Li hoje o texto de um psicólogo que defendeu a pena de morte para o menino de 9 anos que atacou e matou animais em um canil. Não quero tratar diretamente do crime aqui porque isso sempre mobiliza o que há de pior em nós; esse tema mobiliza muitos sentimentos primitivos, e o resultado é sempre um incentivo ao ódio. Todavia, há um preceito jurídico que diz que a sentença nunca pode se basear na voz da vítima, pois que ela estará sempre carregada de emoções obliterantes que cegam o juízo racional. Nesse caso da morte dos animais, somos todos as vítimas, e nesse momento a indignação e a empatia com os bichinhos nos impede uma análise racional e nos enche de sentimentos de indignação e ódio. Compreensível.
Entretanto, ao ler os comentários, fiquei igualmente indignado com a apologia punitivista que muitos fizeram apoiando a morte dessa criança. Sim; tanto o articulista quanto quem comentou o crime na postagem do Facebook acreditavam que o melhor seria a simples eliminação do menino. Repito, um menino de 9 anos de idade!! Acho curioso como a morte de cães num canil mobilizou mais pessoas que o massacre em Gaza, e a solução expressa por muitos foi a simples execução da criança, diante da “impossibilidade de cura dos psicopatas”. E isto foi dito até pelas mulheres, prováveis mães, que se aliaram à sentença de morte da criança. Uma delas chegou a propor prisão “perpétua” até 24 anos seguida da execução quando chegar a esta idade!!
Quando vejo esse tipo de manifestação fica um pouco mais fácil entender o bolsonarismo, que é uma espécie (ou variante) do fascismo que circula na extrema direita mas tem representantes até na esquerda. É característico dessa forma de pensamento o punitivismo irracional, tosco e vingativo, na crença de que essa ação definitiva – em especial a pena de morte – poderia trazer algum benefício social. Pior ainda é dizer que o menino “merece a morte porque não existe cura”, como se essa fosse a única razão para manter um criminoso vivo.
Lembrem apenas que defender a vida desse menino (assim como de qualquer pessoa, culpada ou inocente) não significa complacência com seus crimes, apenas a defesa da vida como bem inquestionável, acima de qualquer outra consideração social. Ao mesmo tempo, defender abertamente, como o articulista, o assassinato de um menino de 9 anos (por ordem do Estado) significa apoiar o extermínio de pessoas com distúrbios mentais – como a psicopatia – até mesmo em menores de idade. E também tenham em mente que a eliminação de pessoas com distúrbios psíquicos incuráveis foi levada adiante por um sujeito chamado Adolf, há pouco tempo, e seus seguidores ainda hoje são árduos defensores dessa proposta.
Aktion T4 (Ação T4) foi o nome usado nos julgamentos pós-Segunda Guerra Mundial para o programa de eugenismo e eutanásia da Alemanha nazista, durante o qual médicos assassinaram centenas de pessoas consideradas por eles “incuravelmente doentes, através de exame médico crítico”.
É possível compreender a indignação de todos com estes casos e ao mesmo condenar as ações punitivistas. As primeiras são fruto direto da empatia e da emoção; as segundas não podem ser contaminadas por emocionalismos ou por sentimentos de vingança. O símbolo da justiça é de uma mulher usando uma venda nos olhos, e para isso existe uma razão. É exatamente porque ela precisa ser fria, infensa às emoções e aos instintos mais irracionais; é compreensível tê-los, mas inadmissível usá-los. É compreensível que um serial killer mobilize emoções de ódio e raiva em todos nós, mas um juiz, diante de um caso como este, deve aplicar a lei, mesmo que suas emoções também estejam afetadas (o que seria compreensível, mas não justificável). É compreensível que as pessoas aceitem ações punitivistas no calor da dor e pela indignação, mas não é justificável que leis sejam feitas ou ações sejam executadas motivadas por estes sentimentos. Em suma, para crianças entenderem: é compreensível que você fique furioso com seu filho desobediente e irritante, mas injustificável que você aplique a ele uma pena incompatível com sua idade.
Quando um sujeito escreve um post público, em uma rede social, defendendo a execução de uma criança de 9 anos de idade por ter machucado bichos, isso já é – por si só – um ato de horror, já é algo terrível, já se configura uma aliança com a barbárie. Quando os políticos israelenses aceitam a possibilidade de jogar uma bomba atômica para exterminar todos os palestinos e afirmam isso na TV pública do país, isso já é um ato de terror, mesmo que não tenham (ainda) apertado o botão. O que torna tudo muito mais preocupante é que o autor do post é um psicólogo, que poderá um dia ter à sua frente uma criança que precisa de ajuda. A comoção causada por este crime não pode permitir que pessoas – em especial da área da saúde – ofereçam o assassinato como solução. E quem “passa pano” para este tipo de absurdo está no mesmo balaio fascista que tomou conta da sociedade atual.
A extrema direita vencerá as próximas 20 eleições se permitirmos a circulação desse tipo de discurso, aceitando-o como válido. Enquanto o assassinato de uma criança for tratado como opção legítima no campo simbólico de uma cultura teremos falhado em nosso projeto civilizatório. Quando aceitamos executar um menino de 9 anos em função da nossa incontida indignação, sem considerar sua pouca idade e sua mente em formação, fracassamos como sociedade.


