Tenho sete descendentes, dois filhos e seis netos, dos quais um partiu muito cedo para o outro plano. Fui testemunha do desenvolvimento de todos eles. O engatinhar, os primeiros passos, as primeiras palavras e frases. Eu estive junto de todos eles quando nasceram e no lento processo de se ajustarem à vida. Constatei as dificuldades, as quedas, os tropeços, as vitórias e as lutas constantes, assim como as tristezas inerentes à condição humana. Com isso, acumulei uma razoável base de dados oriunda da observação do intrincado processo de crescimento infantil.
Apesar dessa experiência, sou forçado a reconhecer que pouco entendo da vida e seus enigmas. Tudo isso é ainda para mim um profundo mistério. Todavia, longe de ser um defeito, usufruo dessa incompetência com especial deleite. Cada dia no convívio com os miúdos reserva uma surpresa e uma novidade. Percebi que os conhecimentos adquiridos pela criação de várias crianças – direta ou indiretamente – não me capacitam a entender aqueles que agora percorrem o caminho que os outros já trilharam há tempos. Cada um carrega o fardo e a delícia da existência dentro do seu tempo e a partir de suas curiosidades. Nenhum deles engatinhou do mesmo jeito, falou com a mesma idade ou sorriu pelas mesmas caretas e piadas. Todos são almas distintas, com uma perspectiva especial do mundo.
Digo isso apenas porque sempre vi muitas mães e pais descrevendo seus filhos e pedindo conselhos sobre o que fazer para que a criança desenvolvesse determinadas habilidades. Minha resposta era que elas precisam, cada uma a seu jeito, de amor e atenção, além do alimento para o corpo e a proteção contra as agruras do mundo; o resto elas descobrem por si. Meus filhos e netos são fontes inesgotáveis de ensinamentos e oportunizam a redescoberta diária dos encantos da vida. As crianças são a expressão máxima da maravilha que se criou nesse pequeno e pálido ponto azul, perdido na infinita tessitura do universo.
Há alguns dias li uma entrevista do baixista John Paul Jones do Led Zeppelin em que ele afirmava que os integrantes da banda não eram amigos. “We weren’t friends”, disse ele secamente. Com isso não desejava dizer que eram inimigos, longe disso; negou que existisse qualquer tipo de animosidade, rancor ou mágoa entre eles, mas que apenas eles compartilhavam uma banda, tinham um trabalho juntos, e nada mais. Tão logo acabava uma turnê ou uma apresentação voltavam para suas casas e suas vidas.
“A questão é que nunca socializamos. Assim que saímos da estrada, nunca mais nos vimos, o que sempre achei que contribuiu para a longevidade e harmonia da banda. Não éramos amigos.”
O falecido psicanalista italiano Contardo Caligaris certa vez disse uma frase que me impactou muito durante uma de suas aulas na APPOA. Em meio a sua palestra, e questionado sobre o casamento e suas repercussões, ele respondeu de forma provocativa: “O casamento é uma instituição de sucesso. Entretanto, o único elemento que pode colocá-lo em risco é o amor. Sem este detalhe ele sempre foi a mais harmoniosa das instituições humanas”. Essa frase veio à minha mente ao ouvir a descrição de John Paul Jones sobre sua banda. Por certo que a inexistência do amor – em sua forma mais sofisticada, a amizade – seria capaz de oferecer sucesso e longevidade à banda. A amizade transtorna completamente qualquer relação de trabalho. Por isso, se acrescentarmos a este encontro uma pitada – mesmo que minúscula – desse afeto tão popular e o risco do equilíbrio se desfazer cresce exponencialmente.
Não deveria nos produzir qualquer surpresa este tipo de análise. O amor por sua potência é uma força descomunal. Quando ele se mistura com as relações puramente profissionais acaba trazendo consigo toda sorte de sentimentos conflitantes e igualmente poderosos. Ciúme, inveja, ressentimento, abandono, raiva, mágoa, etc. Não há dúvida que os casamentos insossos e puramente operacionais dos tantos séculos que nos antecederam eram muito mais consistentes e firmes do que os de hoje, onde o amor é a peça essencial. Foi o amor, a fissura bizarra da ordem cósmica, quem produziu o que entendemos por humanidade, mas ele está diretamente ligado à crise nos casamentos. Talvez ele seja o golpe definitivo para a sua desaparição, e as sociedades futuras não terão mais que se preocupar com fatiotas, grinaldas, vestidos brancos e listas de presentes.
