Arquivo da tag: evidências científicas

Humanização do nascimento, o que é mesmo?

O parto humanizado congrega em suas ideias um evento humano, um movimento social, uma expressão da sexualidade e uma luta política.

Muitos ainda hoje perguntam a definição de “parto humanizado” e acredito que sua definição é fundamental para que as pessoas compreendam a verdadeira amplitude desse termo. É notável que existe confusão com a ideia de “parto gentil”, “parto livre”, parto adequado”, “parto sem violência”, etc. Muitos também confundem parto humanizado com “parto normal”ou parto “vaginal”, mas é preciso entender que o fato de uma criança nascer pela via “vaginal” não significa que o parto tenha sido conduzido com normalidade. Em verdade, muitas das violências obstétricas que testemunhamos em nossa sociedade são fruto da má condução de partos vaginais. É igualmente verdadeira a noção de que realizar cesarianas em benefício de médicos, instituições, escalas, feriados ou pela falta de capacidade de lidar com a intrincada dinâmica do parto normal são atos violentos. A via de parto, por si só, não determina a característica de um atendimento “humanizado”.

É forçoso lembrar que este nome está relacionado com o humanismo, herdeiro do Iluminismo do século XVIII. O Humanismo é a filosofia moral que estabelece o humano como elemento primordial na cultura; é uma perspectiva que se encontra em uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade, aspirações e capacidades humanas, particularmente a racionalidade. A “humanização” nasceu na Europa, originada no Renascimento que se opunha à escolástica, valorizando uma postura intelectual crítica e colocando no humano – mais do que na figura de Deus – o foco de todos os nossos interesses, nossa admiração, as diretrizes e o destino da humanidade. Esta corrente de pensamento, em que Erasmus de Roterdã tem um papel de destaque, vem se contrapor ao teocentrismo da idade média, que desprezava as capacidades humanas de adaptação e transcendência. Portanto, a ideia de que “parto humanizado” seria um pleonasmo, pois “se todos somos humanos o parto só poderia ser humanizado” é equivocada e oportunista, pois o termo aponta para um pensamento que coloca nossas ações a serviço da humanidade, contrapondo-se à tecnocracia que nos torna escravizados àqueles que detém o poder tecnológico de controle dos corpos.

Em função disso há muitos anos eu elaborei uma definição que fosse acima de tudo prática, mas que também fosse simples, didática, concisa e que contivesse em seu bojo os aspectos principais dessa ideia.

Assim, na minha perspectiva o parto humanizado pode ser entendido como um projeto sustentado por um tripé conceitual:

  • Protagonismo garantido à mulher;
  • Visão interdisciplinar (o parto não é um ato médico);
  • Atenção baseada em evidências.

Esta definição foi criada há alguns anos para tentar dar a este tema uma delimitação, e assim diminuir as inevitáveis confusões como, por exemplo, confundir parto humanizado com “parto domiciliar”, “parto na água”, ou “analgesia de parto”. Sim, muitos ainda hoje acreditam que oferecer analgesia peridural para as mulheres, retirando do parto seu componente de “dor e sofrimento”, seria oferecer às mulheres uma vivência mais plena do parto, sem os componentes “selvagens” que nos afastam da “alma” enquanto nos aproximam inexoravelmente do “corpo”. Esta confusão do parto humanizado com o “parto indolor” é ainda muito prevalente entre os homens, para quem as dores do parto carecem de sentido.

Protagonismo garantido à mulher significa que esse evento está sob o controle das mulheres – ou daquela especifica mulher que o está atravessando, ou sendo atravessada por ele – seus valores, suas expectativas, suas perspectivas e seus desejos, e não a partir de protocolos que mais visam garantir segurança para médicos e instituições do que o bem estar para a mãe e o bebê. Significa colocar o elemento humano – a futura mãe – como o centro das nossas atenções, fazendo com que todas as ações realizadas sobre o processo de nascimento tenham como objetivo precípuo o bem estar das mulheres e não o fortalecimento de sistemas médicos e institucionais de controle sobre seus corpos. “Humanizar o nascimento é garantir o protagonismo à mulher, sem isso teremos apenas a sofisticação da tutela milenar instituída pelo patriarcado”. Assim, o protagonismo feminino no parto é a viga central que sustenta a estrutura do movimento de humanização. Sem ele qualquer outra medida será apenas enganosa ou parcial.

