Arquivo do mês: abril 2016

Palmada

palmada

Chego mais cedo ao terminal compelido pela minha neurose. A fila do check in está vazia, mas a tripa em pouco tempo se fará presente. Em tempo: na minha infância se usava a palavra “bicha” para designar fila, expressão que veio de Portugal. Hoje em dia “furar a bicha” é crime de transfobia; “bicha” está para fila assim como “gay” está para alegre. Os costumes sepultam expressões, mas para cada uma que morre outras tantas nascem ou são revividas pela fala.

Solicito a troca do meu assento. Outra neurose: só consigo viajar no corredor. Não adianta me dizer que “a vista quando se chega em… é linda”. Claustrofobia. Urina frouxa.

Troquei. “Viu como é bom chegar cedo?”. Poderei esticar as pernas e visitar o banheiro sem pedir licença.

Resolvo tomar um café com leite, mais para me acalmar de um dia cheio de atribulações do que por qualquer necessidade ou fome. Ao me aproximar do caixa escuto a conversa das atendentes enquanto faço o pedido da “média”.

– … e com cinco anos nunca apanhou. Não sei mais o que fazer.

Olho para a moça que havia falado. Loira, alemoa, carinha redonda de “colona”. Olhos verdes brilhantes e bochechas vermelhas. Parece uma figura que seria facilmente encontrada num “kerb” em Nova Hartz.

Pergunto, consciente da minha indevida intromissão.

– Quem aí disse que nunca bateu?

Elas se olharam intrigadas. Quem é esse velho se metendo na nossa conversa?

– Eu disse, falou a loirinha. Meu filho tem 5 anos e nunca apanhou, mas agora anda impossível. Não sei mais o que fazer.

– Bem, disse eu, não sei exatamente o que podes fazer, mas posso te garantir que bater no seu filho será absolutamente inútil. Se é verdade que as criança precisam descobrir limites para o seu ego em expansão, também é verdade que a violência apenas poderá oferecer a elas um idioma, uma linguagem de respostas imediatas, mas jamais uma comunicação correta ou adequada.

A moça do caixa, mais velha e talvez com filhos adolescentes, entrou na conversa.

– Mas a geração anterior, que recebeu castigos mais severos e até físicos, não é mais educada e respeitosa que esta? Não estou justificando espancar uma criança, mas uma palmada não seria adequada… talvez imprescindível?

A loirinha quis concordar, mas olhou para mim em busca de uma opinião de alguém mais ve…, digo, experiente.

– A minha geração e a anterior não produziu crianças mais educadas ou “com modos”; ela apenas criou crianças com medo. Muitas crianças tiveram sua criatividade destruída pelos castigos brutais que receberam. Não creio que esta opção possa lhe dar qualquer garantia de “educação” ou “bom comportamento”, mas certamente oferecerá a ela um “imprint“, uma marca afetiva e profunda, que determinará efeitos por toda a vida. Esta mensagem afirmará, por partir de uma figura importante e essencial como a mãe, que a violência é um artifício válido para a solução de conflitos ou frustrações. No futuro este adolescente ou adulto, diante de um desafio limítrofe qualquer, recorrerá ao depósito de suas memórias antigas e reconhecerá na brutalidade uma via lícita para resolver seus problemas ou descarregar suas angústias. O ciclo então se mantém: o espancado se identifica com o espancador e garante a linha sucessória da violência. É essa a herança que queremos deixar aos nossos filhos?

– Eu nunca consegui bater nele, moço.

– Então siga obedecendo seu coração. Não se conserta nada com violência. Pense nisso e…. parabéns.

Ela sorriu e entregou a bandeja com meu café, cujo vapor coloriu a atmosfera próxima com o aroma da nobre semente.

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Doulas e sociedade

DOULA

Sempre que o assunto “doulas” vai para a grande imprensa aparece a questão da formação curta que elas fazem quando comparadas aos médicos e enfermeiras. O que eu peço aos meus interlocutores quando tratam deste tema da formação é atentar para o fato de que doulas NÃO fazem qualquer ato médico ou de enfermagem, portanto não precisam ter uma formação voltada à destreza técnica nestas áreas. Assim, o curto treinamento pelo qual elas passam é para oferecer conforto para as pacientes, assim como estimulá-las física e emocionalmente para uma atitude positiva e uma postura ativa diante do parto e seus desafios.

Todavia, sabemos que o que se esconde por trás desta pergunta é uma inquietação silenciosa. Ela na verdade que dizer: “Por que doulas podem cobrar sem ter passado pelo mesmo processo de treinamento que eu passei durante os anos de escola, graduação e pós graduação?“.

Este é o principal incômodo de alguns profissionais de área de atenção à saúde. Quando uma doula se sobressai pelo seu trabalho uma onda de negatividade se instala, como se fosse pecaminoso vender seu tempo e sua dedicação e ser reconhecida por isso.

