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Espiritismo é Religião?

O espiritismo enquanto sistema de crenças institucionalizado foi criado por um homem, Allan Kardec (ou o pedagogo Hippolyte Leon), baseado em manifestações de espíritos acerca de fenômenos muito comuns na França do século XIX. Não é uma “revelação”, porque este tipo de modelo só pode produzir doutrinas dogmáticas, e também não é uma doutrina ditada por espíritos. Ela foi criada por Kardec, que lhe ofereceu todas as virtudes e todas os seus defeitos. Como principal virtude a ideia de que não é uma religião, não se comporta como seita, não aceita personalismo, não tem caráter sectário e está vinculada à ciência, de maneira que pode ser modificada indefinidamente caso seja comprovado um erro em seus pressupostos.

Como principal defeito o evidente eurocentrismo, a ideia construída de Cristo como espírito guia da humanidade, desprezando outros personagens religiosos de igual relevância e importância histórica. Faltou ao espiritismo nascente este caráter de universalidade. A ideia de uma doutrina de consequências morais também me parece bastante equivocada, pois que a moral se molda e se transmuta com o tempo. Ver espíritas adotando a moral conservadora cristã e as perspectivas políticas mais alienantes são os resultados óbvios dessa escolha. O espiritismo deveria se ocupar da pesquisa científica e filosófica da sobrevivência da alma, a manutenção do princípio espiritual e a reencarnação como processos depurativos do sujeito, e muito menos com os costumes e a moral vigente, elementos que apenas atrasam sua circulação no ambiente acadêmico.

Não se trata de “conhecer”, mas de interpretar os fatos. Não acredito que o espiritismo seja uma doutrina “ditada” por espíritos, mas criada por Kardec a partir de mensagens esparsas e sem a devida conexão recebidas por médiuns de sua época. Kardec sempre foi a figura central e unificadora do processo, pois é dele a sistematização, a divisão dos temas, a escolha das perguntas e a formatação final. Desta forma, o Livro dos Espíritos é tão humano e tão centrado na figura do seu criador quanto a teoria evolucionista de Darwin. A ideia de que ele seria apenas o “codificador” (seja lá o que isso quer dizer) não me parece justa. Os méritos são de Kardec, assim como os terríveis defeitos encontrados nas obras, causados pelo contexto em que foram escritos aqui na Terra.

E quanto a “espírito perfeito” essa é outra tolice. Jesus é uma criação humana, criado e moldado pelas nossas necessidades e interesses geopolíticos. O Jesus real foi basicamente um judeu reformista, cujo principal interesse era reformular a religião judaica. Nunca conversou com alguém que não fosse judeu e sempre se dirigiu apenas ao seu povo. Era basicamente um autoproclamado “messias” – assim como outros 400 daquela época – alguém destinado a livrar os judeus do jugo Romano. Tinha portanto uma missão política, aliás, para criar um “reino deste mundo”. Falhou em seu intento, e por esta singela razão jamais foi reconhecido como “ungido” por seus iguais. Entretanto, sua mensagem aos humildes e pobres cativou a periferia do Império Romano, graças ao apóstolo dos gentios (não judeus), Paulo de Tarso, que a levou a “gregos e baianos”.

Por outro lado, essa é apenas a história criada sobre um personagem mitológico ocidental, que ganhou sucesso graças a uma decisão de gabinete de Constantino. Que dizer dos outros líderes espirituais, como Buda, Lao Tsé, Zoroastro, Confúcio etc. Por que seriam eles “inferiores” ao “sujeito perfeito” nascido no fim do mundo, num lugar miserável e desimportante do Império Romano chamado Palestina e cuja mensagem não trazia nenhuma grande verdade oculta (a não ser parte das bem-aventuranças)? Ora… 200 anos depois de Kardec e continuamos com o mesmo eurocentrismo cafona, achando que nosso Jesus branco é um “ser de luz” com faroletes mais luminosos que do que aqueles dos seus concorrentes. Por que haveria de ser? E por que deveria o espiritismo, em sua proposta universalista, escolher o líder ocidental como paradigma de perfeição? Não faz nenhum sentido, e o espiritismo deveria abandonar essa perspectiva racista e sectária para se tornar a verdadeira voz de unificação de uma proposta espiritualista.