Interdisciplinar porque envolve todo o pensamento humano que se dedica a descrever, compreender ou decifrar o nascimento humano em suas múltiplas formas de abordagem e todas as maneiras de oferecer cuidado. Psicologia, psicanálise, medicina, enfermagem, sociologia, antropologia, fisioterapia são correntes do pensamento que se ocupam da compreensão desse evento. É importante compreender que o parto não é um evento médico, não pode ser controlado pelos pressupostos ideológicos intervencionistas da medicina – a não ser em casos de patologia – e que deve ser entendido como um ciclo normal da vida de uma mulher, como parte da expressão da sua sexualidade, e que por esta razão merece uma abordagem interdisciplinar que contemple todas estas perspectivas. A medicina e suas intervenções jamais melhoraram o processo de parto em sua estrutura milenar, apenas garantiram que os desequilíbrios associados a ele tivessem o cuidado tecnológico adequado – o que é sua justa função.

Atenção Baseada em Evidências serve para se contrapor à milenar tendência de atuar no parto baseando-se em mitos, crenças, crendices, ações perigosas e até violentas. Kristeller (pressão sobre o fundo uterino), tricotomia (corte dos pelos pubianos), decúbito dorsal (deitada de costas na mesa de parto) e episiotomias (corte vaginal) são exemplos clássicos de rituais violentos (inclusive mutilatórios) realizados pela medicina ocidental sem que quaisquer estudos e pesquisas tenham comprovado seu benefício para as mulheres. Em função disso podem ser entendidos como “rituais”, pois possuem seus três elementos definidores: são repetitivos, padronizados e simbólicos, e sua simbologia nos leva aos valores mais profundos de nossa sociedade: o capitalismo, o imperialismo e o patriarcado. Sem a contraposição de estudos, análises e evidências oferecidas pela ciência o parto se mantém um campo aberto e convidativo para a aplicação de rituais que relacionados aos valores mais profundos de uma sociedade, onde impera a violência de gênero deles derivada.

Essa é uma definição simples, prática e útil, mas por certo que não é definitiva. Podemos criar outras, mais complexas e mais abrangentes, mas as definições servem às tarefas de seu tempo e, portanto, acredito que esta ainda seja adequada para a época em que vivemos. Como diria o pensador francês Michel Odent, “para mudar a humanidade é preciso mudar a forma de nascer“. Para isso precisamos garantir às mulheres a plena autonomia para seus corpos e o total protagonismo para a construção de seu destino.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Causa Operária, Parto

Parto humanizado e mídias sociais

Eu as vezes sou convidado a assistir palestras sobre obstetrícia que tratam de temas que há muitos anos debatemos no movimento de Humanização do Parto e Nascimento. Nesta semana assisti mais uma vez o mestre Michel Odent – pensador e escritor francês de 91 anos – falar de suas teses centrais, como o “imprint” e a importância de oferecer à mulher um entorno de proteção, intimidade e privacidade para que a “entrega” seja a mais tranquila possível. Ter sido contemporâneo de Michel é um grande privilégio para qualquer pessoa que um dia trilhou pelos caminhos da humanização. Posso estar cometendo um sacrilégio mas, na minha perspectiva, os trabalhos de Odent e Robbie Davis-Floyd no campo da compreensão dos significados últimos e inconscientes do processo de nascer adquirem uma importância ainda maior do que aqueles conceitos sobre o “nascimento sem violência” oferecidos a nós um pouco antes por Frederick Leboyer, outro baluarte da grande revolução do parto.

Escutei também o comediante Rafinha Bastos falando sobre partos e doulas, na entrevista que fez com sua irmã – que é doula e professora de Yoga – e achei que sua visão superficial, preconceituosa, jocosa e até debochada do processo de nascimento é uma amostra razoavelmente adequada do pensamento médio dos homens brasileiros. Sua ignorância a respeito de elementos mínimos da proposta de humanização, sua repulsa com tudo o que existe de selvagem e essencialmente humano no parto – além da sua exaltação da “praticidade e limpeza” das cesarianas – são muito demonstrativas da visão majoritária que ainda é prevalente entre os homens. Acho lamentável sua percepção sobre um tema tão delicado, mas saber que ele se dispôs a escutar é algo que devemos saudar como positivo. Quando trocamos ideias com os companheiros das mulheres que nos procuram pela expectativa de um parto humanizado é importante ter em conta que estes sujeitos representam uma fatia francamente minoritária nesta sociedade.

