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Conceito de humanização

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“Humanização do nascimento é uma atitude que emerge da mudança conceitual surgida nas últimas décadas sobre o verdadeiro papel da mulher na sociedade, considerando-se os seus direitos reprodutivos e sexuais e reconhecendo suas inatas capacidades de gestar e parir com segurança. Surge através do reconhecimento das inquestionáveis violências institucionais que as mulheres sofrem no período gravídico-puerperal e a responsabilidade que advém desse conhecimento para quem se ocupa da atenção a elas.

Humanizar o nascimento é garantir o protagonismo à mulher, tratá-la com dignidade, oferecendo uma visão integrativa – fugindo do modelo objetualizante e biologicista – e oferecendo um cuidado baseado em evidências atualizadas. É tarefa dessa geração de homens e mulheres que se interessam pela temática abrangente do nascimento mergulhar nesses conceitos e garantir às mulheres a atenção que elas merecem, para o bem de toda a humanidade.”

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Parto “autoral”

A respeito do debate sobre “Parto Autoral” surgido recentemente. Ao me ver este termo é uma tentativa de oferecer uma nova roupagem ao termo “protagonismo”, nosso velho conhecido. A “autoria” do parto é um aspecto de um conceito mais amplo de humanização do nascimento. Parto autoral não avança para além do sentido já debatido da garantia do protagonismo à mulher, algo que enfatizamos desde que o debate sobre uma “nova forma de nascer” começou a ganhar corpo no Brasil e no mundo. Por esta perspectiva a “autoria” é o eixo central a partir do qual os outros elementos da humanização vão se estabelecer. Isto é: sem plena “autoria” nunca teremos humanização, apenas ações parciais que não atingem o cerne da questão do parto: os direitos das mulheres sobre seus corpos. Ou, como diria Max, “sem o protagonismo só resta a sofisticação de tutela“.

protagonismo

Por outro lado, aprofundando-se no debate sobre o protagonismo, um parto pode ser “autoral” e NÃO SER humanizado, desde que para isso não se obedeçam os outros pilares que sustentam esse conceito, a saber: a visão interdisciplinar do evento (retirando dele as amarras de procedimento médico) e as evidências científicas (sem as quais somos presa fácil das mitologias, via de regra misóginas e potencialmente perigosas). Como exemplo podemos citar uma mulher situada no extremo do espectro do protagonismo: uma gestante diabética e hipertensa que resolve de forma autônoma ter seu filho em casa sem o auxílio de qualquer profissional ou tecnologia. É autoral, mas é uma decisão que não tem interdisciplinaridade ou evidências científicas que a sustentem. O mesmo pode ser dito das cesarianas sob demanda: são autorais, mas agridem as evidências científicas no que diz respeito à segurança para mães e bebês.

Por esta razão eu acho que vale a pena esclarecer esses termos novos que surgem no cenário da humanização do nascimento para que não causem confusão.

Resumindo: a Humanização contempla a autoria, pois ela é a parte central do modelo que preconizamos. Por outro lado, a autoria não necessariamente se abriga sob a proteção da humanização. Uma decisão “autoral” não precisa ser humanizada.

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Mônica

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Nas histórias de Maurício de Sousa a personagem Mônica batia nos meninos da rua, e esta era a característica que fez sua fama e sua imortalidade. Ela era protagonista e poderosa, figura central da trama (era a “Turma da Monica”) mas sua forma de reação diante das contrariedades era através da violência física explícita.

Seria ela a personagem a anunciar uma nova mulher que abandonava os estereótipos femininos (candura, docilidade e submissão) desde a mais tenra infância, mas para isso tendo de mimetizar as estratégias de dominação violentas masculinas? Seria Mônica o protótipo da nova mulher que – assim como Batman anunciara o homoerotismo na cultura – nos trazia a nova postura feminina para o século XXI? Ou podemos achar que se trata de uma coincidência, apenas histórias sem um objetivo e sem ter uma conexão com o campo simbólico por onde circulavam?

No creo en coincidéncias. ..

