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Gentrificação

Durante uma palestra, ocorrida há 20 anos no auditório da UFBA (Universidade Federal da Bahia) ao lado da professora Robbie Davis-Floyd, eu fiz uma exposição breve sobre o movimento de Humanização do Nascimento, que à época estava atravessando um momento histórico. O sucesso da Conferência Internacional em Fortaleza e a popularização do uso da Internet haviam propiciado, pela primeira vez na história, a possibilidade de que ativistas do Brasil – e até de outros países -tivessem contato direto e imediato, compartilhando informações, anseios, projetos e estratégias de luta. A Internet – ainda antes das Redes Sociais – já servia (através dos grupos e list servers) a este objetivo, e foi através dessa ferramenta que ocorreu um salto importantíssimo na disseminação do ideário.

Minha manifestação era, evidentemente, entusiasmada. Descrevi o quanto havia de questionamentos represados por falta de canais apropriados para tantas perguntas, e o quanto a internet havia nos ajudado a produzir esta conexão, tanto entre os poucos profissionais que estavam na linha de frente pelos partos humanizados quanto pelas pacientes. Estávamos diante de uma verdadeira revolução da informação onde, por primeira vez, tínhamos todos um canal para fazer perguntas, reclamações, compartilhar dúvidas e angústias a respeito dos partos – passados ou futuros. Ao fim da minha palestra uma mulher negra de cabelos cheios de contas coloridas ergueu a mão e pediu para fazer uma pergunta. Agradeci seu interesse em participar e ofereci-lhe a palavra. Ainda com um belo sorriso nos lábios ela me perguntou:

– Muito interessante a sua exposição sobre a humanização do nascimento e o quanto esta proposta evoluiu nos últimos anos. Por certo que existe muita violência associada ao parto e esta é uma questão que temos de enfrentar com coragem e determinação. Minha única dúvida é se esse movimento se restringe a um pequeno grupo de mulheres brancas e de classe média que têm tempo para se sentar à frente de um computador para debater estas questões com seus pares, ou se ele também se interessa pela situação da mulher grávida negra e pobre da periferia de Salvador?

Senti sua pergunta como uma patada violenta no peito. Pela primeira vez eu havia percebido o quanto o nosso discurso, por mais avançado e correto que fosse, corria o risco grave de se transformar em uma moda efêmera de classe média, algo como futuramente se tornariam as clínicas para aplicação de Botox, transplante capilar ou para cirurgias de embelezamento feminino. Humanização do Nascimento trata da valorização da fisiologia do parto e das múltiplas facetas psicológicas, afetivas, emocionais, sociais e espirituais do nascimento, mas também se refere aos direitos humanos reprodutivos e sexuais, e não pode estar restrito apenas à classe social que pode pagar por ela. Se assim for não será um direito, mas um privilégio.

Aguardei o fim dos aplausos a ela direcionados e agradeci sua pergunta. Minha resposta foi curta e simples: “Você tem toda a razão; se a humanização do nascimento se tornar um modismo de classe média, então não há sentido algum em existir”.

Durante toda a minha vida eu tive esse pensamento norteando minhas manifestações sobre a questão do parto humanizado. Ele não pode ser um produto a ser vendido para quem pode comprar; não pode ser reservado apenas àquelas mulheres que tem recursos, conhecimento e informação suficientes para exigi-lo dos profissionais. Ele precisa invadir o serviço público, permear todas as instâncias de atendimento, desde o mais sofisticado e tecnocrático hospital de um grande centro até o mais remoto posto de saúde em uma minúscula cidade do país; deve estar no hospital privado tanto quanto em qualquer hospital ou Casa de Parto do SUS.

Por que não podemos admitir que esta mulher pobre que vive nos cinturões de pobreza das grandes cidades possa ter ao seu lado outra mulher cuja experiência de vida é semelhante à sua. Uma mulher que conhece as dores da privação, que entende os dilemas de uma gestação atravessada pela escassez e que, muito provavelmente, será também uma mulher que não progrediu nos estudos? É tão difícil entender que esta gestante pode desejar ao seu lado uma mulher como ela, com a mesma origem e os mesmos horizontes, para quem a diplomação no segundo grau seria um sonho muito pouco provável de ocorrer? A quem beneficiam estes limitadores? Que tipo de conhecimentos uma doula necessita para ajudar suas irmãs, os quais só seriam adquiridos na educação formal? Que tipo de formação as capacita a alcançar um copo d’água, ajudar no banho, preparar um chá, aplicar uma compressa ou uma bolsa de água quente? Que tipo de diploma nos ajuda a acalmar uma gestante inexperiente, um marido nervoso? Que faculdade ensina a cantar uma música junto com a gestante durante suas dores, ligar a “playlist” do parto, aquecer a comida dos outros filhos, ajustar a temperatura da banheira de nascimento? Quem é essa “doula tecnológica” que precisa desse tipo sofisticado de ferramenta para atuar com carinho, compaixão, presença contínua, afeto e atenção?

