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Sonho

Hoje eu tive um dos melhores sonhos com o meu pai; pelo menos posso afirmar que foi o mais vívido de todos. É possível que esse sonho seja o reflexo de um pedido mental que fiz a alguns dias, para que ele mandasse o sinal que havia me prometido. No sonho, encontrei-o na sala pequena de uma escola que tinha uma janela de frente para um parque gramado muito grande. Cumprimentei-o efusivamente e começamos a conversar. Perguntei como estavam as coisas e disse que ele estava muito bem. Passei a mão no seu rosto e me dei conta que ele era mais jovem do que eu. Seus cabelos estavam negros, como lembro pelas fotos, e parecia muito jovial. Perguntei o que ele estava fazendo naquela escola, e ele respondeu “Ora, eu trabalho aqui”. Isso seria coerente com sua vida, já que a melhor maneira de definir o meu pai seria como um pedagogo.

“Que bom que trabalhas aqui!!”, disse eu. Pedi a ele que me dissesse algumas coisas sobre o funcionamento do plano espiritual, ao que ele me respondeu de forma jocosa, como que a dizer “Se eu te dissesse tu não entenderias”. Eu traduzi isso como a resposta dada a uma criança de 5 anos que ousasse perguntar aos adultos porque as pessoas fazem sexo. Não faria muito sentido, pois este fato da vida está além da experiência sensorial de uma criança. Logo depois, perguntei pela minha mãe, e alguns amigos que nos deixaram nos últimos anos.

– Sua mãe está ótima. Vamos nos casar em maio.

Também faz sentido. Antes de morrer ele me confessou que pretendia casar com a minha mãe muitas outras encarnações, pois não conseguia imaginar uma companheira melhor. Por fim eu perguntei se aquela cara dele foi escolhida por ele mesmo ou algum mecanismo automático fez com que a conformação corporal adotasse sua “melhor versão”. Ele apenas sorriu….

E eu acordei…

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Parto

Sonhei que havia parido uma criança na Santa Casa. Eu mesmo. Parto normal, e não me perguntem como. Antes de sair avisei todos em casa que eu ia ao hospital e já voltava. O nome da criança era George, provavelmente em homenagem ao meu tio Eric George Jones que faleceu há poucos dias. Pari sozinho, sem auxílio, mas lembro do neonatologista me procurando com a conta após o parto, já que eu não tinha convênio. Saí do hospital carregando meu filho em uma espécie de Van e coloquei o bebê, ainda envolto em lençóis, ao meu lado com a ajuda de duas funcionárias antigas do hospital. Tentei colocar cinto de segurança nele, mas o cinto era grande demais.

Pensei: “Só mesmo um homem para não se dar conta que não dá para dirigir um carro com uma criança solta no banco”. Sim, a gente não tem esses gatilhos. Nesse momento, George começou a conversar comigo sobre assuntos diversos enquanto eu dirigia. A voz era de criança, mas os temas bastante complexos. A solução que ele encontrou para não virar no banco do carona nas curvas foi se levantar e me abraçar. Assim ele ficava seguro enquanto eu manobrava.

Não existe sonho que não seja pleno de conteúdos. Sonhar que estou parindo é um tema muito comum e renitente para mim, só que dessa vez eu lembro até de ter feito força. Depois do parto ainda revisei o colo uterino (???). Pela manhã, durante o café, disse o nome da criança para minha filha que está grávida (dã) e ela achou o nome meio “palha”. Achei interessante a crítica que, ainda dentro do sonho, fiz à falta de habilidade dos homens para coisas básicas, como deixar o bebê seguro quando vai dirigir, mas também achei importante o simbolismo do bebê lhe abraçar como forma de buscar essa segurança. Talvez a mensagem mais importante do sonho seja que não há nada mais forte para manter alguém seguro do que o afeto explícito que podemos oferecer.

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Labotois

Sonhei essa noite que estava carregando um grupo de amigos na caçamba de uma caminhonete. Esta caminhonete havia sido assaltada e o banco do carona foi roubado. Ou seja: não havia “banco”, mas ainda assim era possível dirigir o veículo e dar carona aos meus parças. Dirigi pelas ruas tortuosas até que precisei entrar na rua Independência, mas para isso precisaria acessar primeiro a rua “Labotois”. Perguntei a alguém na rua como seria possível subir por esta rua, mas não obtive resposta. Acordei com esse nome na cabeça – uma rua que eu bem sei que não existe – e anotei no celular. Pela manhã voltei a pensar no que esta palavra poderia querer me dizer.

Labotois (Labotoá)??? Essa palavra, aparentemente não existe em nenhum idioma. Vejamos onde ela pode se situar…

* La Bote (restaurante antigo da cidade). Pizza, com meus amigos…
* La Boîte (a caixa, a lata). “Alors j’ai commencé à chercher à l’extérieur de la boîte.”Então comecei a pensar fora da caixa…
* La Boîte aux Lettres (a Caixa de Correio, restaurante em Paris). Tudo a ver com minha estrutura sofisticada, que curte “haute cuisine française”, só que não. Ou será que estou para receber uma correspondência importante? I bet that’s the best choice.
* La Boétie (Étienne de La Boétie, cuja obra mais famosa é seu Discurso da Servidão Voluntária, escrita em 1548, após a derrota do povo francês contra o exército e fiscais do Rei, que determinaram um novo imposto para a cobrança do sal. A obra se estabeleceu como um hino à liberdade, com análises muito pertinentes sobre as origens do autoritarismo e da dominação de grandes grupos por alguns poucos poderosos. Também trata da necessária indignação pela violência da opressão e as formas como enfrentá-la. Morreu com apenas 32 anos de idade e foi o grande amigo de Montaigne, que jamais se recuperou de sua perda).

Lígia Víctora, onde estás?

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O Alçapão

Sonhei que estava em Nova York, participando de um congresso em um edifício cheio de brilhos e espelhos. Sonhar com essa cidade é algo recorrente; ela desempenha para mim um espaço curioso desde a experiência inesperada que tive ao conhecê-la, recém saído da adolescência, há 40 anos. Sei que isso é clichê, mas esta cidade tem um significado bem pessoal para mim.

Neste sonho eu estava visitando a cidade com Zeza e Bebel quando acabei encontrando uma querida amiga aqui do Brasil que havia se mudado há pouco para lá. Fui visitar a sua casa e percebi que havia um alçapão dentro da cozinha que levava para um porão lúgubre e úmido, o qual não me atrevi a explorar. Cheguei a comentar com ela “O que seria do cinema americano sem esses aposentos carregados de suspense e mistério, não?”. Na tampa do alçapão estava presa uma corda e, ao puxá-la, pude ver que acionava uma roldana que fez subir um balde escuro de um poço no canto da peça, de onde se retirava água. Fechei o alçapão e fui para os fundos da casa, onde havia um quintal com patos, cachorros e um córrego de água fria e translúcida.