Um pouco depois escutei a aula de uma enfermeira obstetra que falou sobre o tema da violência obstétrica para alunos universitários, um tema que a cada dia assume uma importância maior nos debates de gênero na Internet. Na minha perspectiva ela falou de uma forma bastante superficial, talvez um pouco mais do que o necessário, mas entendo que ela imaginava se dirigir a uma plateia ainda muito desinformada sobre o tema e, portanto, preferiu uma abordagem mais geral e simplificada.

Em verdade eu prefiro as perspectivas sobre o parto que são mais complexas, mais obscuras e menos debatidas e sobre as quais pouco se fala, em especial no que diz respeito à atenção ao parto como evento da sexualidade. Entretanto, tocar nesse ponto é arriscado e perigoso. Vivemos em uma sociedade de cancelamentos onde as ideias sucumbem à interpretação que se pode fazer delas, e onde a verdade é menos importante do que a aceitação e o reconhecimento das nossas “personas sociais”. Fugir de certos maniqueísmos é tarefa complexa, e seria um risco muito grande tratar desse tema para um grupo tão heterogêneo.

Nas perguntas que se seguiram à sua exposição chamou minha atenção algo que vi repetidas vezes quando tratei publicamente deste tema. Percebi que, o que muitas mulheres chamam de “violência obstétrica” é, na verdade, tão somente a ponta de um imenso iceberg, uma fração menor do que seja a violência que ocorre no parto. A maioria das mulheres (e também seus parceiros) aponta como violência apenas aquilo se que tornou visível e palpável, a parte que ultrapassa a linha das ondas e emerge do oceano como barbárie. Da mesma forma, a violência do encarceramento obsceno das sociedades capitalistas aparece sob a forma de desumanidade, tortura e morte, para só então ser condenada. Parece que a nós somente quando a brutalidade estrutural e ideológica submersa se torna evidente pelo exagero de um processo – que já é violento por natureza – temos a possibilidade de denunciar sua existência.

Ainda espero das jovens ativistas uma definição mais clara, concisa e firme do que seja “parto humanizado”. Parece faltar uma percepção mais elaborada, que fuja da ideia de “parto gentil”, “parto delicado”, “parto adequado”, “obediência às evidências científicas”, que são elementos importantes deste processo, mas que não contemplam o cerne da definição, o qual está visceralmente ligado à ideia de “garantia de protagonismo” às mulheres. Precisamos falar mais sobre a história desse movimento social, debater seus pilares de sustentação e entender que esta proposta surgiu muito recentemente como uma contraposição ao modelo tecnocrático hegemônico, que despersonaliza e objetualiza as gestantes, uma condição que se fortaleceu pela dominação do paradigma biomédico estabelecido de forma marcante a partir do século XX.

Na palestra da jovem professora ela elogiou as Casas de Parto e deixou claro para todos a importância das enfermeiras como cuidadoras primordiais do parto, o que é muito bom. Para além disso, eu me surpreendi com as perguntas feitas pelos estudantes a ela, o que sugeriu que ela poderia ter ido mais fundo nas definições, contradições e dificuldades no combate à violência obstétrica. Talvez ela tenha subestimado mais do que devia a capacidade de crítica dos alunos presentes à sua palestra.

Saber que esse tema toma a Internet hoje em dia me oferece a esperança de que estivemos fazendo certo em denunciar um modelo anacrônico de atenção ao parto e de mostrar que há perspectivas mais humanas e dignas de trazer as pessoas ao mundo.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Causa Operária, Parto

Medicina irreconhecível

Se por um decreto divino a prática médica a partir de hoje fosse plenamente vinculada às evidências científicas – mesmo as que já temos – muito rápido a medicina se tornaria uma profissão tão diferente do que existe na atualidade que seria praticamente irreconhecível. O que chamamos de “ato médico” é, em verdade, a encenação de um encontro terapêutico cujo enredo não é necessariamente escrito com as tintas da ciência.