Se o corpo da mulher grávida é um território em disputa, não será através da “gentrificação” destes inquilinos que iremos oferecer ajuda substancial a todas as mulheres – das mais abastadas às mais carentes. Por tudo que já debati nos últimos 25 anos sobre a função das doulas, a exigência de escolarização é uma forma muito clara de elitização. Não se trata de valorizar as doulas, mas de aplicar sobre elas exigências que não permitirão que as mulheres pobres e despossuídas possam receber atendimento de suas iguais. Tal exigência subverte os princípios fundadores das doulas, que prezam pela universalização da assistência e um respeito aos valores e crenças das mulheres atendidas.

“Doulas são flores de cactos, brotando na aridez gelada e desértica da tecnocracia”.

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Coreia

Quando eu era pequeno – tinha uns 10 anos de idade – e não tinha nada para fazer no domingo a tarde, ia até o estádio do Internacional (que ficava poucas quadras da minha casa) e comprava um ingresso no setor popular, a famosa “Coreia” (parte do campo na altura do gramado batizado em homenagem à “Vila Coreia”, favela próxima). Eu e meu amigo George Banana íamos para assistir o jogo (que nem era do nosso time; íamos lá para “secar”), curtir o clima da torcida e escutar o barulho ensurdecedor que se seguia aos gols (uma experiência singular na vida de um garoto).

Vejam bem… um menino de 10 anos ia à pé até o estádio com seu amigo da mesma idade, pagava o equivalente a 5 reais de hoje e assistia um espetáculo de futebol. Os campos de futebol naquela época eram lotados de gente pobre, até favelados. Na foto que ilustra este post pode-se ver o rosto das pessoas da Coreia, gente que hoje não pode mais entrar em um estádio de futebol.

O futebol moderno – e gente como Cristiano Ronaldo, Neymar, Messi – mataram a possibilidade do esporte voltar para o povo, mas não por culpa deles – meros artistas que vendem sua força de trabalho para fazer girar a roda da fortuna – mas por uma progressiva e insidiosa elitização do espetáculo. A ela veio se juntar a neurose coletiva do capitalismo combinada com a gentrificação dos estádios e arenas, construídos para serem símbolos de luxo e poder, acessíveis apenas a uma franja diminuta da sociedade.

Hoje em dia o pobre só pode satisfazer sua admiração pelo futebol através das transmissões entupidas de publicidade nas TVs abertas. Como o futebol-negócio é controlado por setores da burguesia – que estão se lixando para o povo – a chance de ocorrer alguma mudança em médio prazo é ínfima. Ódio eterno ao futebol moderno!!!

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Doulas Gourmet

O projeto de gourmetização das doulas não ajuda as doulas, mas auxilia as instituições no seu projeto de restringir ao máximo a sua atuação. É o projeto dos sonhos da corporação médica e dos hospitais privados, e carrega em seu bojo um problema gravíssimo: ele dificulta as doulas pobres, de comunidades distantes e sem educação formal a dar assistência às suas irmãs, vizinhas, amigas e clientes.

Por que deveríamos impedir uma doula sem instrução formal – inclusive analfabeta – de atuar? Por que restringir o acesso à essa função para todas as mulheres que não tem um diploma de segundo grau? No Brasil apenas 51% das mulheres com mais de 18 anos completam o ensino médio (homens 46%). Essa medida por si só já corta pela metade o número de mulheres que poderiam ser doulas. A quem tal restrição interessa?

Já pensaram se fosse exigido de cozinheiras, diaristas ou balconistas o ensino médio completo? Já perguntaram porque nunca alguém teve essa ideia para as outras profissões, mas decidiram que, para as doulas, essa certificação seria mandatória? Conseguem perceber o interesse das corporações em atingir o coração do movimento? Por que as doulas, mas não o porteiro do prédio, precisa esse grau de educação?

Claro… como sempre nos preocupamos com a classe média, com os pacientes mais abonados, com a performance de doulas em hospitais privados e sofisticados, enquanto o Brasil profundo, preto e pobre se mantém esquecido. A gentrificação desse movimento é um passo firme na direção da sua destruição, ao eliminar do cenário de atuação a sua base popular e laica.

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Futebóis

Para todos os que aplaudiram o Gabigol, imaginando uma postura política e nobre ao não dar atenção ao governador ajoelhado, lembrem que os jogadores de futebol, salvo raríssimas exceções (Sócrates, Roger Machado, Juninho Pernambucano, Wanderley Luxemburgo, Afonsinho, etc) são alienados, afastados das comunidades de onde vieram, vivendo em redomas, ganhando milhões, reacionários, direitistas, meritocráticos, ignorantes da realidade social e, não por acaso, apoiadores de soluções radicais e violentas. A recente comemoração do Palmeiras (clube criado por imigrantes e operários) ao lado do Bolsonaro (um fascista) não pode ser esquecida.

A lista de jogadores que se identificam explicitamente com o binômio biblia-bala é extensa e citar alguns e esquecer outros poderia parecer clubismo ou perseguição. Imaginar que desse estrato social sairá alguém com consciência de classe é uma ilusão na qual a esquerda não pode embarcar.

