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Parto com Jesus

Recebo através de amigos a noticia de que a EACH (USP Leste), aprovou em seu currículo um curso de extensão (não obrigatório) chamado “Parto e Espiritualidade Cristã”, com os seguintes objetivos:

“Refletir a espiritualidade em suas etapas fisiológicas: concepção fetal; desenvolvimento e crescimento fetal; e no processo do parto, nascimento e pós parto. ( …) O curso respeitará a abordagem cristã ao apresentar cada temática com seu arcabouço teórico e científico.” O texto ainda cita os gametas, o núcleo familiar composto pela dualidade homem-mulher, assim como sua importância na estrutura do tecido social.

Ora, se o parto faz parte da vida sexual normal de toda mulher, então é justo afirmar que as mesmas leis gerais que regem um controlam também o outro. Assim, se é corriqueiro testemunhar o sexo enquadrado pela fé cristã, como se pode ver nos inúmeros cursos sobre o tema, seria de se esperar que os fenômenos da gestação, parto e amamentação sejam igualmente controlados pela mesma ideologia cristã. A sedução em controlar a sexualidade humana sempre foi um dos pilares de sustentação do patriarcado. Em verdade, sexualidade e parto são duas forças extremamente poderosas da natureza sobre as quais faz-se necessária a domesticação, para que sua potência criativa seja utilizada de forma eficiente. Para o patriarcado nascente era essencial que tamanho poder fosse submetido aos interesses produtivos da sociedade complexa, a qual se iniciou após a revolução do neolítico.

Por outro lado, a humanização do nascimento, um movimento de mulheres e profissionais da atenção ao parto que luta pela mudança do paradigma obstétrico – inclusive sendo inspiração para a criação de escolas de obstetrizes como esta da EACH – se instala no polo oposto dessa proposta. A visão humanista que estes profissionais defendem há décadas não admite a existência de torniquetes ideológicos de qualquer natureza, sejam eles políticos, étnicos ou religiosos. Para estes grupos, existe a clara certeza de que, se há algo que precisa ser livre das constrições impostas pela cultura, sem as amarras determinadas pelo capitalismo e o patriarcado, este fenômeno é o parto. De uma forma clara, o trabalho mais nobre do movimento de humanização do nascimento é o resgate dos seus aspectos selvagens, primitivos e pulsionais, pois que a cultura, as religiões, a moral e quaisquer outras forças sociais atuam como condicionantes negativos para a livre expressão dos processos psíquicos e sexuais do parto. Desta forma, a tarefa dos profissionais que se ocupam do nascimento é criar um círculo de proteção em volta da gestante, mesmo sabendo que, por estar imerso na cultura, é impossível não ser tocado por ela.

Ou seja, um “parto cristão” – mas poderia ser islâmico, budista ou ateu – é o oposto do que propomos há décadas, que se resume na liberação das capas de condicionamento cultural que atrapalham a livre expressão fisiológica do parto. Lamentamos a criação de cursos que vinculam o nascimento humano a qualquer corrente religiosa, pois que a verdadeira religião do parto é o gozo da vida.

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Parto humanizado e mídias sociais

Eu as vezes sou convidado a assistir palestras sobre obstetrícia que tratam de temas que há muitos anos debatemos no movimento de Humanização do Parto e Nascimento. Nesta semana assisti mais uma vez o mestre Michel Odent – pensador e escritor francês de 91 anos – falar de suas teses centrais, como o “imprint” e a importância de oferecer à mulher um entorno de proteção, intimidade e privacidade para que a “entrega” seja a mais tranquila possível. Ter sido contemporâneo de Michel é um grande privilégio para qualquer pessoa que um dia trilhou pelos caminhos da humanização. Posso estar cometendo um sacrilégio mas, na minha perspectiva, os trabalhos de Odent e Robbie Davis-Floyd no campo da compreensão dos significados últimos e inconscientes do processo de nascer adquirem uma importância ainda maior do que aqueles conceitos sobre o “nascimento sem violência” oferecidos a nós um pouco antes por Frederick Leboyer, outro baluarte da grande revolução do parto.

