Vamos combinar que as pessoas não questionam a “ciência”, mas questionam o uso que algumas pessoas fazem dela. Aliás, é da essência da ciência ser questionada, seus fatos analisados e suas conclusões desafiadas. O racismo já foi científico, o geocentrismo também; Talidomida, raios x em grávidas e Vioxx, idem.
Eu prefiro dizer que só os tolos tem “fé na ciência”, e a minha relação com ela sempre foi de justificada desconfiança. A ciência é a busca do conhecimento, mas é uma criação humana e, portanto, imperfeita e enviesada. Dentro do capitalismo os achados da ciência serão sempre tendenciosos, constrangidos pelo poder econômico e, por isso, precisam sofrer de nós uma legítima e sistemática contestação.
Porém, ao dizer isso, não afirmo que a contestação às ciência produzidas se fará pela irracionalidade ou pelo misticismo, mas com mais ciência, resolvendo as falhas que porventura ocorrem nas pesquisas e estudos produzidos com intenções espúrias.
Lembro de quando me perguntavam qual o perfil ideal para um psicanalista e minha resposta era: “Procure alguém que seja o mais parecido possível com uma pessoa comum. Fuja de qualquer terapeuta que se apega a certezas – elas são o “prêmio de consolação de Deus às mentes fracas”. Encontre alguém que consiga parir por sua voz a mais gorducha das frases: “eu não sei”. Não aceite afirmações peremptórias e se afaste de qualquer selvageria. O resto você constrói no discurso”.
Um excelente químico deveria se manter fazendo experimentos em seu laboratório e não se aventurar na filosofia, pois que nesse ramo sua ignorância fica evidente
Dizer que a religião se tornará supérflua, inútil ou desnecessária é acreditar que um dia todas as dúvidas existenciais serão respondidas, todas as questões morais solucionadas, não restará nenhuma pergunta a ser feita e todo o sentido do universo caberá em uma fórmula química. Tal arrogância e prepotência só cabe nas mentes irracionais.
Imaginar tal cenário é o mesmo que olhar para o universo acreditar que tudo à nossa frente um dia caberá nos livros de exatas. Para pensar assim é necessário produzir um mergulho obscurantista nas doutrinas ateístas, que nada mais são que religiões niilistas baseadas na fixação pelo nada.
Isso não quer dizer que as religiões sejam justas e boas, ou que não sejam obscurantistas e atrasadas. Apenas afirmo que as religiões são da natureza humana, surgem de necessidades humanas, pela incessante inquietude por respostas e pela angústia do desconhecido. Anseiam por sentido e produzem modelos para o que não foi ainda descoberto. Imaginar um mundo sem essa inquietação é tão somente acreditar no fim do desejo humano. Quanto mais ele despreza as religiões mais precisa criar uma para sustentar sua (des)crença.
Aos químicos, a química; aos filósofos, poetas e sonhadores tudo o que ainda resta descobrir.
Claro que existe exatidão em várias ciências humanas, e existe até humanismo nas exatas. Entretanto, o gráfico acima é para ser mesmo generalista. Certamente você terá muita dificuldade encontrar uma enfermeira, assistente social ou socióloga cuja PAIXÃO seja fazer cálculos e estatísticas, algo fácil de descobrir na engenharia ou na física. Da mesma forma, será difícil encontrar um engenheiro cuja atração maior seja a inexatidão dos sentimentos humanos na busca por espaços e vias.
Minha ideia, entretanto, traz uma provocação em outro sentido. A medicina é HUMANA por essência e por natureza, mas a tecnocracia e a cultura da inevitabilidade tecnológica a aproximam – ilusoriamente – das exatas. Tal migração não é capaz de produzir a melhoria da condição humana, sequer a mitigação do sofrimento e da dor, mas sem dúvida empobrece a própria medicina, seu ethos e sua profundidade. Tanto é intensa a invasão da medicina pela exatidão fria dos exames e testes que o médico mais famoso e respeitável dos dias de hoje não é aquele que oferece a compaixão como pressuposto básico e sequer um olhar caridoso para quem vê desaparecerem as esperanças, mas um que dá diagnósticos presumidos, tratamentos sem rosto e sem história e atende pelo nome de “Dr Google”.
Alias, o acho sempre muito estranho quando vejo gente se ofendendo quando dizem que as “ciências humanas são inexatas”. Ora, como diria Bohr “As certezas não são científicas; elas são o prêmio de consolação dado pelo criador às mentes frágeis“. Ou como diria Camões na voz de Caetano “Navegar é preciso, viver não é preciso“…
A Medicina Baseada em Evidências é uma justa intenção de aproximação da medicina com as ciências exatas. Em verdade, ela muito mais serve para barrar o intervencionismo comandado pelo capitalismo, o qual invadiu a medicina com a intenção de resgatar o sujeito – através da tecnologia – da falibilidade da natureza. Entretanto, essa proposta esbarra na própria condição humana deste, cuja história, percurso e subjetividade imprimem ao(s) seu(s) sintoma(s) uma qualidade inigualável e irreproduzível, que escapa à mensuração matemática e exata que é usada na Medicina Baseada em Evidências. Assim, se devemos saudar seu efeito protetor contra os abusos da tecnocracia, também é importante reconhecer seus claros limites, que se situam na própria condição única do sujeito.
Não se passa um dia sequer sem que eu assista de forma clara e definitiva a derrocada espetacular de uma certeza, com a qual convivi durante boa parte da minha vida, e de onde muitas vezes tirei consolo e conforto.
Essa é, para mim, a melhor definição de um livre pensador.
“Não se faz necessária a concordância sobre estes postulados, pois que são elaborações humanas e, portanto, passíveis de falha. Entretanto, respeitar a visão diferente que o outro possui é mais do que essencial: é a única forma de permitir que a sua própria visão se expanda e evolua. Reconhecer a diversidade dos pontos de vista é garantir que você descongele suas certezas com o calor da inquietude alheia.” (Max)