Depois de conversar demoradamente com minha amiga e sua mãe eu lembrei que precisava me despedir para reencontrar Zeza. Todavia, meus pés estavam desnudos e eu não conseguia achar meus sapatos. Enquanto os procurava para voltar ao hotel, as pessoas, no afã de ajudar, traziam outros pares de sapatos, achando que poderiam ser os meus. Depois de experimentar vários, finalmente trouxeram o verdadeiro, mas então começou um novo drama: encontrar os cadarços corretos. No final, achei cadarços pretos para um pé, diferentes do outro, que eram marrons.

Havia brasileiros moradores de Nova York na casa e quando perguntei a eles se haveria um programa para me indicarem um deles me respondeu: “Veja, os bons programas, aqueles imperdíveis, você não teria como comprar hoje, pois estão esgotados há semanas. Além disso seriam tão caros que você não conseguiria pagar.”

Minha resposta foi resignada: “Bem, é melhor aceitar as coisas que minha condição permite do que desejar algo além do razoável. Se não tenho condições para pagar estes programas, melhor me divertir com as alegrias possíveis.”

Quando questionei minha amiga pela sua decisão súbita de se transferir para Nova York, ela me disse algo como “ahh, foram tantas coisas, tantos fatos, demoraria muito a explicar. Mas resolvemos em conjunto mudar para cá”.

Fim

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Sonho

Tive um sonho com meu pai. Nele eu estava muito deprimido e pensei que ele podia aparecer para me dar alguns conselhos ou aclarar minhas ideias sobre os dilemas que terei que enfrentar. Pois, por ser sonho, ele apareceu, do jeito que sempre me lembro dele. Suas sandálias, a camisa alinhada, os óculos e o cabelo branco. Quando me viu, no meio de um lugar movimentado que parecia ser um restaurante, pareceu surpreso.

– Oi meu filho, como vai? Que saudade!!

Emocionado o abracei.

– Obrigado pai, eu tinha muita coisa pra lhe dizer. Como você está bem!!! Como está a mãe?

Ele riu de forma tímida e respondeu.

– Pois achei que tua mãe viria junto. A gente estava conversando sobre a viagem quando ficou tudo enevoado e eu apareci aqui. Não a viu?

Respondi que não vi mais ninguém além dele, mas perguntei de qual viagem estava falando.

– Ah, uma viagem longa. Vamos a vários lugares, mas primeiro tua mãe quer passar em Paris. Sabe a paixão que ela tem por essa cidade.

– Fico feliz que vocês possam fazer estes programas. Na verdade sempre imaginei que estariam fazendo coisas assim.

– Ah, tua mãe sempre teve essas ideias. Ele adora esses programas. Pois foi um prazer lhe ver filho. Bom mesmo. Cuide o peso, caminhe bastante. Dá aqui um abraço.

Só então percebi sua inquietude.

– Está com pressa? Recém chegou!!

– Não é exatamente pressa, mas nós estávamos fazendo as malas. Imagine uma viagem que mistura Jericoacoara, Paris e o pico do Himalaia no mesmo pacote. Sabe como tua mãe gosta de levar tudo e não esquecer nenhum detalhe. Eu estava exatamente escolhendo umas camisas quentes quando você chamou. Mas veja, podemos conversar mais um pouco, se quiser.

– Na verdade eu tinha tanta coisa pra contar. Queria perguntar sua opinião sobre algumas decisões a tomar e algumas curiosidades. Por exemplo, no céu tem pão?

Ri sozinho e meu pai pareceu não entender a piada, pois ficou explicando sobre as padarias que tem na rua onde ele mora. Enquanto falava olhou para o seu relógio.

– Olha, podemos marcar pra outro dia? Sabe como é tua mãe, deve estar preocupada me procurando. Se eu estivesse com meu celular ligava pra ela, mas deixei em cima da mesa da cozinha junto com os documentos e o passaporte.

– Mas eu tenho algumas coisas a perguntar, e eu…

Sua resposta foi um abraço e mais poucas palavras.

– Em breve vamos nos encontrar, não se preocupe. Voltarei com mais tempo para conversar. Saiu caminhando em direção à saída, e quando estava próximo da porta se virou para mim e perguntou de longe:

– E o Grêmio? Lá de cima a gente não tem acompanhado.

Acordei em lágrimas…

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Sonho

Sonhei que uma amiga havia me deixado um aviso no WhatsApp dizendo que precisava de mim em São Paulo para…. (durante o sonho eu sabia do que se tratava, mas bastou acordar para que o conteúdo do pedido fosse apagado).

Próxima cena eu estava numa sala de espera aguardando essa amiga terminar um atendimento, em um lugar que me pareceu uma clínica bem movimentada. Nisso entra uma moça muito magrinha, com uma espécie de camisola hospitalar como se estivesse internada, amparada por sua família e com uma barriguinha muito pequena. Ela e a família falavam apenas inglês e eu presumi que ela tinha chegado do exterior para uma consulta.

Resolvi aguardar mais um tempo o momento de conversar com a amiga, já que aquela consulta parecia ser de emergência. Enquanto isso, fiquei conversando com a secretária da clínica até perceber que era uma antiga paciente minha que – por acaso – havia escrito para mim uma carta emocionada há alguns dias. Ela me contava detalhes da sua vida, inclusive que teve que se separar por conflitos com o seu enteado, filho do seu ex marido. Durante um tempo ficou me contando as agruras da vida de separada até que resolvi dar uma caminhada para conhecer o local, não sem antes me despedir dela, pedindo que me chamasse pelo celular tão logo a consulta tivesse terminado.

Saí caminhando pelo redondezas até cansar. Resolvi entrar numa sala que parecia um quarto de hotel onde havia uma geladeira, um banheiro, uma mesa e um sofá. Deitei no sofá para descansar um pouco, mas antes de me recostar peguei um picolé que achei na geladeira. Tive a impressão de ter cochilado um pouco (um cochilo dentro de um sonho…) e acordei sobressaltado quando alguém entrou pela porta. Só então percebi que estava em uma mistura de quarto de hotel e sala de consultas. A mesa do “quarto” na verdade era uma escrivaninha e o sofá uma mesa de exames. Quem entrou na sala foi uma conhecida médica da humanização. Ficou surpresa ao me ver, e foi logo dizendo que a partir de então passaria a atender ali exclusivamente. Explicou que em seu antigo emprego era obrigada a atender 200 consultas durante a tarde (não ficou claro se era um número correto ou uma hipérbole) e que o administrador era rude, grosseiro é só pensava em dinheiro. “Bastava eu sair da sala para tomar um café e ele gritava ‘Trabalhe, doutora, levante-se daí!!!’, sem qualquer consideração ou respeito”, disse-me ela referindo-se ao seu ex-chefe crápula. No sonho cheguei a lembrar que no auge do meu consultório eu atendia 12 a 14 consultas por dia, mas nada falei para ela. Apenas a cumprimentei pela mudança e pela nova ocupação.

