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Materialidade

Tenho um querido amigo que nasceu na Turquia mas é grego. Explico: existe um bairro grego em Istambul (creio que é o bairro Fener) no qual os habitantes tem cidadania grega, mesmo tendo nascido em solo turco, porque as reivindicações gregas sobre sua capital Constantinopla nunca cessaram. Assim, não se pode chamá-lo de “turco” nem de brincadeira. Pois esse amigo grego, ainda bem pequeno, mudou de país e foi criado na Suiça desde tenra idade. Fez formação em TI e uma vez resolveu visitar o Rio de Janeiro. Lá conheceu uma gaúcha que estava de férias e logo se apaixonaram. Essa amiga era uma paciente e querida amiga minha. Passado algum tempo se casaram e tiveram uma filha, cujo parto eu atendi, o qual, por si só, é uma história espetacular sobre parto e tecnologia – ou o quanto a tecnologia tem a possibilidade de atrapalhar a fisiologa de um parto. Porém, esta história eu contarei em outra oportunidade.

O casal resolveu morar no Brasil. Meu amigo até que tentou viver aqui; adorava o país, gostava de Porto Alegre, tinha uma profissão para a qual havia demanda, etc. Porém, a diferença de pagamento do quanto ganhava na Suiça para o que conseguia aqui era enorme, talvez na ordem de dez vezes para menos em terras tupiniquins. Depois de algum tempo resolveram se mudar para a Suiça – de mala e cuia. Minha paciente até hoje trabalha como fisioterapeuta, falam suiço-alemão, tiveram uma outra filha e estão lá felizes há mais de 20 anos. Meu amigo grego trabalha numa gigantesca instituição bancária suiça. Há alguns anos vieram visitar familiares em Porto Alegre na época das férias e nos ligaram para encontrá-los em um restaurante – eu e Zeza. Passamos uma noite maravilhosa contando histórias de cá e de lá, falando de filhos, adaptação primeiro mundo, confortos, saudades, etc. Num determinado momento, meu amigo me disse:

– Ricardo, vocês nem imaginam o quanto eu invejo vocês e o trabalho que fazem atendendo partos. É realmente sensacional. Eu adoraria ter esse privilégio.

Isso me pareceu super bizarro. Aquele sujeito deveria ganhar – muito por baixo – umas dez vezes mais do que eu poderia ganhar aqui acordando de madrugada, perdendo aniversário de filho, dormindo mal, sendo atacado pela máfia da cesariana, tendo férias cortadas ao meio etc. Disse isso do alto de um emprego espetacular, atendendo numa sala com ar condicionado, 6 horas por dia, férias remuneradas, cafezinho, benefícios de primeiro mundo, chocolate suiço (que lá se chama só “chocolate”), estabilidade, e tudo mais que a centralidade do capitalismo é capaz de oferecer a estas profissões mais sofisticadas.

– Mas por que dizes isso? Que te faz pensar assim? Não consigo entender a razão para isso…

Ele sorriu e respondeu, como se estivesse me falando de algo muito óbvio:

– Ora, Ricardo: a materialidade do trabalho de vocês!!! Vocês atendem as gestantes, enxergam a barriga crescendo, avaliam a qualidade dos exames, enxergam o bebê se mexendo e escutam o coração dele batendo pela primeira vez. Estão presentes quando o bebê nasce e acompanham por vários meses a adaptação da mãe ao novo mundo da maternidade. Podem testemunhar a alegria da família ao receber um novo bebê. Estão presentes desde o início do processo, acompanhando todas as etapas. São responsáveis por cada detalhe e pelo sucesso do projeto. Agora compare com o que eu faço: sou um operário de uma longa esteira de montagem de uma instituição. Trabalho com uma parte – a informática – e não vejo de forma palpável o resultado final do meu trabalho. Não posso chegar em casa e contar para as minhas filhas uma história maravilhosa que aconteceu comigo no meu emprego, quando “salvei uma rede” que estava encalhada, ou coloquei vários “sistemas em série”, ou consegui fazer o “roteador central” voltar a funcionar. Sou uma minúscula peça, mesmo que importante e até essencial, porém não tenho a oportunidade de ver de forma clara à minha frente a materialidade do que fiz, o resultado prático da minha dedicação, o objeto construído por mim para que possa ser mostrado orgulhosamente aos outros. Vocês, por outro lado, enxergam isso todos os dias, em todos os trabalhos que fazem.

