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O Tempo se contempla…

Na minha infância os relógios eram considerados acessórios chiques, objetos importantes do vestuário. Na escola havia uma aula especial para aprender a “ver as horas”. Ter um bom relógio era uma marca de distinção, talvez algo parecido com o “O Capote” de Nikolai Gógol. Ainda hoje eu tenho resquícios dessa época: guardo meus relógios velhos numa caixa, sem coragem de me desfazer deles, porém, há muitos anos não uso nenhum.

Na minha família havia uma tradição que foi inaugurada com meu irmão mais velho. Quando alguém passava no “exame de admissão” – saída do primário e entrada no ginásio – o meu pai dava para o vitorioso um relógio de presente. Esse fato acontecia na entrada da adolescência, por volta dos 11 para 12 anos. Ganhar um relógio significava ser adulto o suficiente para cuidar de um objeto delicado como este. Mais do que uma tradição este presente marcava um ritual de passagem, a saída da infância e a entrada em um tempo em que ele, o tempo, passaria a ter cada vez mais controle sobre a vida.

Quando meu pai chegou em casa e entregou a caixa onde estava o relógio era visível a emoção do meu irmão. Naquele tempo os relógios tinham marcas que as pessoas conheciam, da mesma forma como hoje as crianças sabem as marcas de smartphone. Os melhores eram os suíços, “de dar corda”, cuja importância desabou quando apareceram os relógios de tecnologia mais avançada. O Japão destruiu a indústria suíça em menos de uma década. Mas a gente conhecia Patek Phillippe, Rolex, Technos, Ômega, Seiko, etc, e alguns deles eram mesmo pérolas da tecnologia e da mecânica.

Plenamente extasiado, meu irmão olhou o relógio demoradamente e depois, com a ajuda do meu pai, ajustou-o na extremidade do braço esquerdo. Encantado, ficou durante vários minutos olhando para o próprio punho, com o cotovelo dobrado, os olhos arregalados e fixando-se em cada detalhe da jóia.

Passados alguns minutos ele se levanta da mesa de jantar e diz que vai para o seu quarto. Como ainda era muito cedo, perguntei o que ele ia fazer, ao que ele respondeu sem titubear:

– Vou me deitar e olhar o tempo passar… 

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Outing

Na minha juventude o meu grupo de jovens espíritas era formado por um grande contingente de homossexuais. Todos estavam vivendo a gigantesca angústia da transição, do “outing“, da dolorosa saída do armário. A maioria não se reconhecia gay e achava que seus pensamentos eram influências espirituais maléficas e perturbadoras, vindas das profundezas do Umbral e os seus sentimentos homoafetivos eram perturbações kármicas. Todos, sem exceção, acreditavam que o espiritismo poderia funcionar como um “torniquete afetivo” capaz de impedir a hemorragia erótica que se anunciava para breve. Naquela época, fim dos anos 70, a homossexualidade ainda guardava uma relação com mácula moral, fraqueza, obsessão e pecado. Talvez também isso explique muito de sua invisibilidade.

Até mesmo nós, amigos e companheiros, acreditávamos nessa fantasia, que nos garantia que a fé e a contenção poderiam funcionar para endireitar o comportamento – assim entendido – errôneo e doentio. Seria como um “gays anônimos“. Pensávamos que a imersão num mundo de crenças místicas associadas à ideia da reencarnação poderia causar dois resultados: o fim das ideias obsessivas em relação ao mesmo sexo ou – no caso de falha – uma ajuda no penoso processo de contenção e castidade. Afinal, se Chico e Divaldo recomendavam “sublimar” seus impulsos em nome da moral, do trabalho e das promessas realizadas antes do nascimento, por que haveriam eles de sucumbir?

Todos os meus amigos, gays espíritas da juventude, romperam com o movimento espírita com graus variáveis de violência logo após a saída da adolescência ou mesmo durante essa fase. Muitos deles sequer aceitam falar no assunto. Muitos pediram acolhimento na Umbanda e alguns se tornaram agnósticos. Todos se sentiram oprimidos e pouco acolhidos nas hostes espíritas, e hoje posso reconhecer que tinham boas razões. Eu mesmo testemunhei palestras catastróficas em Centros Espíritas sobre o tema e senti na pele a ardência da rejeição quando, ao ser convidado para um seminário, falei de forma mais compreensiva e acolhedora sobre o tema. Em algumas vezes pensei, logo após uma palestra que praticamente criminalizava a homossexualidade: “se eu fosse gay só me restaria uma vida de culpa imobilizante ou o suicídio“.

Meus amigos precisaram abandonar o espiritismo mesmo mantendo suas crenças na reencarnação, mediunidade, na sobrevivência do espírito ou nas leis de causa e efeito, pois o convívio com o moralismo cristão espírita foi tóxico demais para suas vidas. É uma pena que tal barreira ainda permaneça no seio de uma filosofia que deveria ser progressista e apta a comandar a transição para uma compreensão mais alargada sobre tais fenômenos.

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Devaneios juvenis

Eu não passava de 14 anos e tinha uma vida inteira e incerta pela frente. Não sabia exatamente como era o mundo, como se construíam suas tensões e nem como se organizavam seus caminhos.

Sentado no banco do ônibus sentia os tapas estroboscópicos da luz que driblava os prédios e as árvores para encontrar meu rosto de menino. O ar frio matutino arejava meu pensamento colegial, e fazia minhas ideias volitarem por sobre o cabelo desgrenhado.

De súbito um corpo de aproxima do banco onde eu sentava. Não lhe pude ver pois que estava atrás da linha dos meus olhos, mas seu braço se projetou defronte meu rosto para se apoiar na guarda do assento em frente ao meu.