Monica era uma personagem baseada na filha de Maurício de Souza, inclusive nas suas principais características. Hoje a filha é executiva das empresas. Mas se é baseada ou não na realidade é o menos importante, até porque ele poderia escolher outras qualidades dela como exemplares e definidoras, mas preferiu destacar sua força bruta e violência.

Batman também. O criador disse que jamais pensou em Batman como um personagem gay, mas aqui cabe a pergunta: por que a solteirice, a amizade com Robin, a criação especial (sendo mimado pela tia), a figura paterna frágil de Alfred e o sofrimento brutal, cuja indignação o leva a ser o “paladino da justiça“, sublimando sua dor (a constrição sexual) através da luta contra o crime?

Mas a Mônica era violenta. Espancava os meninos. Não era apenas protagonista das histórias, mas além disso usava os recursos masculinos de subjugar através da violência, os quais são naturalmente masculinos, por isso tão universais. Isso existe antes mesmo da cultura: tem a ver com a testosterona, a estatura, a configuração muscular e a fragilidade imposta pela gravidez às fêmeas da espécie.

Mas aqui me refiro, evidentemente, à violência explicitamente física. A violência moral é igual para ambos (apesar de eu achar que é maior nas mulheres, pela supressão da sua vertente física). A escolha da estratégia de fazer Monica FISICAMENTE violenta é que me fez pensar na questão.

Para subjugar, por certo, não é necessário utilizar violência física. Ela pode ser moral, e essa capacidade os homens a tem tanto quanto as mulheres. Muitas mulheres más subjugaram pessoas e nações sem jamais terem cometido uma mínima ação fisicamente violenta.

E não é vergonhoso reconhecer que os homens são fisicamente mais fortes e rápidos que as mulheres.  A”virilidade” é mesmo um atributo masculino, e essa palavra vem de “viril”, “varão”, etc. Força é outra coisa. Mônica batia com e sem coelho. Ela usava seus músculos e sua força para maltratar e subjugar. Por isso mesmo a pergunta: por que Mônica foi mostrada como uma menina que imitava os homens em suas características mais masculinas (pelo menos no que a cultura assim definiu) como a violência física? Por que não reclamamos que Monica usa seus atributos “para dominar quem não os possui.

Fosse Cebolinha um “macho alfa” da história e teríamos um escândalo. Ele seria o opressor, o sujeito que comete bullying, que maltrata, que destrói e que humilha seus amigos através da força. Mas de Mônica suportamos sua violência contra os amigos, e Mônica é perdoada… por ser mulher. Fazemos vista grossa à sua prepotência e à sua violência. Nas histórias acabamos convencidos que as surras que Cascão e o Cebolinha recebiam era, no fundo, “merecidas”.

Não é curioso? Quando as “vítimas” cometem os mesmos erros e pecados dos algozes sempre temos boas desculpas a dar.

E é exatamente por essa razão que eu julgo essa personagem rica e interessante. Ela parece demarcar a virada de uma consciência feminina. Na época em que ela surgiu o feminismo tinha essa cara: “vamos fazer o mesmo que eles“.

Monica era MUITO mais forte que eles, por isso eles apanhavam. Mas era menina, e por isso estava perdoada. A condescendência com a Monica é que me parece o novo. Ela batia, espancava, maltratava os amigos, mas era a protagonista e nós a víamos com bons olhos. Nunca havia pensado muito nessa questão e sempre gostei das histórias, mas Zeza me falou hoje que ficou espantada com a quantidade de violências que ela pratica contra seus “amigos”. Zeza não conseguiu ler uma história até o fim para o meu neto Oliver, pois teria que pular os espancamentos. Não lhe pareceu adequado ou pedagógico contar essas partes.

As pessoas davam MUITA bola para as surras que ela dava nos meninos, pois essa era sua MAIOR característica, lembrada por TODOS. Ela era uma espancadora. Usava a violência como arma e como estratégia de dominação. Entretanto, era perdoada por ser mulher, pois naquele período da cultura era isso que as mulheres ensaiavam: a revanche contra as violências historicamente sofridas. Neste tipo de retruque os excessos são perdoados, as surras têm sua dimensão diminuída, porque é como a tentativa “justa” de equilibrar um placar de abusos francamente desequilibrado.