“E você, o que faz aqui em São Paulo?”. Comecei a explicar a ela que tinha sido convidado por uma colega para lhe auxiliar em algo, mas não cheguei a lhe dizer do que se tratava. Foi só nesse momento percebi que minha viagem até São Paulo não tinha nenhum registro na memória. “Putz, será que eu vim dirigindo? Não me lembro de ter pego um avião”. Abracei minha colega e me despedi dela, pensando em voltar para a clínica para ver se minha colega já havia terminado a consulta com a menina americana. Quando me encaminhava para lá fui parado por uma senhora simples que carregava uma sacola cheia de radiografias, que me perguntou se ali era o “hospital de fraturas”, ao que eu respondi:

“Não, aqui é a Casa de Parto”.

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Borboletas

Sonhei que estava em uma aula com várias moças muito jovens e alegres, que conversavam entre si alegremente enquanto eu me mantinha quieto. Um certo momento entra uma senhora mais velha, mas muito “faceira”. Apresenta-se, fala algumas poucas palavras, apresenta-se como a professora e diante da turma abre uma caixa de onde saem inúmeras borboletas multicoloridas.

“Será nossa aula de “borboletologia“, disse ela. Tirei do bolso um papel-sonho e anotei “Confirmar o nome ao acordar”. Foi o que fiz, e descobri que o nome da ciência que estuda as borboletas é a “lepidopterologia“, um ramo da entomologia.

Uma das borboletas, que mais parecia uma planta de jardim disfarçada, pousou bem à minha frente. Enquanto observava os detalhes curiosos de suas asas de matizes multicores a professora se aproximou de mim.

“Por que está cara tão fechada?”, disse ela, olhando bem em meus olhos com sua reprovação amorosa. “Veja quantas borboletas!!”. Só então me dei conta da tensão do meu rosto e da minha incapacidade de sorrir diante da surpresa que nos foi oferecida. Olhei ao redor e pude ver todas as minhas colegas alegremente correndo atrás delas com seus smartphones engatilhados e suas risadas fáceis.

Notei que as borboletas eram “camaleônicas” e se transmutavam, mudando o formato das asas e suas cores na medida em que falávamos com elas, isso tudo diante de nossos olhos incrédulos.

A professora tinha razão; não fazia sentido algum ser rabugento diante de tanta e tão efusiva beleza.

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Ethel

A pesar de estarmos procurando há vários minutos parecia se apequenar a chance de encontrarmos a rua. Com nosso carrinho pequeno alugado, parecia difícil achar no labirinto de ruas de São Paulo aquela pequena Alameda com árvores de flores roxas que conhecíamos de nossas visitas anteriores. Olhei para Ethel mais uma vez e disse:

– Erramos de novo. Eu falei que não era na primeira, mas na segunda à direita.

O carro minúsculo agora estava parado olhando impávido para o muro de uma obra, enquanto seus pneus, quais sapatinhos pretos de usar na escola, pisavam sobre velhas telhas de amianto que restaram de um desmanche anterior.

– Pode dar ré e começar de novo. Não temos tempo. Estão todos nos aguardando para o aniversário de Nora. E o jogo deve começar em alguns minutos. Apure!!

Só me restava concordar e engrenar a ré. O carrinho fez um guincho curioso e partiu de costas em direção à rua de onde viera, antes da má escolha de entrar no beco. Quando lá chegou manobrei para seguir com o plano traçado por minha vaga memória do lugar. Entrar na segunda, e não na primeira rua, exatamente como me lembrava. Mas bastou engrenar a marcha do carro e um fato me fez frear. À nossa frente estava um gigantesco ônibus de excursão, esses de dois andares, bloqueando a rua e na contramão. Sua face quadrada olhava para nosso pejôzinho de forma ameaçadora. Por instantes ficamos parados olhando um para o outro, sem saber o que fazer.

– Como esse sujeito ousa ficar na nossa frente desse jeito, e ainda na contramão? Quem ele pensa que é? Faça você alguma coisa, não fique parado!!

– Infelizmente aluguei um carro sem asas, disse eu. Carros voadores estavam muito caros. Preferi um modelito terrestre mesmo.

Ela sorriu do meu sarcasmo e voltou a olhar para a cara braba do ônibus. Senti que algo ia acontecer quando, depois de alguns segundos, o motorista pisou duas vezes no acelerador fazendo um ruidoso “Vrummm – Vrummm”. Milagrosamente vi o ônibus gigante emitir um apito conhecido e começar a andar para trás. Vagarosamente andou de ré enquanto eu o seguia, como se uma força milagrosa fizesse nosso carrinho alugado empurrar o monstro de dois andares. Mais alguns instantes e ele deixou passagem para a segunda rua, aquela que eu acreditava ser a correta para chegar na casa de Carlos. Tão logo houve passagem buzinei para a gentileza do motorista e entrei na rua de árvores com flores roxas. Liguei o rádio e começou a tocar “Soy pán, soy paz, soy más” de Mercedes Sosa, uma música que sempre me carrega à adolescência. Mais ao fundo eu vi o final da Alameda e uma placa, mas as casas eram antigas e cinzas, completamente diferentes do que eu trazia na memória. Fiquei mais uma vez desnorteado e pedi a Ethel que me dissesse o que lia na placa.

– Calle 25 de Mayo, disse ela. Com “ípsilone” mesmo, completou.

Fiquei confuso, mas minha confusão só aumentou quando percebi ao fundo o que parecia ser um estandarte azul e branco que eu bem conhecia, o qual tremulava com a brisa salobra do Rio da Prata. À minha frente vários cupês pretos de capota amarela cruzavam ruidosamente as faixas da avenida. As casas antigas e o estilo inglês agora faziam sentido.

– Estamos em Buenos Aires, Ethel. Aconteceu alguma coisa, mas creio que só existe uma explicação. Temo dizer, mas creio que você já sabe.

Ethel sorriu conformada. De seus olhos marejados surgiram dois tênues córregos cristalinos de lágrimas.

– Eu sei, eu sei, disse ela com a voz embargada, e você pode fazer o que precisa ser feito. Estarei aqui quando você voltar. Vá, não se demore. Pode ir.

Ainda relutante, olhei fundo em seus olhos verdes enquanto suas mãos frágeis e frias juntavam as palmas das minhas junto ao meu peito.

– Você sabe como fazer.