Uma moça. Só o que podia ver era seu braço coberto por uma fina lâmina de tecido branco que se ajustava às suas voltas e reentrâncias. O tecido terminava com uma delicada renda no punho, que cobria parcialmente sua mão pequena. Os dedos esquálidos terminavam em pequenas unhas vivamente coloridas com esmero e cuidado. A pele era morena, o que fazia contraste com a alvura do tecido da blusa, num contraponto instigante. A renda se movia com os solavancos do coletivo, fazendo uma estranha dança sobre a mão pequena e firme. No dedo anular um delicado anel, cuja luz refletida pintava de amarelo minha retina.

Fiquei olhando para aquele fragmento de pessoa, tentando imaginar o que se escondia para detrás do meu campo de visão. Como seria seu rosto, seu corpo, seus lábios e seios? Qual seria sua voz? Que pensamentos carregava em sua mente naquela manhã? Estaria, como eu, indo à escola? Seria mais velha do que eu?

Quanto mais eu brincava mentalmente com essas perguntas mais me fascinava ao olhar aquele braço à minha frente. Entretanto, percebi que este fascínio era muito mais pelo que eu não via do que pelo que se apresentava à minha frente. O que me excitava os sentidos era imaginar para onde corriam as veias que eu via plúmbeas na mão apertada contra respaldar do banco. O não sabido era o mais interessante; o que eu não via era o que mais me atraía.

Repentinamente a mão se desprega do banco e se recolhe, aproximando-se do corpo que eu não via. O chiado da porta se abrindo anunciou a parada. O corpo da moça é ultrapassado por outro vulto e seu braço escapa da minha visão. Quando crio coragem de voltar minha cabeça para trás e já não mais ela está ali. Envolta num emaranhado de corpos com pressa ela sai pela porta sem que eu tivesse a oportunidade de admirar o resto de si.

Com outro chiado e a porta do ônibus novamente se fechou. A moça da blusa de renda se foi sem deixar vestígios, e não ser a ferida viva em minha memória, a sensação inebriante de encantamento que me acompanha há quatro décadas.

Talvez ali, naqueles momentos de pura fantasia durante uma viagem matinal de ônibus, eu tenha me aproximado de forma definitiva do mistério e do encantamento que constituem o feminino. A esta moça a minha dívida por ter me oferecido uma amostra discreta do infinito que uma mulher representa.

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O que foi feito de R.?

viajante-solitario

O que foi feito de R.?

R. era meigo, afável e delicado. Não gostava de futebol. Não sabia o nome dos jogadores e não sabia dar um chute sequer numa bola. Era franzino e pálido. Tinha as mãos suaves, dedos finos, sorriso tímido. Seus cabelos negros eram sempre bem penteados. Não conversava muito conosco, e não acompanhava nossas brincadeiras bobas de garotos de 16 anos. Ele era reservado, mas dono de uma inteligência viva e ágil. Era culto, lia livros, falava em voz baixa e melodiosa, conhecia as ciências e as artes.

R. estava sempre rodeado pelas meninas, que gostavam de suas histórias. Seu sorriso era característico, e seus comentários espirituosos. Entretanto, nós não entendíamos a sua “fraqueza”. R. era frágil como uma borboleta. Seus passos eram leves, inaudíveis; ele levitava pelos corredores da escola sem que seu caminhar pudesse ser ouvido. Ele tinha um olhar triste, mas não sabíamos o que era. Havia um mistério, mas talvez o segredo que R. escondia era tão bem guardado que mesmo ele não tinha acesso.

O que houve com R.? O que aconteceu com o menino tímido, de caminhar contido e cabelos negros?

Hoje, passados 30 anos, eu sei do que R. sofria. Na época éramos todos cegos, e sua condição ficava invisível aos nossos olhos.

Desculpe, R., pela nossa profunda insensibilidade.

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Praia do Pinhal

Vó Vera

Minha sogra tinha casa no Pinhal, para onde ia todos os verões, carregando seus 7 filhos. Zeza era uma das 5 filhas. O filho mais velho, Carlos Fernando, faleceu um ano antes de eu começar a namorar com ela, num acidente que marcou muito nossa geração de amigos. Eu tinha 17 anos na época e íamos de “galere” para Pinhal nos feriadões e nas férias. Era muita zoeira. A casa ficava literalmente a 30 metros do mar. Um pequeno chalé de madeira, com dois quartos, que chegava a acomodar mais de 20 pessoas nos fins de semana. A regra era: mulheres nos quartos e nas camas, homens deitados em colchões improvisados no chão da sala.

Haja fossa séptica!!! Fim de tarde saíamos para caminhar na beira da praia e quando escurecia íamos ao “centro”, perto do “osso da baleia” para tomar sorvete de milho verde. Meus filhos ainda conseguiram pegar o final desse tempo mágico, mas o tempo já havia passado e a magia foi fenecendo. Pinhal é para mim uma maravilhosa lembrança de adolescência, mas para Zeza e seus irmãos é muito mais, pois toda a infância deles foi ali, na beira do mar.

Dona Vera, minha sogra era o centro de onde irradiava essa luz de congraçamento. Em torno dela gravitavam seus filhos e os “achegados”. Enquanto teve energia e desejo, foi o elo necessário para conectar a todos. Ela foi da última geração de donas de casa, dedicadas ao lar e à família, e ia para o Pinhal no fim de novembro (quando todos os filhos já haviam passado de ano) e voltava para Porto Alegre no fim de fevereiro.

Eram quase 3 meses de areia e sol. A vida deles cursou muito por lá. Pinhal é, portanto, o lugar mágico, idílico, onde é possível ser feliz. Se Freud está certo e a felicidade é reviver os momentos e as sensações de gozo da infância então para Zeza e seus irmãos o único lugar possível para essa alegria sublime é a praia do Pinhal….

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