Gabigol é um herói para o futebol, mas não exijam dele o que não pode dar. Não lhe peçam que seja um exemplo de luta contra a desigualdade, a exclusão e o genocídio protagonizados pelo governador do Rio. Para a galera favelada, preta e pobre do Flamengo, essa mesma que o Witzel mira “na cabecinha”, ele não chegará a ser mais do que um pôster na parede.

Outra questão é o que significa a vitória do Flamengo. Já há muito anos denuncio a espanholização do futebol brasileiro que só não aconteceu antes pela incrível incompetência do Flamengo em gerenciar seus recursos e pelos desmandos políticos do Corinthians. Somente os Flamenguistas mais fanáticos enxergariam a situação falimentar de TODOS os outros clubes cariocas como algo positivo. Não posso aceitar o desaparecimento de grandes e tradicionais clubes do Rio em nome de abrir espaço para o surgimento de um time de galácticos milionários.

Nesse contexto o Flamengo é o Walmart do futebol.

E vamos combinar que o Flamengo tem a maior torcida porque tem mais investimento de mídia e tem mais mídia porque tem a maior torcida, num circulo que tende a esmagar os outros clubes e criar um desnível de recursos que se escora em muito dinheiro.

Concordo com a ideia de que nada disso desmerece o duplo sucesso que o Flamengo conquistou nestes dois dias. Todavia, o desnível econômico e a gentrificação do esporte bretão podem criar um futebol previsível e sem graça.

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Sobre a natureza das doulas

Não vejo nenhum problema que essa função social, ou este papel, seja desempenhado de forma a garantir retorno financeiro às doulas. Pode-se cobrar de zero (de quem não tem condições de pagar) a muito (de quem valoriza este trabalho). Minha questão não se refere à cobrança – seja ela como for – e também não gosto de debate sobre “mercantilização”. Acho isso muito “cristão culposo”, pois dá a entender que cobrar pelo seu trabalho, tempo e disposição é errado.

O que me angustia é muito mais profundo do que o debate de “quantos dinheiros vale este trabalho”. Também não me incomoda a natural disputa sobre “nichos de mercado” pois o tempo ajusta isso. Em verdade, se a formação de doulas se tornar este curso de quase 200 horas e a este valor cobrado pela formação teremos não apenas a “gentrificação da doulagem”, mas sua nefasta medicalização e a perda de sua essência, que se fundou no carinho, proximidade, afeto e apoio incondicional.

Doulas cobram por seu tempo e arte, não pelo conhecimento acadêmico e elaborado de fisiologia, anatomia ou técnicas sofisticadas de posicionamento fetal.

Se as coisas continuarem assim em pouco tempo o futuro COFOULA – Conselho Federal das Doulas – lançará uma nota exigindo que também elas sejam chamadas de “doutoras”.

As leis que forem criadas exigindo formações longas e custosas para doulas são quimeras, engodos, truques para implodir o movimento, e devem ser combatidas e eliminadas. Adaptar-se a elas é fazer o jogo de quem odeia doulas.

Entre as propostas que escutei no Conadoula estavam aulas de gênero, raça, associativismo. Eu pergunto: e a doula da favela, também ela moradora da comunidade e praticamente sem instrução? E se uma doula não quiser tratar de racismo? E se uma doula for evangélica, a favor da cura gay e totalmente carola? Temos que obrigar doulas a seguir agendas feministas e “progressistas”? Por quê?

Lembro bem de uma paciente xiita que veio ao meu consultório de burca. Não admitia ser atendida por homens e veio com o seu marido para garantir isso. Por sorte Zeza fez o exame, mas eu teria o direito de doutriná-la pelos meus valores ocidentais igualitários? Não seria melhor se ela tivesse uma doula muçulmana que pudesse entender sua realidade e respeitá-la em sua singularidade? A quem serve esse currículo sofisticado que foi apresentado?

Fui convidado a não se meter na questão das doulas, mesmo tendo apoiado esse movimento desde o dia 1 do seu surgimento no Brasil. Entretanto não posso me furtar de opinar (mais uma vez) que o surgimento dos “Mega Cursos” de Doulas, caros e com 180 horas de aula (!!!!) significam o fim do movimento de doulas como o conhecemos e como surgiu há 15 anos no Brasil. Sim, eu sei que as doulas farão o que quiserem e são donas do seu destino, e que eu sou velho e não tenho que me meter no assunto alheio. Ok, então que assim seja. Todavia, eu concordo com a ideia de que a criação das “super-doulas” vai acabar com a percepção que tínhamos do seu trabalho e que foi o sustentáculo de sua importância na última década e meia.

Eu creio que, mesmo que crie esta profissão com cursos sofisticados e caros, no fim das contas as mulheres vão acabar contratando uma amiga – até sem curso algum – mas que fará o que se espera de uma acompanhante cálida e amorosa. Teremos que recriar a essência da doulas originais, aquilo que um dia atraiu a atenção de Klaus e Kennell e que revolucionou o universo do nascimento.

Talvez seja necessária uma aventura tecnológica para depois voltarmos à simplicidade.

Como na medicina….

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