, “Crónicas Selectas”, ed. Vale D’Ouro, pág 135.
Alberto Malheiros de Sá é um jornalista, escritor, cronista, ensaísta e roteirista português nascido em Beja, no Alentejo, em 1960. Trabalhou durante muitos anos no Correio da Manhã em Lisboa como jornalista do setor de política enquanto escrevia contos, ensaios e roteiros. Sua peça “Altivos e cobardes” ganhou o prêmio Revelação Teatral Ageas Teatro Nacional Dona Maria II e o tornou conhecido nacionalmente. Escreveu mais de 10 peças e adaptou espetáculos de Shakeaspeare a Beckett. Como produtor foi o responsável por “Abismo de Culpas”, estrelado por sua esposa, Maria do Céu de Souza Alves, e grande elenco. Vive na cidade do Porto e tem dois filhos e 3 netos.
Aliás, Cabiria, eu sempre desconfio de gente que começa suas falas dizendo “Olha, eu sou bem sincera(o); digo mesmo, na cara.” Muitas vezes não há nada de sinceridade na fala dessas pessoas, mas tão somente um passe livre para a grosseria; uma liberação para a expressão da maldade e do ódio.
A sinceridade não precisa ser amarrada à brutalidade das palavras. É claramente possível ser justo enquanto amável, honesto e ainda assim ser doce. Mesmo diante de uma sentença dura e inexorável é possível reconhecer o crime, entender a necessidade da punição e ainda assim tratar o criminoso como alguém não muito diferente de nós, apenas inserido em um contexto doentio e vicioso que lhe deu muito poucas opções para agir na direção oposta ao seu destino.
A grosseria travestida de “verdade dura” nada mais é do que a licença que a verdade lhe oferece para deixar escapar seus verdadeiros sentimentos de desprezo, ressentimento e mágoa diante de algo ou alguém. Usar um fato verdadeiro para deixar que escapem seus piores sentimentos é prostituir sua verdadeira missão.
James Wilbur “Echoes of Cabiria”, ed. Patrus, pág. 135
James Wilbur é um jornalista canadense, nascido em Saskatoon, Saskatchewan. Escreveu vários romances, em especial romances históricos sobre a colonização do Canadá e a relação dos primeiros imigrantes com os habitantes originais, também chamados de “first nation”. Em “Ecos de Cabiria” James Wilbur presta sua homenagem ao grande diretor Federico Fellini em sua magistral obra de 1957 “Noites de Cabiria”. Neste filme, uma prostituta chamada Cabiria sonha encontrar o verdadeiro amor e uma vida plena, mas o choque com a realidade dura a faz sofrer desilusões e decepções. No romance de James Wilbur, Cabiria é uma transexual que cometeu um homicídio passional, mas é nebulosa a noção de que tenha ocorrido por legítima defesa. Na trama ela acaba se apaixonando pelo detetive que tenta investigá-la. A chocante descoberta da transexualidade de Cabiria – que de início respondeu aos seus avanços – fez com que o detetive McArthur questionasse seus sentimentos, sua própria sexualidade e, mais grave ainda, sua ética profissional. A história se desenrola através de um caleidoscópio de remorso, paixão e desejo, onde a lâmina fina da culpa aguarda qualquer mínimo desvio para cortar sem piedade.
Nikolai havia acordado mais cedo do que todos nós. Senti entrando por debaixo do lençol puído o cheiro de sopa de pacote que ele havia esquentado. Graças às mãos delicadas e ágeis de Petrov foi possível puxar dois fios da tomada acima da pequena mesa encostada na parede descascada e adaptar uma resistência, que usávamos para esquentar o chá, mas também uma sopa. Coloquei os pés para fora da cama e toquei o chão gelado da cela com as meias que Zoya havia me trazido na visita do mês anterior. O chão feria a sola dos meus pés como lanças de gelo a penetrar o espaço entre os dedos. E ainda não era o pior do inverno em Vladimirsky, onde não era incomum que os prisioneiros perdessem os dedos pelo frio. Olho para o lado e encontro Petrov dormindo envolvido em um edredom cinza, enquanto Aleksei mantinha-se sentado em sua cama olhando para um ponto perdido na parede à frente. Ninguém falava, e aos poucos a luz externa aparecia pelas aberturas superiores da parede de nossa cela.
O silêncio matutino foi quebrado pelo som metálico da porta de ferro sendo aberta. Um carcereiro apenas falou em voz alta o nome de Nikolai e colocou no chão um envelope de papel amarelo-escuro. Logo depois a porta se fechou mais uma vez, deixando o breve eco do metal chocando-se com o batente em nossos ouvidos. Nikolai deixou a sopa sobre a mesa e curvou o corpo para apanhar o envelope. Abriu-o lentamente e passeou os olhos sobre o documento. Poucos segundos depois fechou o envelope e voltou a sentar-se no banquinho tosco que puxou debaixo da mesa. Segurou a xícara com ambas as mãos e continuou captar seu calor sem dizer palavra.