Respirou mais um pouco e continuou:

– Pode não parecer, mas quando vi o nascimento da minha filha, no qual vocês estiveram presentes, pude sentir o quanto é importante essa sensação de poder ver o resultado objetivo do que se faz. O sistema de produção em série, o fordismo no qual estamos todos inseridos, nos impede de ter essa noção ampla da participação no resultado final de qualquer tarefa humana. Vocês, por terem a oportunidade de enxergar isso, são abençoados. Acredite, é o que sinto.

Sua explicação foi contundente e muito clara. Pude, pela primeira vez, ter noção do significado mais amplo do trabalho que fazíamos e do privilégio de participar efetivamente no resultado final daquilo que trazíamos como ofício. Neste mundo de funções fragmentadas eu fico impressionado com o trabalho de eletricistas, encanadores, pedreiros, marceneiros e gente que trabalha com a terra pois ele podem ver o resultado objetivo do seu trabalho em uma parede, uma cadeira, uma água escorrendo num tubo, uma fruta que nasce e uma lâmpada que se acende. Isso é capaz de oferecer uma satisfação enorme para o profissional envolvido.

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Arquivado em Histórias Pessoais

Mestre

Uma vez eu estava debatendo com colegas da humanização do nascimento nos “list servers” que existiam na época e chamei um colega médico de “mestre”. Imediatamente uma doula do seu estado me chamou em privado pelo Messenger dizendo “Não o chame de mestre. Ele não é o que parece”.

Achei um pouco duro; afinal não havia qualquer discordância entre o nossas perspectivas. Chamá-lo de “mestre” seria uma sutil deferência, uma forma de mostrar minha adesão aos nossos pressupostos compartilhados. Entretanto, com o passar dos anos, percebi que ela tinha razão. O colega tinha uma retórica humanizada, mas uma prática muito centrada em suas necessidades pessoais, a ponto de sacrificar os desejos de suas pacientes em nome de seus compromissos.

Esta é uma questão bastante prevalente neste debate, e por isso eu costumo citar tanto as palavras de Vladimir: “O critério da verdade é a práxis”, ou seja, não há verdade consistente que não seja estabelecida sobre a realidade da prática. Não há mentira que sobreviva se for desmentida pelos fatos. Esta foi a questão dos partos domiciliares na história da obstetrícia: na teoria eles seriam mais perigosos porque as ferramentas existentes no hospital estariam ausentes no domicílio. Desta forma, a distância do centro obstétrico, moderno e tecnológico, aumentaria os riscos e os resultados inevitavelmente seriam piores. O que a prática dos partos domiciliares planejados demonstrou é que os riscos teóricos não se expressam na realidade dos fatos, da prática cotidiana, nos números e nas análises frias. Partos assistidos em casa são tão seguros quanto os partos de risco habitual atendidos em ambiente hospitalar. A ideologia foi, então, obrigada a se curvar à realidade material.

Entre os humanistas do nascimento podemos aplicar a mesma perspectiva. De nada adianta um discurso bonito, ideias profundas e uma vinculação ideológica com os pressupostos da humanização do nascimento sem que isso se traduza em diferentes resultados na sua atuação como profissional. Por isso é que, diante de uma promessa de atenção diferenciada, guiada pelo ideário do parto fisiológico, mais importante é investigar a realidade dos seus partos, a taxa de cesarianas, o índice de episiotomias, a quantidade de intervenções, etc. Nenhum falso mestre passa por este teste.

