Arquivo do mês: março 2022

Figurantes

Quando meu filho tinha por volta de 7 anos ele conheceu o universo dos “jogos de computador”. Eu, que vivi o apogeu do fliperama, nunca consegui ser influenciado por estes jogos – estava velho demais para ser contaminado – mas meu filho por alguns anos se dedicou aos jogos de guerra em “primeira pessoa”, onde era possível incorporar um soldado que enfrentava os inimigos em campos de batalha. Eu não gostava de jogar, mas adorava assisti-lo jogando e não me furtava de fazer alguns comentários. O mais comum – e que virou piada interna – era reclamar das matanças que seu personagem protagonizava. Eu lhe dizia: “Olha, você matou vários soldados inimigos!! Você acha que eles não tem família? Acha que eles não têm mulher e filhos? Acha que eles não tem uma casa para voltar quando você desliga o computador?”. Ele me explicava que eles não eram pessoas de verdade, e eram apenas as dificuldades que o jogo colocava para chegar até o “chefão” e vencer o jogo.

Fiquei feliz ao saber que, anos mais tarde, a minha piada sobre os “capangas” (que continha uma crítica à desumanização) um dia apareceu em uma comédia dos irmãos Zucker. Na verdade, estes jogos expõem, de forma dissimulada, uma face bem cruel da nossa sociedade – mas absolutamente verdadeira. Existem aqueles que merecem a condição de protagonistas da vida e da história, enquanto para outros esta condição não é oferecida; eles apenas merecem a condição subalterna, condenados a ser figurantes. Estes últimos são desumanizados, não contam, suas mortes não precisam ser lamentadas e são apenas o suporte para que os protagonistas possam brilhar.

Quando vejo os comentaristas da imprensa corporativa contextualizando o massacre das mulheres e crianças de Gaza, colocando a culpa das mortes nos próprios palestinos, dizendo que as mortes não aconteceriam se eles se rendessem ou parassem de usar suas mulheres e filhos como escudos humanos (uma mentira repetida mil vezes…), é inevitável trazer à memória Golda Meir. Foi ela, antiga primeira ministra de Israel, que popularizou a frase genocida: “Jamais perdoaremos os palestinos por terem obrigado nossos filhos a matarem os seus”, em conversa com Anuar Sadat, presidente do Egito. Como Israel é uma colônia ocidental, criada por invasores europeus e encravada em terra árabe na última e mais mortífera de todas as experiências colonialistas, percebi que a sociedade europeia continua a se considerar protagonista do planeta, e a periferia (em especial os palestinos, os negros africanos, os habitantes da Indochina e os “cucarachas” do Brasil) são como os capangas do jogo de computador do meu filho, cujo sofrimento e morte não contam porque ocorrem nos corpos dos figurantes no grande tabuleiro do planeta. Para eles nosso mundo continua dividido entre aqueles cujas vidas e mortes contam e os “outros”, para quem a a existência não faz diferença alguma na grande contabilidade do capitalismo.

Mesmo após termos eliminado boa parte do colonialismo em África, Ásia e Oceania, a mentalidade ocidental ainda é guiada pela ética dos colonizadores europeus que dizimavam populações nativas inteiras, dando gargalhadas com a desorientação de aborígenes que jamais haviam visto uma arma de fogo. Somos como os franceses na Argélia, os belgas no Congo, os alemães na Namíbia. Somos insensíveis às lágrimas e gritos das mães palestinas, mas questionamos a resistência palestina chamando-a de “brutal”. Não aceitamos que os figurantes assumam o controle do seu destino, usem de sua própria língua, plantem e colham de sua própria terra e conquistem sua tão sonhada autonomia.