Cebolinha era esperto e malévolo, pois tentava sempre ludibriar sua opressora. Como todo oprimido usava a fofoca, a maledicência e a dissimulação como armas. Cascão as vezes o ajudava em seus planos, mas era o “sujo”, o que sofria para tomar banho. Mas a característica mais chamativa era o poder superior de Mônica conquistado através da força. Ela não era esperta, ladina, curiosa, vivaz ou bonita. Era forte e, por isso, poderosa. Os meninos apanhavam e a gente sempre tinha a impressão que eles haviam merecido; a surra havia sido bem dada. Por isso é interessante: como julgamos as mulheres que apanham AINDA hoje? “Ah, vai ver que mereceu, que pediu para isso, que usou roupas curtas“. Parece que Maurício fazia uma crítica reversa, mostrando a forma como a sociedade enxerga os …. homens!!! Mas no corpo de uma menina abusadora.

Creio que Mônica é anacrônica hoje, com sua violência explícita, tanto quanto as belas adormecidas o são quando retratam a mulher que é beijada sem autorização, ou que fica em um castelo esperando seu “salvador” para lhe resgatar de uma vida encarcerada. Por outro lado, eu ainda gostaria de ver um filme – ou animação – que fizesse uma releitura de Monica a exemplo que fizeram com “Malévola”, que faz a releitura da “Bela Adormecida”. Queria mesmo ver Mônica se ferrar, sofrer, perder os amigos, ser abandonada e ficar solitária agarrada com seu coelho, enquanto os meninos teriam vidas produtivas apesar das marcas dos abusos que receberam durante toda a infância. Não acredito que o criador de Mônica agiu através de um “radicalismo”, porque sequer acredito que tenha sido consciente (assim como o homoerotismo implícito em Batman), mas suas histórias hoje me parecem o retrato fiel (mas codificado) de um momento de mudança importante na cultura.

Sim, pode ser essa uma boa leitura da obra de Maurício de Souza. Cebolinha e Cascão eram as mulheres da trama, sempre apanhando e tratadas de forma inferiorizada.

É essa a leitura que fiz.

A Mônica agredia porque era agredida” (mas não fisicamente, que fique claro) pelos seus amigos. Bem, há um problema aqui. Tal “explicação” pode justificar todas as guerras e todas as matanças. Todavia, como eu mesmo já falei, Mônica continua sendo perdoada por ser… mulher. No contexto histórico em que ela surgiu essa vingança brutal por parte das mulheres era tolerada e até valorizada. Tínhamos que empatar o jogo da violência. Chega de só o “nosso lado” apanhar. Nessa época uma imigrante latina cortou o pênis do seu marido (supostamente) agressor e não apenas foi absolvida, mas exaltada como heroína por algumas feministas radicais dos Estados Unidos. Não se tratava de uma luta contra a violência aplicada às mulheres, mas uma luta contra os homens violentos, e nessa luta a violência era apenas mais uma arma (O marido tinha o curioso nome de John Wayne).

O problema de justificar a violência física de Mônica é que muitos maridos descrevem EXATAMENTE assim as pancadas que dão em suas mulheres. Vejam que Cebolinha e Cascão agiam como “mulheres” que menosprezavam, humilharam, desmereciam, agrediam verbalmente o “marido” e acabavam sendo espancadas(os). Os homens (Dado Dolabella) que assim se comportam chamamos violentos e espancadores. Para pessoas assim agimos com dureza, punimos com a lei e fazemos doer no bolso, o que para mim está ABSOLUTAMENTE correto. Homem que espanca, em especial as mulheres, merece o rigor da lei, e para isso não há desculpa. Cadeia e multa.