James H. Waldorf, “From the depths to Calicut”, ed Norwegian, para 135

Deixe um comentário

Arquivado em Citações

Parto Domiciliar

Texto de Erica de Paula:

Vamos falar sobre Parto Domiciliar?

Ao contrário do imaginário popular, o parto domiciliar não ocorre apenas com um maço de ervas, uma toalha e uma bacia de água quente. Ainda tabu no Brasil (embora comum em diversos outros países, como Inglaterra, Nova Zelândia e Holanda, sendo inclusive incentivado pelos próprios órgãos de saúde e o governo local, vide reportagens abaixo:

http://www.unasus.gov.br/…/orgao-de-saude-britanico-endossa…

http://www.ebc.com.br/…/reino-unido-recomenda-que-gravidas-…

http://g1.globo.com/…/medicos-ingleses-dizem-que-mulheres-p…

http://mulher.uol.com.br/…/estudo-holandes-diz-que-parto-ca…),

O Parto Domiciliar Planejado é considerado tão seguro quanto o Parto Hospitalar, desde que siga 3 premissas básicas:

1) Um pré natal bem feito e uma gestação de risco habitual (baixo risco). Feto único, bebê cefálico, gestação a termo (a partir de 37 semanas), ausência de qualquer patologia associada (como diabetes gestacional, pressão alta, etc) e início espontâneo do trabalho de parto.

2) Uma equipe qualificada, com profissionais bem treinados e com materiais adequados tanto para situações normais do parto (doppler/sonar, luva, compressa, gaze, clamp umbilical, material de sutura, campo estéril, antissépticos, vitamina k, balança, estetoscópio, etc) quanto para situações de emergência (medicamentos diversos inclusive para conter hemorragia, ergotrate, seringas e agulhas, soro, cilindro de oxigênio, ambu adulto e neonatal, CFR, aspirador, oximetro, etc). No caso da equipe qualificada, esta pode ser composta por: enfermeiras obstetras, obstetrizes, médicos obstetras, médicos da família e médicos pediatras, podendo ser também (e de preferência) uma equipe multiprofissional. Obviamente, os partos domiciliares que ocorrem com parteiras leigas ou partos desassistidos estão associados a uma maior chance óbitos e complicações.

3) Um bom plano de contingência: definir com antecedência o plano B em caso de necessidade de remoção hospitalar, de forma que tudo ocorra dentro de um espaço/tempo adequado. Durante o trabalho de parto, mãe e bebê são continuamente monitorados pela equipe e a qualquer sinal de uma possível intercorrência esse parto passa a ser hospitalar.

Mas vamos às evidências científicas, com 8 estudos bastante interessantes sobre o tema:

– Estudo inglês analisou a morbi-mortalidade perinatal em 529.688 partos domiciliares e hospitalares planejados em gestantes de baixo risco. O estudo conclui que um parto domiciliar planejado não aumenta os riscos de mortalidade perinatal e morbidade perinatal grave entre mulheres de baixo risco.

http://onlinelibrary.wiley.com/…/j.1471-0528.2009.…/abstract

– Estudo holandês com mais de 679.000 partos analisados evidenciou uma taxa de 0,15% de morte perinatal no parto domiciliar e 0,18% no parto hospitalar, concluindo assim que o parto domiciliar, sob condições adequadas, não é associado com um aumento de morte neonatal.

http://journals.lww.com/…/Planned_Home_Compared_With_Planne…

– Estudo inglês com quase 65.000 partos analisados conclui que mulheres saudáveis com gravidez de baixo risco devem escolher o local de nascimento, sendo que mulheres que dão à luz em domicílio vivenciam menos intervenções, sem impacto nos resultados perinatais.

http://www.bmj.com/content/343/bmj.d7400

– Estudo canadense comparou todos os partos domiciliares planejados com todos os partos hospitalares planejados de mulheres que possuíssem idênticas boas condições de saúde e idêntico baixo risco de gravidez, num período de 5 anos, concluindo que o parto domiciliar planejado esteve associado a taxas muito baixas e comparáveis de morte perinatal, e taxas reduzidas de intervenções obstétricas e outros eventos perinatais adversos, em comparação ao parto hospitalar.