Afastei-as e bati uma vez. Repeti o gesto e parei. Olhei para Ethel enquanto meus olhos diziam “Não posso ficar mais um pouco aqui com você?”, mas ela apenas sorriu e balançou a cabeça dizendo para bater as mãos uma derradeira vez. Na terceira batida as imagens foram se apagando, tornando-se emaranhadas e confusas. Abri os olhos e pude ver, ainda buscando o foco, a porta do armário de madeira escura, pintada pelos primeiros raios de sol da manhã. O barulho dos passarinhos já era estridente, enquanto os sons desconexos da rua se misturavam com o ar do quarto. Fiquei por instantes olhando a porta, mas depois de girar meu corpo na cama encontro os olhos fechados de Ethel que ainda aguardava o seu momento de voltar. Quem sabe preferiu ficar na solidão do nosso carro alugado esperando o término da música de Mercedes.

Maurício Rosenfeld, “Delírios e blues”, ed. Brasilianense, pág 135

Maurício Rosenfeld é escritor e advogado. Nasceu em 1959 em Campo Grande – MS e desde cedo escreve para jornais e coletâneas literárias de sua cidade. Na advocacia dedicou-se à defesa das comunidades quilombolas e dos trabalhadores sem terra. Escreveu vários artigos para os jornais locais e “Delírios e Blues” é seu primeiro livro de crônicas, onde aborda seu trabalho com as populações excluídas, contos eróticos, ficção e sua paixão pelo “blues”, em especial o trabalho de Riley Ben King, mais conhecido como “B. B. King”. Mora em Campo Grande.

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Despertar

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Afinal, será que eu existo mesmo?

Ou será que eu sou apenas o produto de uma incubadora num campo de cultivo de gente que vive um mundo virtual pensando ser real? … ah, desculpe, já fizeram esse filme…

Mas e se eu for tão somente o sonho bizarro de um mago de outro planeta, que está prestes a acordar, e quando ele acordar eu mesmo desapareço, torno-me poeira, viro memória fugaz, algo que ele contará em fragmentos dispersos para o seu analista, que igualmente não entenderá e apenas dirá “muito bem continuamos na próxima terça-feira”.

E quando ele acordar estarei em suspenso, olhando minha falsa existência evaporar enquanto encaro os olhos esbugalhados de uma fictícia paciente que faz força na minha frente.

Escuto um som ao longe. Parece um trinado, um som de passarinho. É, na verdade… um alarme de celular!!! Não atenda mago da outra galáxia!!! Não me tire daqui, pois este bebê já vai chegar. Não acorde, não acorde…

Espere ao menos o beijo que guardei para os meus nos derradeiros instantes de minha rápida existência. Se você tiver um resquício de amor em seu coração não permita que…

Puff…

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Matilda

Edgar, meu colega e superior hierárquico, ajeitou seu chapéu de feltro sobre a cabeça e com as mãos me fez um sinal de pressa. Abriu a gaveta chaveada de sua escrivaninha e mostrou os papéis que ali estavam guardados. “Aqui nessa pasta podes ver os detalhes do caso. Precisamos chegar a tempo. Todos nos aguardam. Vamos imediatamente para a mansão da viúva”

Meu chefe entregou a pasta enquanto o carro nos levava para o subúrbio mais rico e sofisticado da cidade. A pasta do caso em questão, o envelope “145”, jazia sobre o meu colo. Abri com cuidado e lentamente a cartolina que lhe servia de capa e li a primeira página até chegar no nome dos envolvidos. Nesse instante eu me assustei ao constatar a brutal coincidência, que apenas as confluências coordenadas pela Deusa Álea – a divindade dos fatos aleatórios – são capazes de produzir. Estávamos nos dirigindo à casa de Matilda Malamud, uma antiga namorada, com quem tive um breve romance há décadas.

Matilda era uma das herdeiras da fortuna de um advogado famoso dos anos de chumbo, que ganhou notoriedade libertando presos políticos e lutando em prol das liberdades democráticas. Matilda era linda, madura e muito rica, nos limites da obscenidade que o acúmulo de dinheiro produz. Por essas razões sempre foi cobiçada pelo “jet set” da cidade. Nosso romance havia sido breve, mas intenso. Foi sério a ponto de fazermos planos, de pensarmos em filhos e, por isso, tive oportunidade de conhecer suas irmãs e sua mãe, esta última há muitos anos viúva. Não deu certo: seu estilo de vida sofisticado e perdulário jamais se acomodaria a um estudante de classe média baixa e filho de funcionário público. Resolvi terminar com tudo antes que nossa vida se tornasse insuportável e atormentada. A coincidência se tornou ainda mais aterradora quando me dei conta que estaria encontrando uma ex-namorada milionária sem qualquer preparo emocional para isso. O que poderia ser mais aterrador que isso? Acho que apenas a roupa que eu estava vestindo. Aos poucos íamos nos aproximando da mansão que ocupava uma quadra inteira próxima do centro da cidade. Quando namorei Matilda imaginava que seria necessário um ano inteiro de trabalho apenas para pagar o IPTU dessa propriedade. Jamais um proletário como eu poderia participar do seu círculo de amizades. E o que faria eu das minhas ideias socialistas? Colocaria no lixo meus sonhos de igualdade e fraternidade em nome de conforto, luxo, facilidades e uma paixão? Deixaria de lado tanto os princípios quanto a firmeza de ideias?

Finalmente chegamos à sua casa onde um empregado de uniforme nos recebeu na imensa porta de entrada, que deveria ter mais de 4m de altura. Edgar informou de nossa missão oficial e mostrou o documento. O empregado olhou para o papel e depois me analisou de cima a baixo, com um olhar que misturava desprezo e desconfiança.

“Os senhores estão sendo aguardados. Por favor, me acompanhem”.

A Mansão

Que situação! Por alguns instantes nutri a esperança de que Edgar me deixaria aguardando no carro enquanto ele pegava as assinaturas necessárias, mas não foi o que ocorreu. Lá estava eu, reencontrando a mansão que já havia visitado na juventude. Confesso que cheguei certa vez a brincar em pensamento dizendo em solilóquio que “aquilo tudo um dia seria meu”. Mas eram apenas devaneios, sonhos juvenis. Bem tinha razão o mestre ao dizer que os sonhos não o são como os sonhamos. Um sonho é como um emaranhado de fios que correm dispersos para qualquer lado. Seus significados são quebrados, partidos, inconstantes. Somente ao contá-lo é que podemos enrolar os fios disparatados e criar um novelo de coerência. Contar um sonho é revivê-lo, descobri-lo, entendê-lo em suas filigranas e minúcias. Os esquecimentos, bem… estes são os melhores e mais importantes momentos, mas que – por obra do inconsciente – ficam escondidos de nós mesmos. Continuei caminhando pela mansão e reparando nos móveis finos, as luminárias, os assentos delicados de época. Depois de caminhar longamente por um corredor interminável, ciceroneados pelo empregado impecavelmente vestido com uniforme, Edgar e eu finalmente chegamos a uma porta de mogno maciço. Por trás da porta era possível escutar o borbulhar de risadas, falas incompreensíveis e conversas alegres. Quando ela se abriu fomos banhados pela luz radiante do ambiente e pelo aroma do vinho. Edgar e eu entramos na sala iluminada enquanto vozes silenciavam e olhares se voltavam para nós. Ao que tudo indica, nossa presença era esperada como algo que iniciaria os procedimentos, sejam lá quais fossem. A primeira pessoa que se aproxima de mim é Helga, a irmã mais velha de Matilda.