A fala emocionada dos jornalistas também me lembra os clipes carregados de emoção que mostram soldados americanos voltando do front da Ásia central ou oriente médio, fazendo surpresa para suas mães, companheiras e filhos. Depois de destruir as famílias de líbios, afegãos, sírios, palestinos, vietnamitas, coreanos e qualquer um que ouse enfrentar o Império, eles voltam felizes e emocionados para abraçar os seus, todos lindos, limpos e loiros. As mortes que causaram nos “outros” são irrelevantes diante da felicidade do reencontro, mas foram importantes para que seu heroísmo fosse exaltado. Essa é a face mais cruel do imperialismo, e por isso deve ser combatido se desejamos um mundo com equidade e justiça para todos os povos

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O cisco no olho alheio…

Yuval Noah Harari, escritor israelense bastante popular, escreveu uma matéria ao Guardian onde afirma que “Putin já perdeu a guerra”. Seus argumentos parecem ter sido copiados das redes de TV americanas, mas chama atenção que um israelense seja porta voz deste tipo de raciocínio, que acusa a Rússia pela beligerância.

Não dá para dar ouvidos para um israelense que escreve sobre guerra, invasão de países e destruição de populações. Ora senhor Yuval, olhe a destruição que vocês promovem na Palestina com a invasão europeia e branca realizada na região desde o Nakba, em 1947. São VOCÊS que consideram a Palestina um “não-país” e os palestinos um “não-povo”. Olhe para a destruição da população que vocês oprimem, do qual o senhor é beneficiário, antes de acusar falsamente a Rússia.

Quando esse sujeito diz: “He may win all the battles but lose the war. Putin’s dream of rebuilding the Russian empire has always rested on the lie that Ukraine isn’t a real nation, that Ukrainians aren’t a real people, and that the inhabitants of Kyiv, Kharkiv and Lviv yearn for Moscow’s rule” (Ele pode vencer todas as batalhas, mas perderá a guerra. O sonho de Putin de reconstruir o império russo sempre se baseou na mentira de que a Ucrânia não é uma nação real, que os ucranianos não são um povo real e que os habitantes de Kyiv, Kharkiv e Lviv anseiam pelo governo de Moscou) ele está apenas mentindo. Uma farsa, uma narrativa claramente controlada pelo imperialismo.

A Rússia não declarou guerra à Ucrânia mesmo quando a população de origem russa estava sendo massacrada pelos nazistas que detém o poder neste país – estima-se mais de 14 mil mortos no Dombass desde 2014 (muito mais do que esta guerra aberta provocou até agora). Não declarou guerra nem quando sindicalistas e comunistas – russos étnicos – foram queimados vivos dentro do sindicato em Odessa por forças de extrema direita de inspiração nazista.

A guerra veio pela insistência dos nazistas ucranianos em apontar armas atômicas para Moscou através das promessas explícitas de Zelensky de fazer isso ao aderir à OTAN. Uma bomba dessas em Kiev atinge Moscou em 4 minutos.

NA MÃO DE NAZISTAS!!!!

A Ucrânia INICIOU A GUERRA em 2014 quando realizou um golpe de estado financiado pelos Estados Unidos – em mais uma revolta colorida – e colocou no governo um fantoche dos interesses do Império. A Rússia está se defendendo, e vai se defender até a morte. Está no DNA russo, um povo que foi invadido por Napoleão, depois pelos 10 exércitos estrangeiros (inclusive americano) que deram apoio aos mencheviques na luta contra os revolucionários bolcheviques na guerra civil e depois ainda por Hitler na II Guerra Mundial. Todos foram rechaçados, com custos altíssimos em vidas humanas. Não serão os nazistas mais uma vez que vencerão a Rússia.

Antes de decretar a derrota russa lembre que esta guerra é para a defesa russa. Sua ideia de que Putin deseja ressuscitar a “União Soviética” é pura narrativa fantasiosa para justificar os ataques à Rússia.