Escutei também o comediante Rafinha Bastos falando sobre partos e doulas, na entrevista que fez com sua irmã – que é doula e professora de Yoga – e achei que sua visão superficial, preconceituosa, jocosa e até debochada do processo de nascimento é uma amostra razoavelmente adequada do pensamento médio dos homens brasileiros. Sua ignorância a respeito de elementos mínimos da proposta de humanização, sua repulsa com tudo o que existe de selvagem e essencialmente humano no parto – além da sua exaltação da “praticidade e limpeza” das cesarianas – são muito demonstrativas da visão majoritária que ainda é prevalente entre os homens. Acho lamentável sua percepção sobre um tema tão delicado, mas saber que ele se dispôs a escutar é algo que devemos saudar como positivo. Quando trocamos ideias com os companheiros das mulheres que nos procuram pela expectativa de um parto humanizado é importante ter em conta que estes sujeitos representam uma fatia francamente minoritária nesta sociedade.

Um pouco depois escutei a aula de uma enfermeira obstetra que falou sobre o tema da violência obstétrica para alunos universitários, um tema que a cada dia assume uma importância maior nos debates de gênero na Internet. Na minha perspectiva ela falou de uma forma bastante superficial, talvez um pouco mais do que o necessário, mas entendo que ela imaginava se dirigir a uma plateia ainda muito desinformada sobre o tema e, portanto, preferiu uma abordagem mais geral e simplificada.

Em verdade eu prefiro as perspectivas sobre o parto que são mais complexas, mais obscuras e menos debatidas e sobre as quais pouco se fala, em especial no que diz respeito à atenção ao parto como evento da sexualidade. Entretanto, tocar nesse ponto é arriscado e perigoso. Vivemos em uma sociedade de cancelamentos onde as ideias sucumbem à interpretação que se pode fazer delas, e onde a verdade é menos importante do que a aceitação e o reconhecimento das nossas “personas sociais”. Fugir de certos maniqueísmos é tarefa complexa, e seria um risco muito grande tratar desse tema para um grupo tão heterogêneo.

Nas perguntas que se seguiram à sua exposição chamou minha atenção algo que vi repetidas vezes quando tratei publicamente deste tema. Percebi que, o que muitas mulheres chamam de “violência obstétrica” é, na verdade, tão somente a ponta de um imenso iceberg, uma fração menor do que seja a violência que ocorre no parto. A maioria das mulheres (e também seus parceiros) aponta como violência apenas aquilo se que tornou visível e palpável, a parte que ultrapassa a linha das ondas e emerge do oceano como barbárie. Da mesma forma, a violência do encarceramento obsceno das sociedades capitalistas aparece sob a forma de desumanidade, tortura e morte, para só então ser condenada. Parece que a nós somente quando a brutalidade estrutural e ideológica submersa se torna evidente pelo exagero de um processo – que já é violento por natureza – temos a possibilidade de denunciar sua existência.

Ainda espero das jovens ativistas uma definição mais clara, concisa e firme do que seja “parto humanizado”. Parece faltar uma percepção mais elaborada, que fuja da ideia de “parto gentil”, “parto delicado”, “parto adequado”, “obediência às evidências científicas”, que são elementos importantes deste processo, mas que não contemplam o cerne da definição, o qual está visceralmente ligado à ideia de “garantia de protagonismo” às mulheres. Precisamos falar mais sobre a história desse movimento social, debater seus pilares de sustentação e entender que esta proposta surgiu muito recentemente como uma contraposição ao modelo tecnocrático hegemônico, que despersonaliza e objetualiza as gestantes, uma condição que se fortaleceu pela dominação do paradigma biomédico estabelecido de forma marcante a partir do século XX.

Na palestra da jovem professora ela elogiou as Casas de Parto e deixou claro para todos a importância das enfermeiras como cuidadoras primordiais do parto, o que é muito bom. Para além disso, eu me surpreendi com as perguntas feitas pelos estudantes a ela, o que sugeriu que ela poderia ter ido mais fundo nas definições, contradições e dificuldades no combate à violência obstétrica. Talvez ela tenha subestimado mais do que devia a capacidade de crítica dos alunos presentes à sua palestra.

Saber que esse tema toma a Internet hoje em dia me oferece a esperança de que estivemos fazendo certo em denunciar um modelo anacrônico de atenção ao parto e de mostrar que há perspectivas mais humanas e dignas de trazer as pessoas ao mundo.