Helga

“Eu não acredito! Eusébio, é você? Você está bem apesar de….” Ela olha para minha cabeça que reflete a luz que vem do majestoso candelabro de cristais checos cintilando acima de minha lustrosa testa.

“Maduro”, respondi para ela com um sorriso tímido. “Sim, Helga. Faz muito tempo que não nos vemos. Como está? E os negócios, estão indo bem?”

Eu não parava de pensar nas minhas roupas desalinhadas, incompatíveis com o ambiente, mas os passantes pareciam não se importar ou mesmo se dar conta disso, e Helga menos ainda. Talvez pensassem que éramos empregados, e os serviçais são sempre invisíveis, Circulam como insetos por entre os burgueses, e deles não desejamos que nos mostrem qualquer aspecto humano, por mais simplório que seja. Perguntei a Helga dos “negócios” porque é isso que se pergunta para uma mulher solteira e sem filhos. Helga nunca havia se casado, apesar de ser uma bela mulher, dotada de inteligência e humor refinados. Era outra cerejinha colocada no bolo das solteiras desejadas da cidade, mas aparentemente ninguém era capaz de passar pelo seu crivo. Problemática? Exigente? Não haveria ninguém nesse mundo para ocupar o lugar do comendador Faustino, seu falecido pai, no coração dessa mulher? O comendador Faustino, aliás, era uma presença ilustre na sala, apesar de ter morrido há 3 décadas. Havia no ambiente pelo menos três imagens suas. Em uma delas está vestido com um traje aparentemente militar; em outra andando a cavalo na fazenda, e em uma terceira fotografia está ao lado da mulher e das três filhas pequenas. Uma quarta, descobri depois, era uma foto de corpo inteiro com uma beca especial usada para uma cerimônia da Maçonaria. O comendador ainda era citado na cidade como benfeitor, humanitário e “homem de princípios”.

Helga perguntou da minha vida, do que fazia, mas o “chit-chat” não se aprofundou em tema algum. Ao meu lado passavam pessoas distintas, homens de negócios, senhoras muito bem vestidas, com longos vestidos de tafetá. Todas interrompiam a conversa para abraçar Helga. Enquanto cumprimentavam Helga consegui vislumbrar em um canto da sala um homem trajando um uniforme azul com encordoamento trançado no peito e uma gola vermelho sangue reluzente, com bigodes apontando para cima, a lá Salvador Dali. Ele se ergueu e cumprimentou uma senhora com toda a pompa e circunstância. Parecia ser um oficial da Prússia no tempo de Frederico. Os senhores eram verdadeiros fidalgos, isto é, “filhos-de-algo“, gente bem-nascida, com posses, “burgeois” de estirpe. Ao contrário de mim e de Edgar, gente com “pedigree“. Depois de palavras que ficaram perdidas na conversa com Helga, pequenos nós no novelo que eu montava a partir dos fios emaranhados de lembranças, acerquei-me de um ponto mais à esquerda, onde estava Sophia, a irmã mais nova de Matilda.

Sophia

A sala era uma obra de arte escondida dos olhares invejosos dos cidadãos comuns da cidade. “Algo para o gosto refinado de quem conhece arte”, pensei. Para todo o lado que eu olhasse percebia luxo, requinte, sofisticação e bom gosto. As cortinas de um vermelho escuro aveludado eram adornadas com detalhes dourados. As janelas enormes enfeitavam as paredes, em salas cujo pé direito subia majestoso, arrancando nossos olhos do chão com a promessa de perder o teto de vista, humilhando ainda mais a minha pobre figura, vestida de forma patética. Quando avistei Sophia minha memória imediatamente me ligou à cunhada com quem brevemente convivi. Era a mais moça das irmãs e a mais geniosa, por certo. Alegre, esfuziante, intensa, porém ciumenta, birrenta e geniosa. Era a mais esperta de todas, mas carregava a cruz de ser a mais novinha, a caçula. Como era de se esperar, era a mais ligada à mãe. Além disso, Sophia era sedutora e provocante, e adorava provocar ciúmes nas irmãs com comportamentos, digamos, abusados, quando seus cunhados (ou pretendentes a tal honraria) apareciam na sua casa.

Ela continuava bonita e igualmente sedutora, sem dúvida. Apesar dos meus trajes deslocados do ambiente ela facilmente me reconheceu, mas – ao contrário do que seria esperado – não me tratou como uma figura bisonha incrustada em uma espécie de “baile de gala”. Não, ela me tratou como um convidado qualquer que apareceu de surpresa na festa de sua casa.

“Eusebinho, como vai? Parece que os anos lhe fizeram bem. Ficou bem melhor sem a barba, apesar de que eu gostava dela. Lembro de pedir para você cortar, mas era apenas para fazer birra com Matilda. Sua mãe como está?”

Respondi às suas perguntas de forma breve e sucinta, mas a maior parte da conversa que tivemos depois dessa breve apresentação se perdeu no novelo das memórias, ou eram ideias desconexas demais, feitas de assuntos diversos e sem ligação óbvia com o contexto. Assim são os encontros inesperados, que se revelam muito mais pelo que não dizem do que pelo que é expresso. Minha atenção agora se dirigia para o centro do salão. Por trás de um grupo de convidados que a cercavam estava a figura central de toda aquela cena: a matriarca, senhora Efigênia Malamud.

Efigênia

Foi necessário um pouco de esforço para me aproximar e aguardar a saída das pessoas que rodeavam a “viúva”. Efigênia, a esposa amantíssima do comendador Faustino, era o que sobrara de realeza na burguesia nacional. Ao seu redor não estavam amigos e parentes; aglomeravam-se súditos para cumprimentar uma dama, a mais nobre das mulheres daquela sociedade; uma celebridade local. Com um pouco de esforço, e a ajuda de Edgar, conseguimos nos acercar da matriarca. A “viúva” mantinha-se assediada por senhoras, crianças de vestidos rodados e senhores distintos. Estava sentada em uma cadeira enquanto sorvia uma xícara de chá. Tudo naquela mulher inspirava nobreza – e soberba. Ela parecia perceber claramente sua superioridade diante da mediocridade que a cercava. Acostumada a ter criados, serviçais, políticos locais, médicos e juízes sob seu controle, ela vestia uma aura de confiança inabalável. Para minha surpresa, apesar dos anos passados, ela se lembrou de mim quando me aproximei.