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Evangelho

Quando pequeno tive aulas de “evangelização” na sociedade espírita que meu pai era presidente. Até hoje tenho sentimentos conflitantes sobre essa experiência. Discuti o assunto com vários amigos da época, e ainda acredito que, caso tivesse frequentado uma escola de artes, ou um clube literário, (quem sabe uma banda de rock?), estas escolhas teriam sido mais proveitosas, e me deixariam mais preparado para a vida. Para muitos, as aulas “dominicais”, são uma forma de ensinar perdão, amor, caridade, fraternidade, etc. Há quem discorde, acreditando que ensinar religião para crianças e encher suas cabeças com conceitos religiosos – acreditando que isso pode “moldar seu caráter” para que se tornem “cidadãos de bem” – é uma ideia absurda e que não encontra qualquer comprovação nos fatos. Seja qual for a verdade, compreendo quem acredita que a infância deve ser livre deste tipo de ensinamento, em especial os que são oferecidos às crianças do ocidente, como as mitologias judaico-cristãs.

Eu lembro vagamente dessas aulas, mas não de uma forma positiva, apesar de que minhas memórias sobre elas também não são negativas (afinal, conheci minha futura esposa nesses encontros). Todavia, acredito que minha cabeça seria mais livre de preconceitos se não tivesse escutado tantas histórias de Jesus e seus apóstolos, as quais acabaram trazendo toda uma exaltação da Palestina como um lugar “mítico” e “sagrado”. Ora, na perspectiva do Império Romano, naquela época a Palestina tinha tanta importância geopolítica quanto tem hoje a pequenina Gravatá em Pernambuco para o Imperialismo americano. Ou seja, absolutamente insignificante. Entretanto, foi Paulo de Tarso (o apóstolo dos gentios) e uma série inimaginável de intrincadas coincidências históricas o que fez o cristianismo ter relevância – muito mais do que a profundidade dos ensinamentos de Cristo, que podem ser achados numa infinidade de outras religiões e seitas até bem anteriores ao próprio cristianismo. “Ahh, mas o sermão do monte, as bem-aventuranças”. Sim, não há como negar o significado desta parte do Evangelho; este sermão é o coração do cristianismo e o seu grande diferencial, pois nele ficou clara a opção pelos pobres, e foi essa conexão com as classes miseráveis que lhe ofereceu imensa popularidade.

Por outro lado, por causa dessas aulas precoces de cristianismo, acabamos fixados nessa cosmovisão judaico-cristã – que pode ser sectária e até obliterante. A pior de todas as heranças é a tese do “povo escolhido” ainda usada pelos sionistas, como se aquele povo tivesse alguma qualidade especial aos olhos de Deus, mais do que os asiáticos, africanos ou os habitantes do novo mundo. Como se Deus tivesse encontrado, entre todos os grupos humanos, a sua gente “preferida”. Pergunto: que Deus é esse que se comporta como um pai irresponsável, que se dedica mais a um filho do que aos outros?

O espiritismo, por sua vez, importou esta ideia supremacista ao criar a fantasia do Brasil como “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, uma ideação arrogante e ufanista que não se assenta sobre nenhuma evidência na história, a não ser o fato de termos a maior população católica do mundo. Bem sabemos o quanto essa “religiosidade” não nos garante nenhuma qualidade especial na defesa dos direitos humanos, das crianças, das mulheres, da população LGBT, da natureza ou na distribuição de renda. Na infância muitas crianças espíritas são alimentadas com estas visões equivocadas e arrogantes sobre o Brasil, trazendo a fantasia de que somos um país “especial”, quando em verdade somos apenas mais uma nação que tenta sobreviver ao capitalismo brutal e decadente.

Hoje vejo entre os cristãos brasileiros uma adesão muito forte ao discurso de Israel na sua guerra covarde contra os palestinos, e acredito que muito disso está na visão positiva que têm da região. “Ahh, Jerusalém, o Monte das Oliveiras, o Gólgota, o lago Tiberíades, Belém, Nazaré, o lago de Genesaré, o mar da Galileia, o rio Jordão”…. são lugares que eu lembro de cabeça somente pelas histórias que li e ouvi durante os anos da infância, mas isso não deveria produzir nossa cegueira diante da perversidade genocida daqueles que controlam a ferro e fogo a região.

Minha experiência mais contundente aconteceu quando fui à China pela primeira vez e perguntei à uma plateia de quase 100 profissionais da saúde se tinham ouvido falar de “Freud”. Apenas duas pessoas o conheciam, mas nada sabiam de sua obra. Ou seja: a cultura de lá jamais necessitou de Freud para construção de uma sociedade vigorosa. Da mesma forma, conheci lá centenas de maravilhosas pessoas que jamais tiveram qualquer contato com o cristianismo ou com as histórias e parábolas de Cristo, o que parecia não lhes fazer falta alguma. Naquela oportunidade cheguei à conclusão que nossa visão eurocêntrica, ocidental e cristã nos dificulta enxergar outras realidades no pensamento humano. Por isso, oferecer aos pequenos uma perspectiva humanista e não sectária deveria ser uma alternativa muito mais frequente entre nós. Sem gurus, sem salvadores, sem messias, sem livros sagrados, sem povos escolhidos, sem verdades pétreas, sem diferenças essenciais entre os povos e abraçando a diversidade da forma mais intensa e possível, desde a mais tenra idade.