Doulas oferecem seu tempo e sua dedicação, além das qualidades aprendidas de conforto e reasseguramento para as grávidas. E isso pode ser cobrado, a despeito de ter ou não um curso extenso como formação. Entretanto eu creio que esta é apenas uma etapa a ser vencida. Com a continuidade do trabalho e a excelência dos resultados com o acréscimo das doulas não haverá mais como bloquear o acesso das gestantes a este benefício. Precisamos apenas de paciência e persistência.

O futuro do parto passa pelo respeito aos desejos de cada mulher. As doulas entram nessa luta como guardiãs do sagrado feminino e protetoras da fisiologia do nascimento.

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Ferocidade

bandeira-pt

Ainda sobre a pediatra que negou atendimento a uma criança por ela ser filha de uma militante do PT.

Uma pergunta me ocorreu..

E se a questão não fosse a cor partidária, mas a cor da pele? Se a médica dissesse que não se sente bem por atender negros, orientais ou imigrantes, ainda sim o representante do sindicato da corporação diria que a médica deveria se orgulhar pela sua “sinceridade”? E se a mãe da criança fosse gay? Preconceito racial não pode, mas contra um partido pode? Alguns preconceitos são piores – ou mais aceitáveis – que os outros? É certo focarmos apenas na (necessária) sinceridade da profissional e esquecer o preconceito asqueroso e abjeto que a moveu?

Fiquei rindo sozinho (um sorriso triste, confesso) de imaginar o que diria o mesmo representante da corporação se uma médica petista (existem sim, acreditem) resolvesse escrever a mesma mensagem para uma mãe que veio à consulta com a camiseta da CBF e um adesivo “Fora Dilma” colado ao peito.

Alguém dúvida da ferocidade com a qual ela seria atacada por seus iguais?

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Valente menina

baby holding his mothers finger, selective focus

Volto para casa depois de 20 horas – passadas no domingo e no início da segunda feira – trancado num hospital para atender um parto cheio de desafios, mas que nos rendeu um nascimento maravilhoso e empoderador. Cansado, faminto e ao mesmo tempo eletrizado, sento à frente do computador para ver se chegou algum e-mail e escuto “Cinema Paradiso”, na versão de Josh Groban.

O primeiro refrão diz:

“Se tu fossi nei miei occhi per un giorno
Vedresti la bellezza che piena d’allegria
Io trovo dentro gli occhi tuoi
E ignoro se è magia o realtà.”

(Se você visse através dos meus olhos apenas por um dia
Você veria a beleza que me inunda de alegria
Quando olho para dentro de teus olhos
É um misto de magia com realidade)

Quem já atendeu um parto e teve nas mãos o corpo quente, escorregadio e viscoso de um bebê, e pôde ver nos olhos de uma mulher a vitória emoldurada por suor e lágrimas, entende a sensação divina e transcendental de ter participado de um momento sagrado e enigmático, para além da compreensão.

Seja bem vinda, valente menina…

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Aforismos

golpe

15.

“A diferença entre as duas manifestações – contra e a favor do golpe – é que uma é a favor da democracia independente do partido e a outra é contra o partido independente da democracia.”

16.

“Quem precisa de mentiras para validar suas posições reconhece o fracasso de suas ideias.”

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Negro, negro

save me

Esta é uma das mais marcantes e mais contundentes história sobre racismo que eu já escutei. Não por ser um relato espetacular, como um massacre promovido pela KKK, ou o relato desumano e degradante da época da escravidão, mas por ser banal, algo que passa ao nosso lado todos os dias sem que possamos perceber.

Trata-se de uma situação corriqueira nas grandes cidades. Quem a contou para mim morava em um apartamento no primeiro andar de um edifício, com seu namorado e sua mãe. O edifício ficava incrustado em um grande condomínio habitacional da minha cidade. A mãe era aposentada, o namorado sargento da polícia militar e ela professora.

No meio da madrugada o namorado se acorda com um som estranho vindo da sala e silenciosamente se levanta para ver se o gato estava fazendo alguma farra noturna. Infelizmente não era um felino com insônia, mas um assaltante que havia invadido o pequeno apartamento e se ocupava em roubar pequenos objetos do apartamento.

Por ser um homem forte, treinado como policial militar para o combate, atirou-se sobre o invasor e tentou segurar seus braços, sendo rechaçado de imediato pelo ladrão, que era igualmente bastante forte. Diante do confronto inesperado o ladrão resolve bater em disparada, saindo pela mesma sacada por onde havia entrado.

Ao ver o meliante se projetar pela porta entreaberta da sacada o jovem correu até o quarto e pegou a arma de serviço que estava repousando sobre o criado mudo. Segurou a pistola com a mão firme e correu para a porta para iniciar a perseguição quando sentiu um corpo projetar-se sobre si aos gritos.

Não, não era o assaltante que voltava. Era a namorada, minha paciente, que aos prantos pedia que parasse.

“Preciso alcançá-lo. É minha obrigação. Sou um policial!!! Por que deveria parar? Por que deveria ficar aqui, acovardado?”

“Porque você é negro!!”, gritou ela em desespero. 