“Ora, ora, ora. Quem é vivo sempre aparece. O estudante sabichão. Eusebinho, como vai? Há muitos anos que não apareces em minha casa. Você fica bem sem a barba, mas ninguém pode negar que continua dono de um estilo inconfundível”. Sem surpresa ela foi a única a fazer um comentário sobre a minha roupa. Meus olhos saem do enquadramento do seu rosto magro e agudo e voltam a focar nos meus jeans surrados e a camiseta polo. Fico constrangido mais uma vez, mas aceito meu destino. Conformado, aceito o descompasso de estilos na esperança que alguém, no futuro, possa traduzir isso como “originalidade”.

“Não diria que sofri quando você se afastou de Matilda, seria um exagero. Entretanto, entendi que eram jovens demais, imaturos e impulsivos. Foi bom assim. Além disso, vocês eram muito diferentes. Digo, você era um rapaz de cidade e Matilda foi criada na fazenda, com regalias e mimos. Seria uma adaptação complexa. E sua mãe como vai?”

Sim, madame Efigênia. Diferentes demais para que pudessem estar lado a lado. E as diferenças não se resumiam a “uma vida cheia de facilidades e mimos”, pode ter certeza. Para mim sempre faltou a tonalidade azulada no sangue, coisa que sua filha do meio possuía em quantidade; mais de cinco litros em circulação. A viúva jamais aceitou que o “filho do funcionário público” – que era como secretamente se referia a mim, segundo os empregados me confidenciaram – ousasse namorar a filha do comendador. “As elites não suportam aventureiros”, pensei eu quando há muitos anos me despedi de Matilda pela última vez. Falei para Efigênia de minha mãe, suas dificuldades, a sua idade e a dedicação de meu pai a ela. Ela sorriu e pediu que me sentisse à vontade. Perguntou a uma amiga próxima onde estaria Matilda, mas esta respondeu que não a havia visto desde o início da recepção. Edgar abriu seu envelope e solicitou algumas assinaturas para a “viúva”, e eu fui lentamente me afastando após me despedir de maneira formal.

A mãe de Matilda sempre representou para mim o ocaso da “Casa Grande”. Sua mansão recheada de empregadas uniformizadas, invariavelmente negras, era como uma volta ao passado mais remoto dos canavieiros de São Paulo, quase uma pintura de Jean-Baptiste Debret. Todavia, seria um exagero dizer que Efigênia era malévola ou de má índole. Não, ela era apenas a herdeira de um mundo de desigualdades, cruel e injusto. Não foi ela quem criou a sociedade em que uma pele escura tira o valor humano de quem a veste, muito menos um mundo onde o dinheiro compra tudo, até o silêncio.

Nunca guardei mágoa ou rancor de Efigênia, mesmo sabendo como ela se referia a mim. Tivesse eu nascido em berço de ouro seria diferente? Tivesse eu sido criado em um mundo onde a riqueza é o valor máximo, teria permitido que um pé rapado se aproximasse de minha filha? Creio que somente calçando os sapatos Gucci de salto agulha da viúva do comendador e caminhando com ele mil vezes mil quilômetros seria possível saber como agiria, se também eu tivesse nascido com o sopro de fortuna dos herdeiros. Minha atenção agora se voltava para o outro lado da sala, onde um sujeito de terno cinza e sapatos marrons estranhamente desajeitado segurava um copo de vinho.

“É ele”, disse Edgar. “É o marido de Matilda”.

Heitor

“Sim”, disse Edgar com a inexpressividade intacta. “Precisamos falar com ele e conseguir as assinaturas. Além disso temos que acompanhá-lo aos seus aposentos, para garantir que estará só”.

“Certo”, disse eu, mesmo sem ter a menor noção do significado de acompanhar um indivíduo onde ele ia dormir para certificar-se de que estará sozinho. Afinal, o que isso nos interessa? Para que precisaríamos de comprovações num caso de separação? Houve alguma nova ameaça de agressão? O acusado pretende fazer algo nessa recepção que demande a nossa intervenção? O que estamos realmente procurando? Fomos lentamente nos aproximando do grupo de homens maduros até que o sujeito com o vinho na mão se voltou para nós.

“Boa tarde Sr. Heitor. Sou o comissário Edgar e vim fazer a fiscalização de que as determinações judiciais estão sendo cumpridas de forma correta e adequada. Nos perdoe por interromper a sua conversa, mas precisamos de sua assinatura em alguns papéis. Tenha a bondade, por favor”. O homem de terno cinza e estranhos sapatos marrons levantou-se do braço da poltrona onde estivera recostado e segurou os papéis que Edgar lhe ofereceu. Colocou a mão dentro do casaco e puxou uma caneta Montblanc. Sim as pessoas que circulavam no universo de Efigênia, como satélites do seu poder, não são moderadamente esnobes; elas avançam o quanto podem nesta direção. Só então, quando se preparava para assinar, ele se vira para mim com curiosidade. Edgar resolve me apresentar.

“Pois este é Eusébio, meu colega. Ele veio me acompanhar nas diligências. Desculpe não o ter apresentado antes”.

Heitor sorriu discretamente, mas fixou o olhar em mim. Ele era alto, pelo menos mais alto que eu, e tinha uma vasta cabeleira castanho-claro. Já aqui havia dois pontos suficientemente humilhantes contra mim. Sim, sei o quanto isso pode parecer ridículo, principalmente em se tratando de um encontro inesperado, mas fiquei medindo nossas qualidades e virtudes. Afinal de contas, Matilda havia casado com esse sujeito e ele deveria ter qualidades que me faltavam, ou não possuía os múltiplos defeitos que cultivo com especial apreço, tal qual as borboletas na gaveta de Frederick Clegg, esperando o momento certo para sequestrar a bela Miranda.

Heitor era uma mistura de Donald Trump e Stephen Fry: a cara do primeiro e um pouco do cabelo do segundo. Sei o quanto esta mistura fica terrível quando se imagina, mas ele talvez tivesse combinado o melhor dos dois. Era corpulento e um pouco desajeitado. Tinha uma próspera barriga, mas não a ponto de derrubar objetos ou impedir que os casacos se fechem. Mas o terno cinza, definitivamente não combinava com o sapato marrom de bico arrebitado, formando uma curva para cima que mais parecia a sapatilha de um arlequim. Heitor ficou me olhando fixamente, como a tentar me reconhecer, enquanto sua caneta Montblanc permanecia estática no espaço, apontando para uma taça de Clericot que repousava na mesa em frente.