Mas para Mônica, bem, ela sofria na mão deles, era vítima de bullying, era debochada, era humilhada (numa intensidade parecida com a humilhação de um homem enganado), era maltratada por ser dentuça. Nada mais JUSTO que espancar, maltratar, agredir, desmontar e fazer valer seus argumentos através da força superior e da violência.

Pesos e medidas cujas diferenças só podem ser entendidas (mas não justificadas) pela cultura dos anos 70 e 80. Para entender Mônica há que se mergulhar nos valores e no próprio feminismo de décadas passadas. Foi pelo choque de novos valores que Zeza ficou impedida de ler a história até o final, e foi pela sua surpresa que resolvi interpretar o universo de valores que se escondiam por detrás dos desenhos de Maurício, numa exegese obviamente superficial, mas que pode levar a um entendimento mais criativo do fenômeno.

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Julgamentos

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Os julgamentos feitos sobre mulheres que pedem auxílio farmacológico para o alívio de suas dores em nada ajudam esta mulher – ou  a humanização do parto – mas fazem parte do processo de amadurecimento de um movimento social. Tais críticas surgem da necessidade de estabelecer valores sólidos através da radicalização.  Abandonar, ou simplesmente questionar, tais pontos é tratado como um sinal de fraqueza. Só o tempo permite suavizar estas posturas e oferecer um melhor entendimento. Abandonar radicalismos é demonstração de fortalecimento de uma ideia. Os dogmas nada mais são do que muletas ideológicas.

O parto é uma construção subjetiva e que se inicia na primeira infância.  É ali que são firmados seus alicerces, numa época onde ainda não há o trânsito das palavras. Portanto, os medos, as tensões e as percepções dolorosas no processo de parir estarão subjugados a estas estruturas psíquicas muito precoces.

Quando eu imaginei qual seria a definição mais completa e sucinta para o nascente movimento de humanização eu desenhei na minha frente um triângulo em que nos vértices de baixo se encontravam a “visão interdisciplinar” e a “medicina baseada em evidências“. Estes são os elementos formais e técnicos desta filosofia. Entretanto no vértice de cima eu coloquei o “Protagonismo garantido à mulher” como o elemento estruturante e fundamental, sem o qual nenhum dos outros se sustenta. Garantir o comando à mulher é o vértice ÉTICO do movimento de humanização, o qual jamais podemos abrir mão, sob pena de desfigurar completamente o valor libertário essencial desta proposta.

Julgar quem solicita um recurso de alívio para o furacão físico e psíquico de um nascimento, seja pela analgesia ou mesmo por uma cesariana, é um ato que contraria toda a filosofia da humanização do nascimento, a qual preconiza que o parto é um evento único e subjetivo no qual somente quem sofre sua dor e seu gozo pode entendê-lo por completo.

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Feministos

malefeminist

Escrevi em outros lugares, mas acho que vale a pena reproduzir aqui, pois pode aclarar as ideias sobre esta questão.

Minha tese é que homens não podem ser feministas exatamente porque não podem PROTAGONIZAR, o feminismo. Isto se aplica a qualquer movimento libertário: gays, negros, mulheres, países, etnias etc. Com isso reforço a tese de que as mulheres (negros, gays, palestinos) não podem ser tuteladas por grupos externos. Os homens podem ser aliados das feministas tanto quanto eu posso ser um pró-palestino , anti-racista ou a favor do movimento gay, mas protagonizar (liderar, assumir comando, responder e representar) somente quem sofre na carne os desafios de ser mulher, gay, pobre, palestino ou negro. Conseguem me imaginar presidente do grupo “Zumbi” da minha cidade, lutando pelo direito dos negros, sem nunca ter sofrido na carne a humilhação e a dor do preconceito? Não há como pensar isso sem entender como tutela. O mesmo com as mulheres.

Sou um aliado, e hoje em dia muito distante das feministas. Aliás, feminismo em teoria é tão lindo quanto o islamismo; a prática, no entanto, nos mostra que algumas defensoras mais radicais se aproximam do sexismo explícito, por parte das feministas, mesmo que tais desvios não constem dos ideais propostos por estas correntes de pensamento.