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Arquivado em Ativismo, Parto

Medicina e Medo

”The Doctor”, 1891; Samuel Luke Fields (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate – Londres. (*)

Qual a razão da crescente insatisfação de tantos pacientes com os abusos cometidos por uma medicina cada vez mais alienante, técnica, fria e desumana, onde a intervenção e o uso de drogas assumem a característica mais marcante dessa atuação? Hoje em dia a cena ancestral do médico compassivo, atencioso, dedicado e atento que, ao lado do leito, anota em silêncio as queixas e sinais dos enfermos, dá lugar aos exames, as cirurgias e as drogas, alienando progressivamente o paciente de sua própria cura.

Quando os médicos atuam de forma abusiva – em especial no parto, onde a intervenção se tornou a regra e a fisiologia ocorrência rara – assim o fazem para garantir a sua proteção, e não por serem pérfidos, interesseiros ou ignorantes. Se um médico resolve esperar diante de um impasse clínico e algo inadequado ocorre a culpa será invariavelmente considerada sua e, a partir de então, sua vida se tornará um inferno com os ataques que surgirão da própria corporação. Por outro lado, se ele intervém e o paciente – como resultado da intervenção – tem algum problema grave (ou mesmo vem a óbito) a responsabilidade se dilui, e a perspectiva que sobressai é de que o resultado funesto foi devido ao risco natural e inexorável de qualquer procedimento, o qual ocorreu apesar do tratamento médico adequado. Isso porque a tecnologia é um mito, e por isso não pode ser jamais questionada.

A isto costuma-se chamar de “imperativo tecnocrático”, que determina que a existência de tecnologia para tratar um determinado caso obriga a sua utilização, mesmo que os resultados desta intervenção não sejam comprovadamente melhores, e aqui a cesarianas ocupam um lugar de destaque como grande exemplo deste tipo de tendência. Muito mais do que evidências científicas, a profissão é levada a agir por defesa, aumentando gravemente os riscos para os pacientes – mesmo que os diminua para os médicos.

Ou seja, o uso de tecnologia vai sempre blindar o médico, dar-lhe segurança e oferecer a ele proteção profissional. Na obstetrícia, as cesarianas são “salvo condutos” para garantir segurança aos profissionais. Raríssimos médicos são processados por cesarianas abusivas mas qualquer um que ouse atender partos, mesmo quando dentro de parâmetros reconhecidos no mundo inteiro, incorre em sério risco profissional. A escolha pelo tratamento mais seguro para si é compreensível em qualquer profissão – médicos não são kamikazes – apesar de não ser justificável sob qualquer parâmetro ético; médicos atuam sob o signo do medo e sabem o quanto um mau resultado pode destruir uma carreira tão arduamente construída.

Desta forma, não são os médicos que precisam mudar; é a própria sociedade, seus valores, seu sistema jurídico, sua mídia, seu sistema de saúde e os próprios pacientes, que invariavelmente não vão titubear em deslocar a dor e a frustração de uma perda para a pessoa do médico, em especial quando a postura deste é contra-hegemônica e agride o modelo tecnocrático e intervencionista da medicina capitalista. Imaginar que a mudança na atenção é uma responsabilidade dos médicos é injusto e inútil; eles apenas fazem a Medicina que a sociedade lhes solicita e autoriza. Para mudar a atenção à saúde é necessário suplantar o capitalismo e transformar a Medicina, para que ela deixe de ser mercantilista e baseada no lucro das grandes corporações, e passe a ser um sistema de cuidados centrado na pessoa, e não nos ganhos obtidos com a doença.

Só então poderemos constatar que, quando a sociedade se transforma, os médicos (juízes, advogados, políticos, policiais, bombeiros, militares, etc) se transmutam como consequência. Porém, essa mudança é dialética, pois que o exemplo de alguns profissionais também vai moldar a forma como a sociedade enxerga os evento da atenção à saúde, gerando assim mais consciência, que por sua vez será agente de transformação. Não existe, portanto, justificativa para que os médicos não se mobilizem para que a sua ação médica seja impulsionadora da mudança.