“Eusébio, não? Eu creio que conheço você.”

Sorri amavelmente. “Não creio, senhor Heitor. Não sou da cidade. Creio que estive aqui há muitos anos. Provavelmente está me confundindo com alguém. Meus irmãos sempre me diziam que eu tinha “cara de balaio”, pois muita gente se parece comigo”. Heitor continuou a me olhar de forma firme. Suas sobrancelhas se aproximaram e seus olhos se apequenaram.

“Eusébio, você escreve. Eu sei que você escreve. Você é uma espécie de escritor.”

Aparentemente Heitor me conhecia, mas por quê? O que faria se interessar pelo que eu escrevia? Fiquei um pouco constrangido, menos por ele saber quem eu sou, e mais por estar falando com alguém que desconhecia por completo, mas que foi casado com minha ex-namorada de faculdade.

“Vou te dizer o que penso da arte de escrever. Se você tiver uma dor que torture o suficiente, será possível verter para…

Nesse momento ele foi interrompido por Edgard, que o avisou que deveria se dirigir aos seus aposentos, o que configuraria a última etapa da nossa tarefa de fiscalização. Ele se desculpou com o comissário, assinou os papéis sem lê-los, colocou na pasta de cartolina e pediu que eu o acompanhasse. Nesse momento é que eu percebi que ele se parecia com outro personagem significante para mim. Ele me lembrava o filho mais novo de Adélia, a mulher fatal com sua cigarrilha dourada. Sim, o filho que testemunhou o ato fatídico e que, em sua inocência, precipitou a tragédia. Mas, lembrei de novo, Adélia é outra história a ser contada.

Heitor segurou o meu braço e nos dirigimos à porta de mogno maciço por onde eu e Edgar entramos. Caminhamos vagarosamente pelo interminável corredor adornado por obras de arte até chegarmos ao jardim interno da mansão. Durante este período Heitor mantivera-se quieto caminhando ao meu lado, mas ao chegarmos ao jardim começou um longo discurso sobre assuntos variados, da política ao futebol. Ele não parecia um burguês falando: falava como se fosse um advogado interessado em muitos assuntos, como se pelas suas mãos houvesse passado um grande número de casos, os quais havia defendido com fervor e paixão. Não usava nenhuma linguagem técnica, mas gesticulava com desenvoltura e interesse. Durante a travessia do belíssimo jardim ele me contou que já havia lido muitos livros sobre política, incluindo algumas crônicas que eu havia escrito, mas que tinha algumas críticas a fazer.

“Fique à vontade, disse eu”, mas não foi possível pois a empregada nos comunicou que o Sr. Heitor deveria ficar no quarto 25, e que era preciso dar a volta mansão para chegar aos aposentos.

Isso significava que teríamos que sair da mansão, dar a volta na imensa casa central e procurar os apartamentos de casas idênticas que faziam o limite interno da propriedade. Imaginei que aqueles pequenos apartamentos foram um dia criados para acomodar viajantes de fora, mercadores de cana de açúcar, negociantes, vendedores de mercadorias. Por uma questão de segurança estes locais não tinham conexão interna com a Casa Grande, sendo acessados por fora. Saímos pelo portão principal e dobramos à direita, e novamente, para termos acesso ao flanco onde se encontravam enfileirados os apartamentos. Eles eram simples, como se fossem casas de operários ingleses. Uma porta que era acessível por quatro lances de escada, e uma janela da mesma cor. A empregada que nos guiava levava consigo as chaves e parou bruscamente quando viu a placa com o número 25 sobre a porta esverdeada. Heitor me convidou a entrar, enquanto outros empregados colocavam a pouca bagagem do convidado na sala estreita. Edgar nos acompanhou, junto com as duas empregadas, que se apressaram a entrar no quarto para ver se a cama estava arrumada e se havia sabonetes e papel higiênico no banheiro.

“O senhor Heitor deveria ter ficado no “23” mas a porta de lá está trancada”.

“Como”, perguntei eu? O que houve com a porta do quarto 23?

“Foi como eu disse. Não há como ir para lá, mesmo que o quarto esteja mais apresentável e seja levemente maior, mas o problema é a porta emperrada

Percebi que por duas vezes havia tentado entender a explicação que ela dera sobre a porta, mas a razão por ela estar inacessível me faltou à compreensão. Interpretei, em meus pensamentos, que se tratava de algo planejado. Talvez houvesse algo no quarto 23 que não deveríamos ver. O fechamento da porta do quarto 23 não estava ao meu alcance ou acessível à minha compreensão. Fiquei curioso com este fato, mas decidi que seria inútil insistir. Edgar olhou para mim e exclamou quase cochichando: “Espero que tenhas aprendido a sua função, Eusébio. Nosso trabalho se insere no mundo real, onde encontramos a crueza das ações, suas dificuldades e imprevistos. Nossa atividade sempre nos coloca em contato direto com a realidade, mesmo que ela pareça dura e pesada”.

Sim”, pensei eu. “Que dureza conseguir algumas assinaturas em uma festa, filar uns canapés, beber uma taça de Champanhe legítimo em uma festa burguesa e acompanhar Sir “Stephen Trump” (Ou seria Donald Fry) até seu quarto, cuidando para que ele consiga se equilibrar em seus sapatos de menestrel loquaz. Ora, se isso é a “dureza da vida”, como poderíamos chamar os mineiros, escafandristas, policiais e jornalistas que cobrem os conflitos? Sorri, mas não permiti que Edgar pudesse ler meus pensamentos.

“Bem senhores, agradeço a companhia, mas preciso me recolher. Amanhã será a cerimônia de assinatura do divórcio e preciso estar com a minha cútis em ordem. Rá, rá. Espero que vocês tenham igualmente uma noite tranquila de repouso”. Agradeci as palavras de Heitor e o cumprimentei. “Ainda quero conversar mais sobre seus escritos”, disse ele ao apertar delicadamente a minha mão. Nesse momento, olhou para a porta e com um sorriso tímido nos disse: “Bem, vejo que terão companhia até a entrada da mansão. A senhora vai acompanhá-los”. Nos dirigiu um “Boa noite!”  e entrou em seu quarto. Olhei para a porta do chalé que estava atrás de mim e percebi a chegada da “senhora”.