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O Comuna da Galileia

E no meio da multidão Tadeu e Josias debatem sobre os ensinamentos recém recebidos. Junto com tantos outros eles se aglomeraram na pequena vila na Palestina para escutar as palavras de Paulo, o Apóstolo dos gentios.

– Jesus? Não sei, nunca confiei. Mania de andar com pobre e puta. “Divida o pão e o peixe”? Qualé rapá? Achei dinheiro no lixo? Se ele acha mesmo que tem que dividir, por que não dividiu a túnica dele? Que ande pelado, aí sim quero ver. E viu como ele chegou em Jerusalém? Montado num burrico. Agora diga… comunista de burrico? Queria ver chegar a pé, cheio de bolha nos dedos. Vai pra Galileia!!! Depois que foi pra cruz e ressuscitou virou esquerdalha, mas tinha que ver o vinho que eles tinham na última ceia!! Coisa boa, importado. E tu acha que chamar Leonardo da Vinci pra pintar saiu barato? Esses caras cobram o olho da cara e só trabalham prá meia dúzia de riquinhos. “É arte moderna” dizem eles. Tudo comuna rabanete; vermelho por fora branquinho por dentro. Explica essa mané: se Roma é tão ruim assim por que todas as estradas levam pra lá? Agora diz aí quantos romanos querem vir morar na Palestina? Tem gente que se joga no Mediterrâneo pra chegar lá a nado e morre afogado no meio, mas me diz onde está o pessoal que prefere vir para cá, comer areia em Nazaré.

– Cara, são perspectivas, pontos de vista. Tenha calma antes de julgar. Agora fique em silêncio que o palestrante principal vai falar.

– É quem é?

– Não sei, mas é um operário sem dedo. Jesus costumava chamá-lo de “meu garoto”.

– Hummm, da pra sentir daqui o cheiro da mortadela. E essa multidão aí, tudo pago. Todos mamam nas tetas. Pode apostar que essa mamata vai acabar.

– Rapaz, você nunca vai entender, nunca…

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Paulo, o Falsário

Esta é a ideia que eu faço de Paulo, como foi brilhantemente descrita em seu diálogo com Cristo no livro de Níkos Kazantzákis vertido para o cinema por Martin Scorcese – “A Última tentação de Cristo”. Em última análise, Paulo é a razão por sermos cristãos. Foi dele a genialidade de vender a mensagem crística para o Império. Ele foi o vendedor de uma obra cuja suprema genialidade estava na esperança para os pobres e os desvalidos, garantido a felicidade para o “outro mundo”, conforme expresso no “Sermão da Montanha”, a grande síntese da mensagem de Jesus.

Sim, ele por certo modificou a história daquele nazareno que tentou desafiar o Império Romano falando de judaísmo para judeus e pregando a liberdade de seu povo. Entretanto, é muito provável que as palavras do “Cristo real” jamais ultrapassassem as barreiras do Jordão ou do Mediterrâneo. Afinal, quem daria atenção a um Messias fracassado, incapaz de libertar seu povo do jugo romano – conforme determinavam as escrituras – e que morreu humilhado e sozinho, apoiado apenas por uma dúzia de fanáticos? Quem lhe daria ouvidos quando sua voz estava misturada àquela de 4 centenas de outros autoproclamados “Messias” que pereceram sob a espada de Roma?

Ora… talvez Paulo tenha visto o que os outros não viram, nem mesmo o Cristo. Paulo percebeu a profundeza e o sentido político das palavras expressas no Sermão feito no Monte das Oliveiras. Ele entendeu que o Império Romano se aproximava de seu ocaso e que os povos, um após o outro, precisariam de uma mensagem e, porque não, uma religião que os conduzisse em direção aos seus ideais libertários.

Paulo de Tarso foi ao coração do poder para vender sua mensagem aos pobres, aos coxos, aos desamparados e aos desvalidos, e por isso- e não pelo caráter revolucionário de Jesus se enfrentando com o poder local – sua mensagem ganhou o mundo e sobrevive entre nós até hoje. Se Paulo era um falsário, um arrogante, mentiroso e dissimulador não tenho como contestar. Entretanto, é forçoso reconhecer que é dele a responsabilidade pela existência do cristianismo.