http://www.cmaj.ca/content/181/6-7/377.full

– Estudo inglês com quase 147 mil mulheres de baixo risco conclui que as mulheres que tiveram parto domiciliar planejado tiveram menores taxas de morbidade materna, hemorragia pós parto e remoção manual da placenta do que as mulheres que tiveram parto hospitalar.

http://www.bmj.com/content/346/bmj.f3263

– Estudo americano analisou os partos domiciliares planejados ocorridos nos EUA entre 2004 e 2009, concluindo que houveram altas taxas de nascimentos fisiológicos, baixas taxas de intervenção sem aumento dos resultados adversos em relação aos partos hospitalares:

http://onlinelibrary.wiley.com/…/10.1111/jmwh.12172/abstract

– Estudo norueguês que analisou 1631 partos e concluiu que os partos domiciliares planejados estavam associados a um risco reduzido de intervenções e complicações.

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23182447

– Estudo brasileiro realizado em Florianópolis de partos assistidos entre 2005 e 2009 que indicam que o parto domiciliar é seguro.

http://www.scielo.br/scielo.php…

Cabe lembrar que, embora os conselhos brasileiros regionais de medicina desaconselhem o parto domiciliar, órgãos como a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Federação Internacional de Obstetras (FIGO), o American College of Nurse Midwives, a American Public Health Association, o Royal College of Midwives (RCM) e o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) apoiam a esolha pelo parto domiciliar para mulheres com gestações saudáveis.

Ou seja, o parto domiciliar é uma opção aceitável e segura para gestantes de baixo risco, desde que realizado de maneira adequada. No entanto, assim como no parto hospitalar e na cesariana, a paciente deve estar devidamente orientada quanto aos riscos (que são baixos, mas não são inexistentes) e a possibilidade de desfechos negativos e inesperados, compartilhando com a equipe a responsabilidade sobre essa escolha. Por exemplo: mesmo nos países com a menor taxa de mortalidade do mundo, cerca de 1 a cada 500 bebês não vai sobreviver, independente do local e da via de parto.

E para quem diz que as mulheres que optam por parto domiciliar são leigas e não estão devidamente informadas sobre os riscos, finalizo com uma matéria sobre médicas que optaram por parto em casa:

http://maternar.blogfolha.uol.com.br/…/medicas-tambem-opta…/

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo

Evidências

Revisando os antigos manuscritos de Robbie para a preparação de sua “Antologia”, que deverá ser publicada em breve, me deparo com uma frase que pode explicar de maneira muito clara as dificuldades de entender a falta de racionalidade e embasamento de muitas das intervenções médicas obstétricas contemporâneas, em especial a episiotomia. Foi isso que a Dra. Melania Amorim trouxe à discussão através do seu originalíssimo ECR.

“E ainda assim, os significados culturais e simbólicos desses procedimentos são profundos, indicando cada vez mais que os protocolos hospitalares para a atenção ao parto não fazem sentido numa perspectiva científica, mas permanecem por estarem repletos de sentido cultural”.

Assim sendo, uma episiotomia, um Kristeller ou uma cesariana não precisam ter embasamento científico para serem dominantes na cultura obstétrica contemporânea. Para que sejam preponderantes basta que possuam “sentido cultural“, isto é, que estejam adaptados a uma visão cultural subjacente e silenciosa (uma ideologia) que desmerece a mulher e suas capacidades reprodutivas, e que coloca a tecnologia e o saber racional como válidos e autoritativos, desta forma desvalorizando a fisiologia feminina, em especial no momento do parto e nascimento.  

Quando ouço críticas a alguns procedimentos relacionados com o termo “humanização” – como parto extra-hospitalar, posições alternativas à litotomia, doulas, períneo íntegro, acompanhantes, livre deambulação, etc – e vejo colegas exigindo as “comprovações científicas” de tais condutas (que existem em abundância) eu acho engraçado e curioso o desejo insano de que tais procedimentos tenham a devida e justa comprovação quando praticamente nada do que é feito rotineiramente num atendimento ao parto tem qualquer embasamento científico – apesar de se conformar às normas culturais que colocam a intervenção como “salvadora” e a fisiologia feminina como “perigosa”.  