A história do “morto muito louco” que foi manchete no Brasil – e mesmo fora daqui – e envolve uma mulher levando um homem já morto (aparentemente seu tio) ao banco para solicitar um empréstimo, me fez recordar uma antiga história ocorrida na Liga Homeopática, em meados dos anos 90 do século passado. Naquela época era nosso paciente um sujeito por volta dos 80 anos chamado Joaquim (nome fictício). Sofria de um quadro de DBPOC (doença bronco pulmonar obstrutiva crônica) decorrente de mais de meio século do uso de cigarros. Era um sujeito bem simples, separado, ex-funcionário publico. Sua ex-esposa vivia em uma casa de repouso e estava em estado terminal de Alzheimer, mas ele cobria com sua aposentadoria todas as suas despesas. Teve um único filho que morreu muito cedo de câncer, deixando uma neta adolescente que ele via uma ou duas vezes por ano.
O grande amor de sua vida era sua única irmã, mais moça que ele, uma senhora que também era paciente na Liga Homeopática e que se tornou muito grata pela melhora impressionante que o tratamento havia produzido em seu irmão. Seu Joaquim tratava essa irmã com todo o carinho e a admiração que um irmão é capaz de devotar. Falava dela e das sobrinhas com imenso afeto, admiração e, acima de tudo, gratidão. Durante muitos anos ele era “figura carimbada” nas manhãs de quarta-feira na porta da Liga Homeopática, “lagarteando”, escutando seu radinho de pilhas (sempre sintonizado na rádio Guaíba) e vestindo seu indefectível abrigo amarelo.
Depois de muitos anos de melhoras, inclusive nos aspectos emocionais (“ele deixou de ser um sujeito intragável e insuportável”, diziam os amigos), ele teve uma piora significativa do quadro respiratório e foi internado no hospital. Durante esse período internado fomos visitá-lo, mas as décadas de tabagismo estavam finalmente cobrando seu preço amargo. Depois de algumas semanas de piora crescente ele finalmente veio a falecer. Algumas semanas depois do falecimento do Seu Joaquim a irmã volta a consultar e pergunto como estava se sentindo com a morte do irmão. Ela disse que seu quadro respiratório era mesmo dramático e que sua estada no hospital foi muito desgastante. “De certa forma me sinto aliviada”, disse. Foi então que ela relatou a curiosa história oculta do seu irmão.
Quando estava ainda consciente, apesar da intensa dispneia, Joaquim pediu que chamassem a gerente do banco para criar uma conta conjunta com a irmã e com isso evitar que suas despesas com medicamentos – e até seu funeral – fossem pagos por ela. Disse que tinha um dinheiro reservado que seria suficiente para estas despesas. A irmã disse para ele não se preocupar, que tudo ia dar certo, que em breve ele ia voltar para casa, mesmo sabendo que essa hipótese era pouco provável. Com o correr do tempo o quadro, como era de esperar, piorou ainda mais. Alguns dias depois dessa conversa, a própria gerente do banco compareceu à UTI do hospital e encontrou a irmã. Disse a ela que o Sr. Joaquim havia lhe pedido para assinar documentos dando à irmã livre acesso aos seus depósitos. A irmã então concordou e pediu para que ambas entrassem no recinto da UTI. Quando lá chegaram encontraram Joaquim semiconsciente, incapaz de entender as determinações e sem condições sequer de segurar a caneta com firmeza para assinar os documentos.
“Seria criminoso fazê-lo assinar qualquer coisa, mesmo que seja para seu próprio bem. Não se preocupe com as despesas; eu pagarei tudo pelo meu irmão”. Essas foram as palavras da irmã à gerente, que apenas respondeu “É uma pena. Ele gosta muito da senhora”.
Depois do falecimento de Joaquim a irmã se tornou a curadora temporária de seus pertences. Foi ao banco com os documentos e foi atendida pela mesma gerente que encontrou no hospital. Ela a recebeu com um sorriso e mostrou a ela a conta que Joaquim tinha no banco. A irmã tomou um susto: a conta era milionária. Milhões depositados na poupança e outros investimentos. Não lembro do exato valor e até porque os valores nominais de três décadas atrás não fariam sentido hoje, mas na época eu lembro que era algo como o valor capaz de adquirir vários apartamentos. Ela não sabia como o irmão poderia ter tanto dinheiro. Depois disso, junto com seu marido, ela se encarregou de esvaziar o apartamento do irmão. Era um apartamento alugado, um JK simples no bairro Menino Deus, a poucas quadras da Liga Homeopática. Um lugar escuro e bastante bagunçado, com muitos livros, papéis velhos, documentos, móveis em mau estado e pouquíssimas roupas. No meio das gavetas encontrou um envelope pardo contendo papéis. Ao investigarem do que se tratava descobriram que eram letras de câmbio ao portador de uma grande empresa gaúcha, que ele havia comprado há muitos anos e que, depois de investigar, descobriram que valia milhões. Um tesouro escondido num JK escuro e caótico. Seu Joaquim era um homem muito rico travestido de um velho de hábitos simples.