Eu não sou feminista por respeito às próprias feministas: não poderia ser sócio de um clube que deixa bem claros a sua inconformidade e desconforto com minha presença. Todavia, sigo fiel às ideias de equidade de gêneros, e lutarei para que os direitos das mulheres sejam respeitados no parto e nascimento.

Protagonismo é diferente de participação, e significar tomar a frente, representar. Brancos NÃO podem protagonizar o movimento negro, mesmo que possam ser ativos e participantes. Homens não podem protagonizar o feminismo, mesmo que seja possível serem defensores de suas bandeiras. Eu pensei mesmo em atuar desta forma, mas percebi que era mal visto e, diante da primeira contrariedade, fui tratado como inimigo e chamado de “machista”. Bem, eu respeito esse desconforto, mas não esse método suicida. Então eu, e milhares de homens que poderiam acrescentar ao debate, nos afastamos e mantemos nossas posições, longe do contato e das ações que poderiam promover uma real mudança.

Mas a luta por assumir esta posição de destaque é legítima. As mulheres foram tuteladas durante 100 séculos, e não aceitam mais que os homens digam o que é bom e certo para elas, requerendo, por isso, o pleno protagonismo de seu destino. A aversão à fala masculina no delineamento deste caminho é natural. Todavia, o rechaço ao apoio nas agruras do trajeto é equivocado e ineficiente. Nem toda ajuda é expropriação de protagonismo ou retorno à tutela. Saber diferenciar inimigos de potenciais parceiros é essencial em qualquer luta.Se o que está melhorando é o tom do diálogo entre feministas e sociedade minha impressão é positiva. Vejo mais interesse das feministas em rever alguns posicionamentos, abandonar posturas vitimistas e reconhecer outros pontos de vista relacionados aos direitos de ambos os gêneros.

Minha postura histórica sobre o protagonismo é o reforço do poder garantido às mulheres. Eu sempre disse que as mulheres deviam carregar o fardo do protagonismo das lutas pela humanização do parto. Minhas diferenças com o feminismo não estão centradas nesta questão, mas em outros pontos mais delicados.

Hoje eu me sinto cada vez mais próximo do ideal feminista e cada dia mais distante das lutas feministas. Alguns chamam isso de “aliado sem ser alinhado“. Pode ser; continuarei carregando bandeiras feministas sem ser feminista.

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Pororoca

Pororoca

Humanizar o nascimento é restituir protagonismo para as mulheres. Entender o nascimento como um evento social e humano, e não apenas médico. É reconhecer o nascimento como o evento apical da feminilidade, sobre o qual atuam forças sociais, emocionais, psicológicas, afetivas espirituais e – acima de tudo – numa configuração subjetiva, única e intransferível. Mais ainda: é ter uma visão interdisciplinar, com a devida consideração com os outros atores que fazem parte tanto da cena de parto quanto do debate sobre o significado dele na cultura. É respeitar as evidências científicas que norteiam e orientam o trabalho das equipes de assistência, as intervenções e o cuidado aplicado às mulheres durante este período tão criativo de suas vidas.

“Um parto é um mergulho para dentro de si, um encontro inexorável com as questões mais íntimas e subjetivas, nas águas revoltas e escuras do inconsciente. Todavia, é também um pulo no oceano de palavras que nos circundam, nos envolvem e nos dão significado. Ambos os mergulhos produzem suas revoluções, suas agitações e giros, mas do choque produzido por tais saltos emerge uma gigantesca onda, de cuja energia se produz a característica única e irreproduzível de cada nascimento.”

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Os Humanismos

Sobre a criação de uma nova comunidade de “Parto Humanizado” eu gostaria de tecer alguns comentários, que traduzem tão somente a minha visão pessoal, e não representam qualquer instituição ou grupo relacionado à humanização do nascimento.