– Negado?, disse eu
Ele se limitou a balançar a cabeça afirmativamente, como a dizer que nada do que se encontrava naquele papel era surpresa. Fiquei em silêncio alguns minutos e me limitei a dizer em voz baixa “bastardos” e “canalhas“.
Nikolai sorveu mais um gole de sua sopa e, sem olhar para mim, me disse:
– Sabe o que eu queria, Sergey? Nenhuma utopia política, e muito menos bens materiais. Estou velho para desejar o que sabemos ser inútil ou fugaz, como um carro, uma casa ou que o mundo seja controlado por um sistema político mais justo. Em verdade, meus sonhos são todos tolos, inocentes e de uma ingenuidade dolorida e triste.
Sorveu um gole a mais, mordiscou um pedaço de pão e continuou.
– Nós tivemos uma infância dourada, Sergey. Fomos a última geração a ter uma mãe em casa cuidando de nós. Eu era capaz de dizer o que minha mãe preparava para o almoço antes mesmo de chegar, já a meia quadra de distância, só de sentir o cheiro da comida. Éramos recebidos como heróis, recém-chegados da batalha diária da escola. Cansados, famintos e eletrizados, nossa mãe nos tratava como reis; éramos o centro de sua vida. Isso é amor Sergey.
Baixei os olhos e sacudi a cabeça afirmativamente. Ele seguiu.
– Elas se sacrificaram por nós, camarada. Hoje as mulheres têm vida própria, para além de sua família. São empresárias, médicas, engenheiras, advogadas e – apontando para o documento – juízas. Não há nada que seja interdito a elas, e bem sei não há como retroceder, resgatando nossa infância idílica. A nós resta apenas a saudade de um mundo construído para sermos felizes. Suspirou olhando para a fumaça que saía de sua caneca de metal e continuou com seu desabafo.
– Pois eu queria apenas cinco minutos daquela vida, camarada. Sentir o cheiro da comida de minha mãe e encontrar seu sorriso na porta de casa. Nada mais. Eu respondi, mas com cuidado, pois sabia que seu mundo havia desmoronado há apenas alguns poucos segundos.
– Sua vida foi digna, Nikolai. Nossas mães nos prepararam para a felicidade, mas nós escolhemos uma vida de luta e valor. Mais importante do que ser feliz é dar sentido a esta breve existência na terra.
– Não tentem descobrir sentido algum para a vida, camaradas. Se há um sentido, ele nunca se mostrou para nós. Somos os que perderam, os derrotados, os desvalidos. Não haverá história a contar.
Era Petrov a falar, ainda de olhos fechados e envolto em seu cobertor cinza. Aleksei, por sua vez, se mantinha observando o ponto fixo no meio da parede descascada. Talvez ali estivesse escondido algum sentido para a vida, que a nós todos escapava.
Genny Sidorov, batizado Gennady Sidorov, nasceu na cidade russa de Leningrado (atual São Petersburgo) e fez seus estudos na tradicional Universidade Estatal de São Petersburgo, onde cursou engenharia de minas. Após trabalhar durante 15 anos como engenheiro abandonou a profissão depois do acidente na mina de Osinniki, em 2004 na Sibéria. Escreveu um livro contando os detalhes da tragédia, onde morreram 28 mineiros – entre eles seu amigo e protagonista no livro, Rodion. “O último suspiro”, seu livro de estreia, lhe rendeu o prêmio de jovem escritor e o impulsionou a abandonar a engenharia para se dedicar à literatura. Ainda nessa década escreveu 2 livros de ficção (“No fundo do Neva” e “Sob o olhar de Yekaterina”) e um de ensaios (“Galina e outras histórias frias”). Hoje tem mais de 20 livros publicados e escreve em colunas de jornais por todo o país. É casado com Yelena Pavlova e tem dois filhos, Natalya e Mikhail. É filiado ao Partido Comunista da Federação Russa.
Com a delicadeza do movimento das mãos que sempre me encantou, ela me explicou sobre uma das características mais conhecidas da sua cidade. Era a primeira vez que visitava o Black Lake District, de quem só conhecia histórias curiosas sobre peixes estranhos, uma cidade invadida pelo rio e os seus canais que mais pareciam Veneza.
– Quando você está na água do rio, basta você bater as mãos e os peixes pulam. Eles são grandes e fortes, mas também são ágeis e graciosos. Parece que, ao escutarem o som das palmas, eles saltam à nossa frente, como se fossem pequenos cães amestrados. É um espetáculo maravilhoso. Venha, vou lhe mostrar.
Segurou minha mão com força e me puxou para dentro do rio. Ficamos imersos até os joelhos enquanto ela olhava com atenção para a água cristalina que nos envolvia. Em alguns poucos instantes ela apontou para um peixe à distância que se aproximava.