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Máscaras

Aliás, um dos efeitos colaterais dessa guerra na Ucrânia foi fazer caírem as máscaras de “progressistas” da esquerda americana, como Bernie Sanders. Quando se trata de proteger o Império todos tocam a mesma música. Internamente pode haver diferenças entre os “burros e os ursos”, mas para quem olha de fora são todos idênticos na proteção de seus privilégios, na defesa do “excepcionalismo americano” e na manutenção do Império.

Assim funciona nossa indignação seletiva. Somos obrigados a levantar quando um nazista se senta à mesa, mas nem um pigarro para quem solta bombas no Yemen, na Somália ou na Palestina, ou para as sanções assassinas no Afeganistão, Cuba ou Venezuela. E agora no Brasil você pode ser nazista, agir como nazista é até dormir com a foto do Führer debaixo do travesseiro. Só não pode falar ou admitir sua existência, e não pode criar um partido com esse nome. O mesmo tipo de hipocrisia que havia com os gays na minha infância.

As vezes eu fico tentando me colocar no lugar de um sírio, palestino, iraquiano ou iemenita escutando as pessoas chorando pelos ucranianos e pedindo o fim da guerra. “Oh, meu Deus, essa guerra precisa acabar!!!”. Sério? Agora? E porque só essa?

Quero ver gente colocando bandeirinhas da Somália no perfil em solidariedade. Nahh, branco matando preto ninguém reclama. Nunca o nosso racismo eurocêntrico ficou tão evidenciado.

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Representatividade

Quem é o sujeito de boné nessa reunião??? Não há um “dress code” para este tipo de encontro?

Na foto que mostra a reunião entre os representantes de Ucrânia e Rússia houve reclamações de grupos identitários de que não havia nenhuma mulher presente. A ideia é que as guerras são eventos “masculinistas” (palavra cuja definição eu desconheço) e que se houvesse mulheres a tomar as rédeas destas negociações “o resultado seria rápido, eficiente, haveria canapés deliciosos e ainda colocariam os homens para lavar a louça” (estes foram os comentários das mulheres, claro, com humor).

Há poucas horas tomei conhecimento do texto publicado na Revista Carta Capital de uma feminista chamada Esther Solano em que ela colocava a culpa da guerra não nos intrincados labirintos geopolíticos e estratégicos que se referem ao nacionalismo, fronteiras, espaços de poder, democracia, auto determinação dos povos, mas simplesmente porque esta é uma ação humana comandada por homens, e colocava a culpa desse tipo de desastre civilizatório no famigerado “homem branco de esquerda” – o “esquerdomacho”.

Não pretendo me deter no texto, que pode ser lido aqui, mas ele me parece um libelo anti masculino, uma brutal essencialização do homem como o ser que incorpora todo o mal do mundo, sendo analisado por uma mulher que não entende as razões de uma guerra e que acredita piamente que a condução de tais questões – estivessem elas nas mãos de mulheres – seria absolutamente diferente. “Mulheres jamais declarariam guerras”, pode ser a tradução de sua perspectiva.

Pois eu aconselho cuidado com a romantização e a essencialização. “As mulheres não…” geralmente é um péssimo início de frase; “os homens sempre…” também. Usando um pouco de imaginação, digam aqui como seria a delegação brasileira nessa mesa de negociações na Ucrânia objetivando acabar com a guerra? Certamente seriam enviadas as mulheres destacadas no surgimento do governo atual: Sara Winter, Joice Hasselman, Bia Kicis, Carla Zambelli… acham mesmo que fariam diferença? Seriam elas embaixadoras da paz?

A última guerra em que se meteu a América do Sul foi contra uma …. mulher, a Dama de Ferro, que sempre se mostrou tão fura e cruel quanto qualquer homem. E Hillary Clinton? Enquanto esteve à frente da Chancelaria americana 7 países foram invadidos e bombardeados. Milhares de mães no Oriente Médio foram calcinadas com seus filhos ao colo por ordem dessa mulher. E se Kamala assumir o cargo de Joe Biden, será diferente? Sim, por certo teríamos invasões e mortes no mundo inteiro, mas com um toque feminino. Entre 2010 e 2014 ela foi Procuradora-geral do Estado da Califórnia, função na qual liderou o órgão responsável por colocar centenas de negros na prisão através do doutrina da “lei e ordem”. Ou seja, uma punitivista.