Primeiramente, a humanização do nascimento não tem donos. Trata-se de um movimento internacional de resgate dos valores femininos do nascimento que foram eclipsados pela entrada do paradigma tecnocrático na cultura. O nascimento humano, por força das falhas que esse mesmo paradigma apresenta, acabou se tornando excessivamente artificial, frio, objetual, coisificante, incompleto e – por vezes – violento. Qualquer que seja a definição oferecida a esse conjunto de ideias e atitudes, isso não significa que qualquer grupo possa se apoderar de suas propostas, transformando um movimento de revolução social em um catecismo dogmático e rígido, que se nega a transformar-se pela constância do choque de propostas e discursos diversos.

Isto posto, creio ser importante aclarar a minha definição de parto humanizado. Apesar do uso confuso, e por vezes claramente equivocado desse termo, ainda acho útil a sua utilização. O termo “humanizado” se coloca ao lado da corrente de pensamento humanista, herdeiro do Iluminismo do século XVIII. O Humanismo é a filosofia moral que estabelece o HUMANO como elemento primordial na cultura. É uma perspectiva que se encontra em uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade, aspirações e capacidades humanas, particularmente a racionalidade. Esta corrente de pensamento vem se contrapor ao teocentrismo da idade média, que ignorava as capacidades humanas de adaptação e transcendência e colocava em Deus as diretrizes e o destino da humanidade.

Entre os humanistas se inclui Erasmus de Roterdã.Assim sendo, minha opinião é de que o movimento de humanização do nascimento se assenta sobre um tripé conceitual, que se constitui dos seguintes elementos:

1- O protagonismo restituído à mulher, sem o qual estaremos apenas “sofisticando a tutela” imposta durante milênios pelo patriarcado.
2- Uma visão integrativa e interdisciplinar do parto, retirando deste o caráter de “processo biológico”, e alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde os aspectos emocionais, fisiológicos, sociais, culturais e espirituais são igualmente valorizados, e suas específicas necessidades atendidas.
3- Uma vinculação visceral com a Medicina Baseada em Evidências, deixando claro que o movimento de “Humanização do Nascimento”, que hoje em dia se espalha pelo mundo inteiro, funciona sob o “Império da Razão”, e não é movido por crenças religiosas, ideias místicas ou pressupostos fantasiosos.

Na minha visão esses são os constituintes fundamentais para entender as propostas de humanização. Em primeiro lugar está o protagonismo restituído à mulher, sem o que estaremos apenas mascarando as condutas e mantendo as mulheres atreladas a um modelo que não as reconhece como capazes de dar conta dos desafios da maternagem. Depois, a visão ampla e transdisciplinar do evento, retirando do parto a imagem de evento biológico ou médico, mas alçando-o ao patamar de “evento humano”, onde além da medicina outros saberes poderão dialogar e oferecer sua contribuição. Por fim, a vinculação “umbilical” com a MBE – Medicina Baseada em Evidências – para que todo e qualquer procedimento realizado sobre o corpo de uma gestante ou puérpera seja comprovadamente útil a ela e ao seu bebê, sem que outras considerações de ordem moral, religiosa, política ou econômica prevaleçam sobre a saúde de ambos.

Portanto, ainda creio que o termo “parto humanizado” possa ser usado, apesar das confusões. Todavia, se um dia perceber que esse termo está gasto e que já não auxilia mais na compreensão do que queremos transmitir, aceitarei de bom grado que ele seja trocado por outro melhor. Já debatemos “parto livre”, “parto em paz”. “parto digno” e muitos outros, mas nenhum ainda consegue mobilizar as pessoas como este, que até na propaganda governamental da Rede Cegonha já aparece.

Quanto à criação de grupos com esse nome, em especial um que foi criado alguns dias atrás e com milhares de participantes surgidos da noite para o dia eu acho que vale a pena fazer alguns comentários. O grupo se chama “parto humanizado”, mas as pessoas que o controlam não são explicitadas na comunidade. Sobre elas recai uma cortina de sombras e enigmas. Este grupo esconde-se por trás de um nome que as abrigaria de críticas. Entretanto, tal proteção acaba por desumanizá-las, colocando-as em uma posição pretensamente superior, acima das veleidades e falibilidades da carne. Pior: não se trata apenas do nome não aparecer; ele é mantido em segredo, com a desculpa de que “as pessoas que estão por trás não importam, apenas as ideias”.

