“A objetualização do paciente, sua coisificação e o tratamento frio a que ele é submetido NÃO SÃO “paraefeitos” do modelo de ensino contemporâneo. Pelo contrário; tais elementos formam a base do paradigma tecnocrático de assistência no processo de produção dos novos profissionais da saúde. Sem a plena compreensão dessa intencionalidade inconsciente e ritualística jamais completaremos a tarefa de humanização da assistência. O problema é que a violência praticada é invisível, como se, assim naturalizada, ela passasse a ser parte integrante da atenção. Com isso ela se torna inquestionável. Afinal, como questionar uma ação que é essencial para o atendimento? Botar alunos em fila para apalpar uma tireoide ou fazer um exame de toque, passa a ser o “certo“, o “essencial” e o “natural“. Como reclamar?”
Arquivo do mês: setembro 2015
Justiciamentos
Sobre os justiciamentos populares…
“Qual a dificuldade de entender que qualquer criminoso, qualquer que seja o crime, tem direito a defesa e não pode ser maltratado? Fora isso teremos apenas justiciamentos, típicos de republiquetas onde a barbárie impera. O criminoso precisa pagar pelos seus crimes, mas a sociedade NÃO PODE ser mais doente que o sujeito. Para quem curte linchamentos, não esqueça que a civilização começa quando o estado de direito se impõem sobre a selvageria. Os crimes, quando comprovadamente cometidos, não podem ficar impunes e o meliante precisa ser afastado da sociedade.
O resto é apenas vingança de pessoas que, em essência, não diferem muito dele….
E por favor…. não aguento mais discurso de “vingadores” ao estilo “se fosse comigo…“, muito menos coisas como “leva pra casa“, “tem que pendurar num poste“, ou “tratam bem esses caras, mas…“. Chega. Estudem. Leiam o que diz a constituição de QUALQUER país civilizado. Esse tratamento digno com os criminosos ocorre em países como os Estados Unidos e na Europa, mas o que vocês preconizam existe no Zimbábue e na Nigéria.
Estou cheio de justiceiros que preferem viver na África do que na Suécia, desde que isso os beneficie. Tipo, os “outros” que se “ferrem”, o importante é manter meus privilégios.
Meu ponto de vista é que a civilização cobra caro a sua construção e manutenção, e o preço é entender que não se faz justiça maltratando o criminoso e nem jogando sobre ele nossas raivas e nossa indignação, carregadas de fúria cega. NENHUMA sociedade desenvolvida se consolidou sem antes passar pelo processo penoso de respeito às instituições em um esforço conjunto pela consolidação do estado de direito. Tratar com humanidade e respeito o criminoso NÃO SIGNIFICA desreconhecer a dor das vítimas, e nem MUITO MENOS perdoar os crimes por eles cometidos. Tratar com justiça não é tratar com crueldade e nem com violência.
A sociedade precisa ser pedagógica e não vingativa. Existem questões acima de qualquer debate, e entre elas estão os DIREITOS HUMANOS, que são elementos que cada um de nós carrega na essência de seu ser: não podem ser retirados por nenhuma circunstância ou contexto.”
Modismos
Eu era adolescente quando Nelson Carneiro, deputado pelo Rio de Janeiro, fez passar a lei do divórcio. O ano era 1977, e a partir dessa data muitas mulheres encheram-se de coragem e, enfrentando todo tipo de preconceitos e julgamentos, exigiram de seus maridos o desenlace jurídico definitivo. É verdade que muitos maridos também o solicitaram, mas reconheço que os pedidos partiam majoritariamente das esposas.
Quando a avalanche de divórcios se tornou evidente muitos disseram se tratar de um “modismo”, algo inconsequente; irresponsável até. Entretanto, eu conheci e conversei com muitas dessas mulheres que, abrindo mão de tudo que tinham, – estabilidade, conforto, dinheiro, segurança, reconhecimento social – separaram-se de seus companheiros para se tornarem estigmatizadas como “divorciadas”. Quando eu lhes perguntava porque se aventuravam neste salto no escuro de uma separação elas respondiam: “Claro que é difícil, angustiante e penoso, e é evidente que me sinto insegura, mas manter-me casada seria muito pior”.
Ao encontrar críticas ao “modismo” dos partos extra-hospitalares eu me pergunto se, na visão destas gestantes e seus maridos, a opção de um parto no hospital não lhes parece uma alternativa muito mais violenta e indigna do que a escolha radical que fizeram, a ponto de buscarem opções que para muitos podem parecer insensatas.