A prática médica é a síntese dos valores da sociedade onde atua, não sua causa precípua. Sociedades violentas produzem uma medicina truculenta e intervencionista; nas sociedades baseadas na paz e na democracia a Medicina vai fomentar uma saúde centrada na pessoa e na responsabilidade compartilhada entre cuidador e paciente. Entretanto, sempre devemos cobrar dos médicos que compreendam a verdadeira amplitude de sua ação social, e não se permitam sucumbir às pressões desumanizantes a que são submetidos.

(*) O quadro nos remete a um momento dramático na vida do pintor Samuel Fields. Nele está retratada a morte de seu filho na noite de Natal do ano de 1877, mas também está expressa a homenagem ao médico, atento, circunspecto e prestativo, que assistiu seu filho até o derradeiro momento quando, por fim, a vida do menino evadiu-se do corpo. Na imagem podemos ver seu estúdio, os móveis, o ambiente lúgubre que aguardava o desfecho mórbido, o desespero da mãe e o olhar apático do pai – o próprio Samuel. Apesar de ser uma imagem que nos remete ao dramático e trágico da existência ela igualmente nos mostra que a função do médico não é “curar os doentes”, mas estar ao seu lado, aliviando as dores e sofrimentos, curando quando for possível, mas sendo sempre a mão fraterna a oferecer o cuidado – o elemento ancestral que nos transformou em humanos.

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Arquivado em Causa Operária, Medicina

Expropriação do parto

Assisti não mais de 3 minutos da fala de um obstetra do centro do país com o tema “Você quer estar certa ou obter resultados?“. Logo me dei conta de que estava diante da mesma retórica de risco que escuto há 40 anos e que – ao se analisar em profundidade – serve como substrato ideológico para a submissão das mulheres ao controle médico no momento apical de sua feminilidade: o parto. Em suas palavras encontrei o mesmo discurso da “mulher bomba relógio” que justificaria a perda total de autonomia e que colocaria o médico como o único sujeito capaz de tomar atitudes em seu nome. O resumo de sua fala poderia ser “Você quer ser livre ou continuar vivo?”. Ou ainda “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Só vais te manter viva se for por mim“.

Para este médico reduzir-se a uma fiel e subserviente paciente, curvada diante de seu saber absoluto, é a única maneira de sobreviver à terrível jornada da gravidez e do parto. Sua voz parece surgir das catacumbas, colocando para o exterior um paradigma mumificado e bolorento. Entretanto, não há mais espaço no mundo contemporâneo para acorrentar as mulheres a um paradigma que as coloca como coadjuvantes no nascimento dos próprios filhos!!! Não há mais lugar para uma visão iatrocêntrica, focada no profissional, sem que a mulher possa escolher como e onde vai parir. Não se justifica mais a falta de conexão com as evidências científicas que mostram o parto domiciliar como tão seguro quanto o hospitalar no que tange mortalidade materna e neonatal, e com inúmeras vantagens acessórias.

O que resta de verdade após escutar essas mensagens de anacronismo e preconceito é que vozes carcomidas pelo tempo e visões antiquadas sobre a mulher e o feminino não devem se manter como hegemônicas; é preciso que a voz dos profissionais humanizados se faça ouvir cada vez mais na Academia e que sejam estes novos modelos os principais canais a informar as pacientes. Chega de ouvir médicos falando sem embasamento científico e sem qualquer conhecimento de causa.

Quando a proposta se resume a “Você quer estar certa ou ter resultados” na verdade estamos diante de outra demanda: o desejo de que se abra mão de toda a autonomia e que se sucumba à ordem hierárquica perversa de expropriação do parto.

Que a onda verde atinja esses médicos para que a liberdade deixe de ser slogan e vire prática cotidiana.

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Arquivado em Ativismo, Parto