Eu não vejo dessa maneira, muito pelo contrário. Quando alguém faz um comentário e a resposta vem de “parto humanizado” parece que é a IDEIA, o MOVIMENTO, o ENTE “parto humanizado” quem está respondendo, como se fosse um canal direto com as “formas perfeitas” platônicas, sem a intervenção da mente humana, por definição imperfeita e passível de erros. Quando se lê a resposta oferecida por “parto humanizado” imaginamos que ela será a perspectiva final, a resposta derradeira e com as palavras que não permitirão qualquer contestação. Pode-se encontrar publicidade de cremes e cafeteiras na página. A explicação é de que pertencia à página de uma das “donas” da comunidade, mas a verdade é que aparece nitidamente na página do Facebook, o que deixa a desejar do ponto de vista de debates livres e isentos de pressões de ordem comercial. Posts cortados, palavras cassadas, reclamações suprimidas e toda a sorte de censuras à livre expressão de ideias contraditórias e discordantes.

Não creio que seja essa uma boa maneira de levar adiante um debate livre e democrático sobre a forma como atendemos o nascimento através de uma perspectiva plural e aberta. Violência excessiva nas palavras das “moderadoras anônimas”, misturadas com escárnio e uma pretensa “postura superior”. As controladoras da comunidade parecem ter “contas a ajustar” com os movimentos outrora construídos sobre o tema. A ladainha de “proteção às mulheres que realizaram cesarianas” foi, obviamente, mais uma vez utilizada, como que a acusar as defensoras da humanização do nascimento de “cruéis” ou “insensíveis”. Essa história tem a mesma idade dos primeiros modelos de construção coletiva de suporte ao parto normal. Para cada linha escrita sobre a importância de preservar o modo mais natural possível de conduzir o parto, havia várias linhas de queixas contra a exclusão das cesariadas.

Ora, é muito fácil entender o que se passa. Muitas mulheres, identificadas com as mulheres que sofrem cesarianas, achavam que é inútil e doloroso demais tocar nessa ferida. Muitos de nós, os mais antigos nesse movimento, pensamos o contrário. É claro que crueldade e insensibilidade são nefastas e desnecessárias para a construção de um modelo centrado no protagonismo e na dignidade restituídas, mas também não faremos nada de produtivo calando-nos diante de tantas cirurgias mal indicadas no nosso país. O meio termo sempre foi defendido pelos grupos de apoio ao parto “natural”, mas a citação dessa falsa discordância já é uma acusação velada (e falsa) contra os defensores dessa ideia. Imediatamente depois de entrar na comunidade eu me despedi, desejando boa sorte e bom trabalho, mas expliquei que o modelo criado para os debates em nada sintonizava com minha particular visão sobre as formas cibernéticas de fomentar a discussão sobre a humanização do nascimento.

A revivescência de contendas – como a famosa “menos mãe” – fez com que muitos ativistas achassem que tal iniciativa provinha de históricos inimigos dos projetos de humanização do nascimento, tamanha era a falta de maturidade para o debate. Para finalizar, eu acredito que existem infinitos espaços para a discussão de um tema tão múltiplo e estimulante. O gestar, parir, maternar e amamentar são questões tão antigas quanto a própria humanidade e a nossa necessidade de debatê-las desnuda as falhas dos sistemas contemporâneos de assistência à mulher em reconhecer e trabalhar com as verdadeiras e profundas necessidades femininas de suporte e cuidado. Por outro lado, os debates para serem úteis e profícuos precisam ser abertos, democráticos e respeitosos. Mostrar a cara, dizer que é, receber críticas e absorvê-las, não revidar questionamentos com grosserias e não excluir os que não se alinham em um catecismo estático não são apenas normas de convivência; são determinantes para o sucesso de qualquer projeto que se pretenda longo e construtivo.

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