Lembro por fim da frase espirituosa sobre o valor das obras: “Qualquer um de nós pinta um quadro de um milhão de dólares, mas é preciso ser um gênio para vendê-lo por esta quantia”.

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Universo em Desencanto

Tim Maia nos anos 80 aderiu a uma seita chamada “Universo em Desencanto” criada por um obscuro guru da baixada fluminense (Manoel Jacintho Coelho, falecido em 1991) e que se baseava na interação de humanos com alienígenas, que iriam nos controlar, orientar e, por fim, nos salvar da eterna danação. Quando perguntado sobre o criador dessa religião ele respondeu: “Um dia o mundo inteiro conhecerá seu nome e sua obra”.

Essa visão teleológica do mestre Tim Maia é tão absurda quanto imaginar que um auto proclamado profeta-carpinteiro analfabeto da palestina (uma espécie de Belford Roxo para o império Romano) pudesse ser uma personalidade venerada depois de quase 2000 anos de sua morte. Afinal, acreditar em anjos ou ETs não é tão diferente assim.

Tim Maia foi um Paulo de Tarso que não deu certo.

Minha intenção, ao escrever esses parágrafos, foi afirmar que uma mensagem, por melhor que seja, precisa de uma série tão complexa quanto imprevisível de elementos para se tornar hegemônica. A ideia de que a mensagem de Jesus sobreviveu pela “verdade” que carrega é, para mim, insuficiente, para não dizer ingênua. Se isso fosse verdade – a potência imanente de uma evidência – então não teríamos 91% de partos na pior posição do mundo para parir. Bastaria observar a realidade histórica e as que emergem dos estudos para que a posição de parir fosse mudada para melhor. Pois eu repito: a verdade por si é INSUFICIENTE. O cristianismo é uma mistura de mensagem para os pobres (do Sermão da Montanha), ativismo libertário (na figura do Messias – um lutador pela libertação palestina) a atuação política de Paulo (um romano que se envolveu na causa) e mais uma série de coincidências e contextos históricos. Não foi a verdade da mensagem – mesmo que se acredite nela – mas as circunstâncias.

Realmente a Galileia estaria para o Império Romano como uma pequena cidade do interior está para o contexto do Brasil. Uma poeira perdida no mapa, desimportante e sem potência para ameaçar as bases de um Império sólido e gigantesco. Tão sem importância era que os romanos sequer deixaram uma parede em pé quando a retomaram no ano 70. Por isso é que a mensagem de Jesus precisa ser entendida nesse caldo cultural em que se encontrava a Europa e o Oriente médio há dois mil anos, o contexto do colonialismo romano e sua “pax”. Jesus, seja lá quem tenha sido de verdade, é fruto dessa efervescência, e sua mensagem se tornou hegemônica por uma miríade de fatores, entre eles o fato de ser uma bela história a ser contada.

PS: De acordo com as probabilidades, um sujeito filho de um carpinteiro vivendo na localidade de Nazaré, que de tão pequena não tinha sequer uma sinagoga, só poderia ser analfabeto. Reza Aslam concorda com esta tese.


Primeira baixa do meu texto acima sobre Jesus. Um querido amigo (de mais de 10 anos) me informa consternado que parou de me seguir porque não aceita que eu tenha sido, segundo afirma, desrespeitoso com a figura de Jesus. Diz ele que não permitiria que o “Salvador do Mundo” seja comparado com um maníaco brasileiro (o criador do Universo em Desencanto).

Minha resposta para ele foi a que se segue:

“Caro amigo, sinto muito por duas razões: uma por não participar mais do teu Facebook e outra por não teres entendido absolutamente nada do post que fiz sobre a importância seminal do trabalho de Paulo, ao meu ver o responsável pela existência do cristianismo. Na minha modesta opinião não há nada de errado na minha descrição de Jesus – do ponto de vista histórico – e muito menos ainda fui desrespeitoso. Pelo contrário, é uma exaltação à força de sua obra. Forte abraço a todos…

PS: Podias ter me bloqueado por tantas outras coisas, mas o criador do “Universo em Desencanto” não é um maníaco!!! Como ousa ofender o Criador da minha religião???? Só porque ele não é famoso? Não esqueça que por centenas de anos essa era a imagem de Jesus (um maníaco judeu) e só depois de Roma aceitá-lo é que suas palavras foram respeitadas.

Abraços fraternos para toda a família.”

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