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Parto, nascimento e autonomia

Este é o meu primeiro texto para o blog da Causa Operária e gostaria de tratar de um tema que sempre me deixou muito interessado: o Movimento de Humanização do Nascimento no Brasil, suas origens e suas propostas, questionando as dificuldades que atrasam a adoção de seus postulados.

No Brasil o nascimento – a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, mas não na Europa – é comandado pelos médicos. Essa assistência centrada no profissional de medicina como principal cuidador – que eu chamo de iatrocêntrica – é aquela que produz os piores resultados, inobstante sua implantação em países ricos ou pobres. Os modelos centrados na “parteira profissional” (enfermeiras com pós-graduação em obstetrícia ou parteiras de “entrada direta”) são aqueles que obtém os resultados mais adequados, tanto do ponto de vista de bem estar de mães e bebês quanto dos custos. Essa diferença de modelos de atenção é fundamental para entender os problemas do nascimento no Brasil.

Os médicos sempre se posicionaram à direita do espectro político, e por isso só muito raramente encontramos médicos comunistas, socialistas ou mesmo fazendo parte da esquerda liberal. Minha impressão é de que esta escolha se faz pelos estratos sociais dos quais são egressos. Os profissionais médicos emergem da pequena burguesia brasileira, e isso fica muito evidente desde o primeiro dia de aula na Escola Médica. Meu olhar sempre foi crítico em relação a este fato por ser filho de um funcionário público, da baixa classe média, para quem o mundo da burguesia era bastante estranho. Ver colegas de 18 anos chegando para a aula com seus carros novos e reluzentes era algo bastante distante do meu mundo proletário.

Assim, todo a meu período de estudante se deu como um escafandrista, mergulhado no universo das classes mais altas, mas tentando manter o tubo intacto para a conexão com universo de relações, de gente simples, que lutava pelas suas pequenas conquistas com razoável dificuldade. Eu me mantive sempre conectado com minhas raízes operárias, o que me ajudou a questionar este universo de valores burgueses com razoável distanciamento crítico. Da mesma forma, a atenção ao parto – por congregar aspectos da política do corpo – não poderia ficar longe da minha atenção e desde muito cedo percebi que a obstetrícia contemporânea se expressa como um braço do patriarcado e desempenha um papel opressor sobre a livre expressão das mulheres.

Minha formação médica seguiu uma trilha bastante interessante. Fui pai no terceiro e no sexto ano de medicina. Comecei a trabalhar em hospitais já no segundo ano da faculdade e, quando entrei para a residência em obstetrícia, eu já contabilizava uma razoável experiência na atenção ao parto, enquanto meus colegas sequer haviam assistido meia dúzia de partos. Isso me colocava com uma vantagem pela experiência, mas também me trouxe uma visão muito mais crítica daquilo que na época eu entendia como uma questão de gênero: a violência sutil e corrosiva que ocorria na atenção às mulheres durante o parto, mas que sempre foi ignorada pelos olhos desavisados.

O nascimento dos meus filhos, antes ainda de entrar na residência, também tiveram essa marca, mas, assim como muitos, eu não conseguia perceber nas rotinas, nos protocolos, nos afastamentos e nas agressões morais a violência que elas disseminavam e perpetuavam. Pareciam ser “as coisas como sempre foram”, ou as entenda da msma forma como as palmadas – que apesar de brutais era usadas para “ajudar” no desenvolvimento das crianças. Quando eu era criança por serto que ninguém ousava discordar da pedagogia das palmadas e surras, muito menos questionar episiotomias (cortes vaginais), manobras agressivas como o Kristeller (empurrar o fundo do útero), afastamento do bebê após o parto, enemas (lavagem intestinal), raspagem de pelos, etc.

Com o passar do tempo ficou claro que o que ocorria em sala de parto era a imagem em microcosmo de um modelo social que penaliza qualquer manifestação da sexualidade feminina. O modelo patriarcal precisa controlar qualquer manifestação erótica para manter o controle sobre a estrutura social. Depois de alguns anos de formado conheci o obstetra francês Michel Odent que me ensinou dois pontos fundamentais para entender a encruzilhada do parto no planeta: o primeiro é de que “o parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, o que transformaria radicalmente a forma como deveríamos entender e enxergar esse evento: como uma real manifestação em forma bruta da sexualidade, que demanda os mesmos critérios de proteção do encontro sexual: privacidade, autonomia, silêncio, respeito e intimidade.