Pensem bem, onde estão as evidências que sustentam os seguintes procedimentos que ocorrem em praticamente todos os hospitais brasileiros de forma rotineira:  

– Trocar a roupa ao chegar
– Tomar banho
– Soro de rotina
– Ocitocina para apressar o parto
– Raspagem de pelos
– Enema glicerinado
– Restrição ao leito
– NPO (jejum forçado)
– Afastar a família e/ou acompanhante
– Monitorização eletrônica de rotina
– Parto em posição de Litotomia (deitada de costas)
– Episiotomia de rotina – Kristeller
– Afastamento do RN para rotinas
– Perda da “hora dourada” da amamentação
– Cesarianas (88% no setor privado e convênios)
– Cesarianas (43% no SUS e 55% no geral)

Não estão em nenhum lugar, não é? Se elas não existem, por que continuam sendo feitas inclusive em hospitais universitários, que deveriam zelar pela atualização e adequação de seus protocolos?

Ora, porque a Medicina é um sistema hierárquico e totêmico. Ela não se expressa primordialmente como ciência, mas como poder. Só isso explica que os procedimentos não se adaptem à ciência, mas a uma determinada cultura que coloca os profissionais médicos acima de seus pacientes e acima da própria ciência. As realidades científicas serão sempre bem vindas quando se adaptarem à norma cultural (cesariana, episiotomia, parto hospitalar, etc..) e serão sempre rechaçadas com extrema violência quando afrontarem os valores culturais dominantes (parto domiciliar, atenção por enfermeiras, casas de Parto, presença de acompanhantes/doulas, etc…).

A Medicina é a fiel guardiã disseminadora dos valores profundos do patriarcado.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Medicina

Obstetras de Cristal

images(8)

No filme Matrix o personagem Tank (Marcus Chong), diferentemente de vários outros personagens da trama, não foi resgatado dos tanques que mantinham vivos os organismos humanos na vida virtual do grande programa chamado Matrix. “Born and raised in Zion”, exclama um orgulhoso Tank, cuja parte posterior do pescoço não exibe – como Neo, Morpheus e os demais – a cicatriz de acoplamento com a máquina de conexão à Matrix.

Tank já havia nascido em liberdade. Sua conexão com o mundo é real, e não filtrada por um sistema de crenças que o leva a crer como reais as construções ilusórias de um mundo artificial. Não é necessário um “cabo de dados” para o mundo de fantasia; sua consciência o conecta com uma realidade mais pura e verdadeira.

Todos os profissionais da humanização do nascimento que conheci na minha trajetória de 30 anos precisaram ser resgatados da Matrix Obstétrica. Acostumados a ver como reais a defectividade feminina, a incompetência essencial da mulher e a ritualística que se extrai dessa mitologia, após muitos anos de hibernação foram despertos do sono tecnocrático pela ação de elementos catalisadores: o nascimento do próprio filho, a gravidez, o luto, o êxtase inesperado ou uma singela paciente acocorada no fundo de uma sala de exames. Para cada despertar eu consigo ver um sujeito que “doulou” esta metamorfose; no meu caso, Dr. Moyses Paciornik. Para outros um professor, um palestrante, um mestre ou um paciente.

Contrariamente ao que se poderia imaginar pela firme vinculação da humanização do nascimento com a medicina baseada em evidências, estas transformações nunca ocorrem no terreno da razão; elas são fruto de uma maturação lenta e silenciosa do universo afetivo do profissional. É deste caldo emocional que surge a transformação, que só depois será aperfeiçoada pelo conhecimento e pelo estudo.

Entretanto, depois de três décadas observando alguns poucos obstetras se rebelando e sendo resgatados da nossa Matrix pela primeira vez na história começam a surgir os “obstetras de cristal”. Acho interessante esta forma de perceber os colegas da obstetrícia que não precisam ser resgatados, pois que algo suficientemente intenso ocorreu durante a sua formação, na graduação ou na residência, que os impulsionou diretamente para os valores do humanismo antes de serem tragados pelo moedor de carne da tecnocracia médica.

Para alguns, um parto humanizado que assistiram. Para outros um vídeo de parto. Em algumas profissionais foi sua própria experiência de parto que lhe permitiu sentir na carne o nascimento, antes de usar sua arte em outras mulheres.