A verdade é que TODA a escolha pelo local de parto é POLÍTICA, sem exceção. A não ser que seja imposta, e aí já não é mais escolha. Parir de forma normal, no mundo contemporâneo, é ligar o liquidificador no condomínio às 3h da madrugada: não há como não se tornar algo público. Nossas escolhas influenciam os que nos circundam, e eles por sua parte interferem em nosso cotidiano. Portanto, as escolhas políticas se fazem em função de demandas daqueles com quem convivemos. Os partos na atualidade refletem a inconformidade crescente com o modo como as sociedades contemporâneas lidam com a liberdade e a autonomia das mulheres.
Se há abusos e, por vezes, escassez de bom senso, há também – e de forma exponencialmente maior – no modelo anacrônico e autoritário de partos que temos hoje. Para que a atenção seja melhor é fundamental que nos debrucemos sobre uma crítica madura e pertinente sobre os limites da tecnocracia e o preço da alienação. Com isso vamos diminuir a chance de escolhas insensatas ao oferecer um atendimento hospitalar centrado na mulher e suas necessidades, respeitando seu protagonismo e sua autonomia para tomar as decisões que lhe cabem.
Infelizmente, ao invés de fazermos uma autocrítica dura, corajosa e madura ao modelo anacrônico de atenção obstétrica, perdemos tempo e recursos preciosos atacando a CONSEQUÊNCIA disso: a escolha livre e consciente por um parto que tenta se afastar das amarras do autoritarismo.
Higiene
O historiador holandês Norbert Elias, no seu livro “O Processo Civilizatório” faz descrições muito curiosas sobre os hábitos de higiene da idade média, como a invenção das “roupas de baixo”, os banhos, o sexo, o suor, o cheiro do corpo e tantas outras adaptações humanas curiosas que a cultura produziu. Não podemos esquecer da famosa carta de Napoleão à sua amada Josefina, tão curta quanto explícita: “Chego na terça-feira. Não se lave“.
Mais interessante ainda é entender a forma de lidar com o corpo, seus cheiros, sua essência, sua “naturalidade”, suas funções, suas excreções (suor, urina, fezes) e tentar “desnaturalizar” o modelo contemporâneo, colocando-o no seu devido lugar: uma etapa como qualquer outra na longa linha de construções da civilização. Da mesma forma como a gordura corporal feminina (alguma, ao menos) era exaltada do século XVII em diante, como podemos ver em várias pinturas de época, também hoje a magreza das mulheres é estranhamente glorificada como “linda”, a exemplo do que ocorre com algumas figuras públicas femininas, cuja musculatura se assemelha à configuração masculina.
A construção de valores culturais obedece um ordenamento singular, onde finas camadas de sedimentação vão se estabelecendo lentamente, criando novas estruturas sobre as anteriores. Também o nascimento humano, cheio de aromas, sons, guturalidades, suores, secreções e sombras parece desfocado numa civilização moderna que exalta a limpo, o estéril, o claro, o brilhante, o insípido e o inodoro. Os ruídos metálicos de uma sala cirúrgica são o contraponto moderno do silêncio entrecortado por gemidos de um parto onde a sexualidade imanente do processo não é desconsiderada e, portanto, não é temida.
O nascimento contemporâneo nada mais é do que a vã tentativa de desviar nosso olhar do erotismo inegável dos corpos que se contorcem, do suor que brota da face lívida, do olhar perdido no infinito, da palavra de súplica e do desejo que se materializa magicamente, brotando da vagina ameaçadora, úmida e escura.
Arquivado em Pensamentos
Até quando?
Estava lendo o texto de uma colega sobre uma cesariana e percebi que é, sim, possível escrever um texto ofensivo e rancoroso ao extremo embrulhando palavras ácidas e agressivas com celofanes coloridos de falsa candura.
É muito ódio nesse coraçãozinho…
Até quando as pessoas vão continuar com esse discurso de contrapor humanização do nascimento com cesariana? Quando é que vão se dar conta de que não criticamos a cirurgia, mas seu abuso? Quando é que perceberão que não se trata de questionar a boa prática cirúrgica – que começa com uma boa indicação – mas alertar para as consequências em curto, médio e longo prazo do exagero INQUESTIONÁVEL de um recurso que é reservado apenas para os casos de risco aumentado para mães e bebês? Quanto ainda teremos de suportar essa dicotomia FALSA entre recursos tecnológicos e humanização do nascimento?
Apenas para lembrar o conceito e acabar de uma vez com essa falsa incompatibilidade entre uso de tecnologia e assistência humanizada:
“A Humanização do Nascimento vem trazer a síntese entre as conquistas recentes da ciência, que nos oferecem segurança, com as forças evolutivas e adaptativas dos milênios que nos antecederam. Este releitura do nascimento humano se faz necessária para acomodar as necessidades afetivas, psicológicas e espirituais das mulheres e seus filhos com as conquistas que o conhecimento nos trouxe através da aquisição crescente de tecnologia.”