O segundo ponto é que “para mudar o mundo é preciso mudar a forma de nascer”, deixando claro que as violências na sociedade estão conectadas com as violências pelas quais somos recebidos ao mundo. Em verdade, não existem sociedades justas e dignas onde ocorrem partos violentos e abusivos, muito menos ocorrem partos respeitosos e adequados em sociedades agressivas e desiguais. A violência social não se expressa em vasos estanques, e por isso essa manifestações devem ser combatidas em sua raiz: a desigualdade, elemento essencial do modelo capitalista, Portanto, cabe aos parteiros mudar o “imprint” de chegada, para que esses sujeitos assim recebidos possam levar consigo a marca do afeto e do suporte, para disseminar como valores estruturais em todas as suas relações.

Por certo que eu sempre soube que a luta pelo empoderamento das mulheres, e o esforço para que pudessem parir a partir dos seus valores e com respeito às suas crias me levaria a entrar em choque com o sistema de poderes que controla a medicina. Não haveria como imaginar que a crítica veemente ao que é feito nos centros obstétricos de todo o país seria tratada de forma serena e madura, muito menos que ela seria aceita sem enfrentamento. O tratamento que é oferecido àqueles que questionam os pilares centrais do poder médico é o de hereges, traidores da corporação.

Já no início desse século iniciaram-se as agressões sistemáticas a vários médicos no Brasil que adotavam um modelo respeitoso e humanizado na assistência ao parto. Não foram poucos os processos abertos por pura vingança, ou para pressionar os profissionais a manterem uma conduta conservadora, que se caracterizava como centrada no médico, na patologia e no hospital, desvalorizando os outros profissionais que atendem o parto, a fisiologia e a normalidade do processo de nascimento e repudiando qualquer assistência oferecida fora do ambiente hospitalar.

Esse é o ponto em que nos encontramos agora. A corporação médica aferrada aos seus conceitos, mantendo procedimentos agressivos e perigosos contra as mulheres e seus bebês, utilizando procedimentos anacrônicos, com taxas de cesarianas obscenas – 55% no país, sendo que a classe média chega a atingir 85% de cesarianas, enquanto a OMS determina a inexistência de qualquer vantagem para as mulheres e seus filhos quando esse valor ultrapassa 15 a 20%. Para piorar, iniciaram uma campanha nacional para sepultar o termo “violência obstétrica”, como se a simples supressão dessa expressão tornasse as ações suaves e respeitosas como um passe de mágica

A luta pela humanização do nascimento é também uma luta contra um sistema que coloca mães como vítimas dessa violência e os médicos como reféns de um sistema igualmente violento e vingativo. É uma luta de mulheres exigindo liberdade, autonomia e participação em todas as decisões sobre seus corpos, a exemplo das lutas pela liberdade sexual que se intensificaram no pós-guerra. Afinal, essas lutas são irmãs, mas foram artificialmente separadas para que a frente de confrontação se enfraquecesse.

A defesa do parto humanizado também está inserida nas lutas de classe, na medida em que os direitos à autonomia dos corpos e à liberdade devem ultrapassar as barreiras das classes sociais e devem ser garantidos à todas as mulheres, pois que se referem aos direitos reprodutivos e sexuais a que todas têm direito.

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Expectativas

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“É comum acreditar que um parto será “lindo” na dependência do que desejarmos. A prática nos mostra que, mesmo acreditando na importância dos desejos e projeções maternas, eles não são suficientes para garantir o destino de um nascimento. Parto é algo que acontece entre as orelhas, de uma forma subjetiva e única. Sua manifestação se encontra alicerçada no inconsciente, como qualquer outra manifestação da sexualidade humana. Assim, não há como se valer dos desejos expressos sem levar em consideração o universo de sensações, memórias da pele, lembranças, frases, marcas, sentimentos, sons, ruídos, luzes e cores que constituem nossa arquitetura psíquica.

Só o que podemos fazer diante das demandas por experiências criativas e enriquecedoras é não criar falsas expectativas ou garantias ilusórias de um parto maravilhoso. Nem todos podem passar pelo parto como desejam: ele é um projeto que se consolida durante toda uma vida. Estar preparado para as frustrações é sinal de maturidade e uma condição essencial para quem deseja se aventurar no campo da maternidade. Auxiliar na construção de uma experiência positiva e realista é dever de todos que se dedicam a acompanhar esta jornada”.

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