Muitos enxergam diferença nos sexos que eu sou incapaz de encontrar. Mulheres são covardes e brutais…. tanto quanto homens. São geniais e nobres, tanto quanto eles. Estes podem ser tão maternais e amáveis como qualquer mulher, enquanto essa podem fazer prodígios de engenharia e ciência como qualquer varão. Falar de “essência” feminina e masculina é muito arriscado, pois estamos imersos em um oceano de patriarcado que deixa a visão inexoravelmente enevoada.

“Ahhh, mas e a representatividade?” Pois eu digo que ela é vazia se não for conectada a um propósito firme e profundo. Não nego sua relevância, mas me recuso a aceitar que a simples diversidade é a resposta para o governança ou mesmo para a solução de uma guerra. Sei o quanto ela é importante, mas veja como um parlamentar transexual famoso se São Paulo em nada melhorou a vida das pessoas desse segmento, assim como o reacionário negro e gay do MBL chegou a piorar a vida de pessoas desta cor e dessa orientação sexual na sua cidade.

Homens não querem a paz… mas tampouco as mulheres a desejam; somos seres de conflito. A ideia de que as mulheres são mais pacíficas é ridícula. Este preconceito tem tanto valor quanto dizer que “os homens são mais inteligentes porque tem mais prêmios Nobel”. Ora, ambos os casos – o pacifismo feminino e os prêmios masculinos – são resultado do patriarcado. Ofereça poder para uma mulher – Cleópatra, Messalina, Merkel, Dilma, Thatcher, Golda Meyr, Bachelet, Indira, Cristina Kirchner e tantas outras e elas vão se comportar como qualquer outro humano carregado de poder, sofrendo as pressões que este poder determina. Aliás, coloque um bisturi na mão de uma mulher obstetra e verá a mesma violência que se observa entre os homens. Por que a entrada nas mulheres na obstetrícia não diminuiu os casos de violência obstétrica? Exatamente porque mulheres, nestas posições, se comportam como a sua função determina. Seu gênero muito pouco, ou quase nada, poderá influenciar.

Coloque homens a a maternar e cuidar e em muito pouco tempo serão tão bons cuidadores quanto as mulheres; o mesmo se puser um rifle nas mãos de uma mocinha, como Liudmila Pavlichenko, a matadora de nazistas. Coloque mulheres em qualquer posição outrora ocupada exclusivamente pelos homens e rapidamente elas os alcançam.

A falta de mulheres nesta mesa é resultado do patriarcado, mas quando Argentinos e Ingleses sentaram nas mesmas condições para discutir a paz na Guerra das Malvinas o resultado não foi amoroso e maternal para os perdedores, mesmo tendo uma mulher poderosa a comandar a cena.

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Feito em casa

Temas instigantes…

“Muitas pessoas entendem a opção pelo parto domiciliar em analogia com o ensino doméstico, já que ambos desinstitucionalizam estes processos, oferecendo liberdade para que a família possa afirmar seus valores, tanto no nascimento quanto na educação. Eu acho que se trata de um equívoco, já que são coisas bem distintas. Um parto é mesmo um evento da família, e pode ser realizado em casa obedecendo-se critérios conhecidos de segurança. Já a educação tem outros valores e sua institucionalização tem um sentido oposto, e serve exatamente para retirar a criança do círculo doméstico, socializando-a e servindo de reforço à formação sua identidade e independência. A função da escola é resgatar a criança de um mundo aconchegante – mas que também pode ser dramático e ameaçador – e apresentá-la ao mundo”

Maximilian Trebreh, comunicação pessoal, abril 1986

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