– Vamos, bata palmas!! – disse-me ela. Veja como eles vão se aproximar.
Resisti um pouco, com medo de fazer um papelão e nada acontecer. Fiquei com medo do ridículo da situação, mas uma senhora à distância também batia palmas enquanto olhava com atenção para o leito do rio, já com a água batendo em sua cintura. Criei coragem e comecei a fazer o mesmo e percebi que o peixe que estava distante voltou a se aproximar de nossas pernas.
– Isso, continue, mais forte!!
Continuei a bater palmas com mais intensidade até o momento em que o peixe, excitado pelo som das palmas, saltou bem à nossa frente e começou a bater suas asas. Sim, ele tinha asas pequenas que batiam freneticamente como um colibri. Fez um círculo por sobre nossas cabeças com graça e charme, deixando um arco-íris em suas asas cada vez que seu corpo se interpunha entre nossa vista e a luz do sol. Depois disso, com toda a majestade, ele mergulhou nas águas translúcidas e desapareceu de nossa vista
– São peixes-voadores – gritei eu. Que espetáculo!!
– Eu disse que bastava ter confiança que eles vinham – disse ela com um sorriso encantador.
Olhei ao redor e pude vislumbrar o teto dos edifícios mais altos ao alcance de nossa visão
– Vejo a cidade daqui. Deve ser ótimo ter um rio tão próximo – disse eu.
– Pelo visto você não conhece onde moro mesmo. Aqui o rio avança cidade adentro, invadindo as ruas e as calçadas. O rio está na estrutura mais íntima da comunidade e faz parte do dia a dia de todos; ele é a energia que nos anima. Venha, vou lhe mostrar.
Segurou minha mão e passou a caminhar comigo por dentro do rio de águas refrescantes e transparentes. Aos poucos as casas foram ficando mais próximas e fomos nos aproximando da cidade e o que era um braço de rio passou a ser um canal que se misturava com as calçadas, se intrometendo entre as casas. Percebi que a cidade era uma mistura de ruas e canais aquáticos. A água agora batia no peito, mas tamanha era a clareza que ainda era possível ver meus pés enquanto caminhava. Continuamos a andar pelas calçadas aquáticas até chegar próximo de uma rua onde vi carros pela primeira vez, ainda que distantes de nós. Paramos finalmente em frente a uma cafeteria, e foi quando Ethel perguntou se eu gostaria de tomar um café.
– Molhados assim? Eu teria que me secar primeiro…
Ela riu da minha ingenuidade.
– Aqui eles servem na calçada mesmo, basta pedir. Deixa que eu pago.
Fez um gesto com o braço e prontamente um garçom se aproximou da borda do canal. Ajoelhado, anotou o pedido que Ethel lhe fez. Recostado à borda do canal, e com o corpo submerso até o peito, eu me ocupei em decifrar os detalhes do rosto enigmático de Ethel. Seu olhar tímido, seus dentes incisivos superiores levemente assíncronos, que lhe ofereciam um charme que só ocorre diante das pequenas imperfeições. Seu olhar era sempre vivo e brilhante. Sem perceber, toquei o pé direito de Ethel que se apoiava no fundo do canal e senti seus dedos miúdos e sua pele macia. Ela não interrompeu o relato que fazia, mas abriu levemente seus lábios e misturou suas palavras com o mais lindo dos sorrisos.
Marjorie Barnes, “Gates of Illusion” Ed. Parnasso, pág. 135
Marjorie Helen Barnes é uma jornalista americana nascida em 1951 na cidade de Richfield, Utah. Fez seus primeiros estudos na escola local, mas na adolescência mudou-se para a capital do Estado, Salt Lake City. Fez seus estudos no Westminster College e depois estudou jornalismo na instituição. Aos 20 anos abandonou temporariamente a faculdade e com uma colega de curso empreendeu uma viagem de um ano pela América Central. Esta colega era Amelia Duchamps, que mais tarde se tornou igualmente escritora e descreveu essa aventura em seu livro “Amigas”. Retornou dessa viagem para terminar o curso de jornalismo e logo após iniciou uma carreira como repórter no Salt Lake City Tribune. Desde muito cedo posicionou-se à esquerda no espectro político e começou a militar no partido Democrata de seu Estado. “Portões da Ilusão” é um livro de contos onde aborda o mundo a partir de realidades alternativas. Descreve mundos lisérgicos, cores absurdas, sonoridades inauditas e conexões afetivas acima de qualquer tipo de classificação conhecida. Segundo suas próprias palavras, “Usei da ferramenta dos contos para fazer um ensaio sobre um mundo alternativo, tendo à frente uma prancheta em branco nas mãos de arquiteto criativo e sem compromissos com a coerência”. Suas histórias são ricas e criativas, mas por vezes perturbadoras, ao questionarem nossos valores mais profundos em relação à vida, morte, nascimento e sexualidade.