Com sentimento, emoção, apuro e preparo técnico, muito além de serem apenas operadoras robotizadas, os(as) “obstetras de cristal” (uma alusão às crianças de cristal, seres da “nova era”) podem assumir-se humanos completos, sem abrir mão de suas qualidades afetivas ao realizarem a nobre tarefa de estar ao lado. E o fazem de uma maneira que sua presença não danifique a delicada tessitura de que é feito um nascimento.

Muitas experiências já estão em andamento no Brasil, como os alunos que já saem da sua formação orgulhando-se de não fazerem episiotomias de rotina, e reconhecendo a importância de proteger o parto normal. Precisamos ampliar o espectro desse novo paradigma, para que seja possível criar um exército de novos profissionais que se orientem pelas luzes do protagonismo garantido às mulheres, a visão integrativa do parto e sua vinculação com a ciência.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Medicina

Parto “autoral”

A respeito do debate sobre “Parto Autoral” surgido recentemente. Ao me ver este termo é uma tentativa de oferecer uma nova roupagem ao termo “protagonismo”, nosso velho conhecido. A “autoria” do parto é um aspecto de um conceito mais amplo de humanização do nascimento. Parto autoral não avança para além do sentido já debatido da garantia do protagonismo à mulher, algo que enfatizamos desde que o debate sobre uma “nova forma de nascer” começou a ganhar corpo no Brasil e no mundo. Por esta perspectiva a “autoria” é o eixo central a partir do qual os outros elementos da humanização vão se estabelecer. Isto é: sem plena “autoria” nunca teremos humanização, apenas ações parciais que não atingem o cerne da questão do parto: os direitos das mulheres sobre seus corpos. Ou, como diria Max, “sem o protagonismo só resta a sofisticação de tutela“.

protagonismo

Por outro lado, aprofundando-se no debate sobre o protagonismo, um parto pode ser “autoral” e NÃO SER humanizado, desde que para isso não se obedeçam os outros pilares que sustentam esse conceito, a saber: a visão interdisciplinar do evento (retirando dele as amarras de procedimento médico) e as evidências científicas (sem as quais somos presa fácil das mitologias, via de regra misóginas e potencialmente perigosas). Como exemplo podemos citar uma mulher situada no extremo do espectro do protagonismo: uma gestante diabética e hipertensa que resolve de forma autônoma ter seu filho em casa sem o auxílio de qualquer profissional ou tecnologia. É autoral, mas é uma decisão que não tem interdisciplinaridade ou evidências científicas que a sustentem. O mesmo pode ser dito das cesarianas sob demanda: são autorais, mas agridem as evidências científicas no que diz respeito à segurança para mães e bebês.

Por esta razão eu acho que vale a pena esclarecer esses termos novos que surgem no cenário da humanização do nascimento para que não causem confusão.

Resumindo: a Humanização contempla a autoria, pois ela é a parte central do modelo que preconizamos. Por outro lado, a autoria não necessariamente se abriga sob a proteção da humanização. Uma decisão “autoral” não precisa ser humanizada.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto

Pororoca

Pororoca

Humanizar o nascimento é restituir protagonismo para as mulheres. Entender o nascimento como um evento social e humano, e não apenas médico. É reconhecer o nascimento como o evento apical da feminilidade, sobre o qual atuam forças sociais, emocionais, psicológicas, afetivas espirituais e – acima de tudo – numa configuração subjetiva, única e intransferível. Mais ainda: é ter uma visão interdisciplinar, com a devida consideração com os outros atores que fazem parte tanto da cena de parto quanto do debate sobre o significado dele na cultura. É respeitar as evidências científicas que norteiam e orientam o trabalho das equipes de assistência, as intervenções e o cuidado aplicado às mulheres durante este período tão criativo de suas vidas.

“Um parto é um mergulho para dentro de si, um encontro inexorável com as questões mais íntimas e subjetivas, nas águas revoltas e escuras do inconsciente. Todavia, é também um pulo no oceano de palavras que nos circundam, nos envolvem e nos dão significado. Ambos os mergulhos produzem suas revoluções, suas agitações e giros, mas do choque produzido por tais saltos emerge uma gigantesca onda, de cuja energia se produz a característica única e irreproduzível de cada nascimento.”

Deixe um comentário

Arquivado em Parto