“Você é negro, negro, não percebe?, continuou ela. Você está de camiseta e calção, e estamos no meio da madrugada. Se você sair atrás de um ladrão com uma arma e encontrar o policial da ronda em quem você acha que ele vai atirar? Quem vai parecer sendo o assaltante? Quem tem cara de ladrão, de bandido? Até mostrar sua carteira de policial já poderá estar morto.”

Um breve silêncio se seguiu entrecortado pelos soluços da namorada que ainda o prendia com o corpo. Ele a abraçou mais forte e deixou a arma afrouxar em sua mão.

Nunca havia percebido de forma tão dura a dor de ser negro. Ela tinha razão, pois nesta sociedade de castas um negro armado de madrugada só pode estar do lado do crime. Ambos choraram a dor da impotência e a tristeza de ver que a cor da pele ainda nos separa de uma forma cruel, ainda mais quando invisível.

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Grampo

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Qual de vocês resistiria a um grampo telefônico?

Quem de nós nunca disse coisas que são politicamente incorretas, obscenas e idiotas na intimidade de um bate papo telefônico?

Se houvesse pena para essas indiscrições a minha nem seria promulgada em anos, e sim em décadas. O julgamento desse tipo de atitude não pode ser feito pela nossa antipatia, mas sim pela justiça. Se você não entende como grave a violação da intimidade das pessoas… espere até alguém colocar na rede suas conversas de whatsapp.

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Mississipi

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Uma historinha…

Quatro jovens entram em uma loja no shopping sem camisa. Três brancos e um negro. Em função da contravenção a polícia é chamada. Todos são interrogados, mas só o negro é detido, espancado, humilhado e levado à prisão. Quando pergunta por que só ele foi perseguido e punido recebe como resposta: “Mas você está justificando seu ato indecoroso porque outros também fizeram? Que vergonha!!” Ele então responde: “Não, meu ato de não usar camisa pode até ser punido, o que me espanta é o fato de que apenas eu sou perseguido e espancado. Por que os meus amigos não estão presos?” A resposta dos policiais é: “Não vem ao caso“….

Nesse momento ele percebeu que não havia sido preso por andar sem camisa, que até é uma contravenção verdadeira. Ele havia sido preso por ser negro em um shopping, um “crime” muito pior, mas que ele não havia percebido.

Sua queixa não é contra a sua punição, mas a intensidade dos espancamentos diários, e a seletividade em escolher sobre quem cai a mão pesada da lei, e sobre quem o julgador apenas diz que “não vem ao caso“….

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Desprezo

Mulher braba

Escrevi um enorme texto e apaguei…

Guardei apenas a última frase: “Nunca despreze a violência de uma mulher que se sentiu desprezada por um homem”. A violência dos homens na mesma situação bem a conhecemos, e ela é trágica. Mas a das mulheres as vezes pode passar despercebida…

A violência de um homem desprezado bem a conhecemos, e ela é trágica. E para essas mulheres já existem sistemas de suporte. Minha frase se referia apenas ao fato de que é natural um homem ser desprezado por uma mulher em um baile, num pedido para sair, numa abordagem qualquer. Para um homem comum isso não é uma desonra. Levar um “não”, “estou cansada”, “sai pirralho”, “vai te criar”, “estou conversando com minhas amigas”, etc… é natural. A imensa e gigantesca maioria dos homens civilizados bota isso na conta da ousadia. “Se colar, colou. Se não der certo, vamos para a próxima“.

Entretanto, as mulheres não tem esse treinamento de milênios oferecido pelo modelo patriarcal. Eles não sabem levar “não”. Ficam contidas e se sentem humilhadas. O problema é que a revolução feminina colocou no “mercado” milhões de mulheres que acham que tem o (justo) direito de tomar a iniciativa. Tiram para dançar e até se oferecem sexualmente. Todavia, não estão ainda preparadas (como nós) a receber um rechaço por suas investidas. Ficam indignadas e, primeira atitude, desqualificam o sujeito. “Bixa“, “frouxo“, “fraco“, etc. Maior ainda é a maledicência sutil e insidiosa que vai ocorrer depois. As mulheres, se quiserem ser livres a ponto de se tornarem “caçadoras”, precisam se adaptar ao fato de que nem sempre a flecha atinge o alvo.

E a culpa não é do alvo.

PS: Eu sei que homens matam mulheres por serem desprezados, por ciúmes, por se sentirem abandonados. Sei que esse problema é muito maior. Entretanto, o fato de haver uma guerra na Síria não me impede de questionar o aumento no preço da farinha de rosca. Até porque um fato não invalida o outro.

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Terra arrasada

terra arrasada

Todas as supostas vitórias trazem consigo o germe da frustração. O que parece ter sido o ápice de uma conquista retumbante muitas vezes não é mais que o prenúncio de uma tragédia. A expulsão dos romanos da Judeia, e a libertação de um povo dominado, veio apenas alguns anos antes do extermínio, a destruição e a diáspora. Aqueles que comemoraram o arbítrio, apenas porque lhes interessa a vingança, estão semeando a brutalidade que lhes recairá no futuro.

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