Era Matilda

Matilda

De todas as personagens dessa minha breve visita a um passado de fantasia adolescente, a única por quem tinha uma angustiosa vontade reencontrar era Matilda e, curiosamente, foi a última que cruzou meu caminho. Matilda mantinha os mesmos adereços do passado remoto de quando a conheci. O sorriso maroto, a boca carnuda e vermelha, os olhos grandes e castanhos. Os cabelos ainda os mantinha grandes, apesar de ser agora uma mulher madura. Sua roupa era sóbria: um Tailleur de linho vermelho escuro por sobre uma blusa de seda branca, meias, sapatos pretos de salto alto, mas não altos o suficiente para me humilhar ou entristecer. Nas mãos joias, capricho que conservava desde a juventude, e que a riqueza proporcionava. As unhas de um carmim impecável, e na mão esquerda a marca cicatricial de uma aliança ausente.

“Eusébio, jamais imaginei que um dia você voltaria à minha casa. É um prazer recebê-lo. Seja bem-vindo e sinta-se à vontade”.

Olhei para Matilda com carinho, pois a percebi desarmada. Poderia ter se escandalizado com minha presença, ou até ultrajada. Afinal eu viera ali para testemunhar sua infelicidade, o cumprimento de uma determinação que tinha, como cerne, a mágoa tatuada na carne. Poderia ter se escondido, simulado um mal-estar, fingido uma enxaqueca. Nada disso; foi ao meu encontro e se apresentou com o mesmo sorriso encantador que conheci na juventude. Não havia nela rancor, nem ódio. Mas inegavelmente Matilda deixava claro um sentimento inequívoco: a tristeza. Seus olhos não conseguiam dissimular que estava dolorida, sabe-se lá por quais razões. A falência de seu casamento, a vergonha da violência doméstica, o abandono, o remorso e a sensação do fracasso de um projeto de uma vida.

“Como está sua mãe?”, perguntou ela. Parecia que Efigênia e suas filhas haviam combinado esta pergunta antes do dia iniciar, como todos os sorrisos seriam encenados, os cumprimentos, as ordens, as perguntas de praxe e os comentários espirituosos. Acho que a alta classe precisa dessas regras para que as máscaras não caiam e deixem a todos constrangidos. Respondi a ela de que minha mãe passara por dificuldades, a cirurgia, a lenta recuperação as falhas da memória e todas as agruras previsíveis dos octogenários. Ela sorriu e disse algo como “que bom que melhorou”, mas esta era apenas mais uma das frases simpáticas que ela havia ensaiado.

“Senhora Matilda”, disse Edgar, e emendou com a mesma solenidade inexpressiva de sempre: “precisamos partir”. Já fizemos nossa parte e nos asseguramos que o Sr. Heitor ficará neste chalé isoladamente até amanhã, quando a cerimônia com as assinaturas e testemunhas terá lugar aqui mesmo na mansão. Desculpe se causamos algum desconforto ou constrangimento, mas estávamos apenas cumprindo nossa obrigação legal. Peço que a senhora assine estes documentos para que nossa função possa se encerrar”. Matilda segurou os documentos que Edgar lhe estendia e, como todos os outros, os assinou sem sequer ler. Devolveu-os com um sorriso para Edgar que, em agradecimento, retirou o chapéu e fez uma reverência.

“É hora de ir”, repetiu o comissário.

Eu gostaria de poder ficar mais, tão somente para poder entender um pouco a vida de Matilda. Um estranho sentimento de culpa me invadiu ao ver o rosto belo e triste da ex-namorada. Sim, a culpa era toda minha. Eu fui embora, eu desisti. A distância – na geografia e nas classes – me impediu de sonhar com Matilda e com a vida com ela poderia compartilhar. Seus desacertos com Heitor talvez poderiam ter sido evitados se antes eu tivesse coragem, determinação, força e paixão.

Não, tolice minha. Efigênia tinha razão; Matilda era de Vênus, e eu de Plutão. Sorri para Matilda e fiquei sem saber o que dizer. “Adeus”? Mas foi assim que me despedi na última vez que nos vimos. “Até mais?”, ora, quanta falsidade. Pior que isso apenas um “até breve”.

“Bem, eu vou indo Matilda. Foi bom te ver”, e essa foi a escolha que fiz nos segundos que me cabiam para decidir.

Ela sorriu e se aproximou de mim. Abraçou-me com ternura e tristeza. Chegou-se ao meu ouvido e sussurrou: “Nunca esqueci”. Seu corpo se distanciou, mas seu braço permaneceu em meu ombro, abrindo levemente o casaco vermelho de linho. Enquanto seu corpo lentamente se afastava pude vislumbrar o drama que se escondia na alma daquela mulher. Por baixo da blusa de seda branca um volume anunciava o que até então eu não havia percebido.

Matilda estava grávida.

FIM

Max Trebrett, “Matilda e outros Contos”, Ed. Panamericana, pág 135

Max Trebrett é um escritor de contos e crônicas. Nascido de pais noruegueses, sua família chegou ao Brasil nos anos 50, fugindo do grande estrago nas economias europeias causado pela II Guerra Mundial e em busca de estabilidade. Max formou-se em Medicina no Rio Grande do Sul e dedicou-se à obstetrícia, tendo trabalhado por muitos anos nesta área. A partir do ano 2000 começou a publicar, em vários jornais, crônicas e contos de humor, em especial acontecimentos ligados à área médica, onde atuou por muitos anos em serviços de pronto atendimento. Seu trabalho inicial foi na publicação “Bisturis e Canetas”, uma coletânea de escritos de médicos dedicados à literatura, com o conto “O Círculo do Gelo”, uma peça humorística sobre a mania, à época, de enviar objetos para um grupo de pessoas que, em contrapartida, precisavam manter o círculo vivo, enviando para o sujeito próximo da lista. O sucesso deste conto lhe estimulou a escrever sobre outros temas, sem jamais deixar de lado a vertente do humor. Desta forma, passou a colaborar com outras publicações de médicos escritores tendo publicado em 2010 sua primeira coletânea de textos originais, intitulada “Max e o novelo”, onde conta suas histórias pitorescas entrelaçadas umas às outras, formando um cordão de fatos intrincados que não permite que as histórias se desconectem e cuja leitura se assemelha ao desenrolar de um novelo de lã. O conto “Matilda” surgiu de um sonho do autor, conforme ele explica no prefácio da obra. Ao despertar, muito assustado, resolveu colocar em texto os elementos principais para que não escapassem à memória. Explicou ainda que os personagens da história são versões de pessoas que de fato conheceu, porém os fatos narrados são fantasias sobre um reencontro possível entre ele e seu amor platônico, Matilda. A personagem central Matilda existe de verdade, mas a história de ambos não passou de um flerte passageiro e inconsequente. Todavia, a caracterização da sua família e dos que a cercam é muito semelhante à realidade. Max é casado com Dorothy, e tem duas filhas: Denise e Michaella. Mora em Porto Alegre, RS

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