– E o que aconteceu com todo esse dinheiro?, disse eu ainda espantado com a história do seu Joaquim.
Ela contou que foi tudo para a neta, que morava em outro Estado e tinha desprezo pelo avô. Durante anos a garota só o procurava para pedir dinheiro, mas a justiça não quer saber dos afetos: a lei determinou que ela fosse a única herdeira, recebendo os milhões do avô. Seu Joaquim era um personagem de Dickens, inclusive na aparência. Ele era uma versão moderna de Ebenezer Scrooge protagonista de “Um Conto de Natal” de 1843, que mais tarde inspiraria a criação do personagem Tio Patinhas (uncle Scrooge McDuck), por Carl Barks em 1947. Seu Joaquim era um avarento, ranzinza e pão-duro, mas que tinha na figura da irmã sua conexão com a gratidão e o afeto. A irmã foi seu porto seguro de amor e proteção durante os anos em que viveu isolado e contando seu dinheiro. Infelizmente, a fortuna que acumulou não foi deixada para quem mais a merecia mas, como bem o sabemos, a vida raras vezes é justa como gostaríamos.
No futuro só existirão solteiros e bem casados“, já dizia o psicanalista Flávio Gikovate. Creio que sim, mas apenas quando as inúmeras outras amarras que mantém juntas pessoas que não mais se desejam forem plenamente suplantadas. Uma mudança de tal magnitude, onde a plena liberdade das escolhas afetivas se tornará o padrão nos encontros amorosos, levará bastante tempo.
Digo isso porque é ingenuidade imaginar que as correntes que nos prendem são apenas externas a nós, como dinheiro, filhos, condições gerais, moradia, proteção, etc. Não, creio mesmo que a pior servidão é aquela autoimposta; é na forja do inconsciente, na configuração psíquica mais profunda onde se produzem os grilhões mais poderosos.
O isolamento me impede de visitar o meu pai. Com 90 anos, lúcido, sobrevivente de um AVC (que não deixou sequelas físicas) e confinado em casa, recebe apenas a visita da minha irmã. Desde que enviuvou há algumas semanas não saiu mais de casa. Nossas conversas são agora por telefone e, quase sempre, acabam na política. Eu “comuna”, ele um “coxinha”. Por vezes a conversa fica áspera, mas eu entendo o porquê. Ele deve pensar: “Daqui a pouco vou morrer e vou deixar esse comunista desamparado”.
Ontem foi a mesma coisa. Risadas, histórias, críticas e a espiral concêntricas sobre crise-capitalismo-Lula-comunismo. Ele se irrita com o meu idealismo, que lhe parece estéril. Eu me incomodo com sua cabeça dura para aceitar as mudanças necessárias – e inevitáveis. Por outro lado, esse confronto de ideias sempre foi uma marca da família; somos uma família de conversadores e debatedores. Ninguém fica bravo com os exageros retóricos alheios. Como ele sempre diz, “os debates se concentram apenas no terreno das ideias”.
Ontem, depois de quase duas horas de conversa animada a ligação caiu…
– Alô? Pai, está aí? Silêncio…
Resolvo ligar de novo. Ele atende.
– Puxa, tua irmã ligou e caiu nossa ligação. Ela está chegando aqui com as compras. – Não tem problema pai, eu tenho mesmo que almoçar, disse. Até outra hora. Assim que passar tudo eu e o Lucas vamos te visitar.
Ele ficou uns segundos em silêncio e perguntou: – Onde tu estás? – Ora, na Comuna. Não saio daqui há quase um mês. Estamos completamente confinados. – Na comuna? Não pode… – Por quê? – Tu foi no banheiro? Está ligando daí? Há 5 minutos atrás estavas aqui comigo, conversando na sala!!
Não consegui conter a risada… – Pai, a gente estava conversando o tempo todo pelo telefone!! – Sério? (escuto ele levantar para ver se tem alguém no banheiro). Bahhh, a conversa estava tão animada que achei que estavas aqui comigo. Diz isso e cai na gargalhada. Eu também…
Acho que envelhecer bem é conseguir rir até das suas próprias limitações….
Minha experiência sobre “trocar de opinião” sobre alguém é que tal transformação na percepção do outro nunca se dá em nível racional. Qualquer explicação lógica sobre as virtudes de um desafeto ou as falhas de alguém que admiramos – em nível cognitivo – é absolutamente inútil e infrutífera. A mudança só ocorre num nível muito mais profundo, necessariamente afetivo e emocional.
Lembro sempre da história que o meu pai contou sobre seu encontro com o governador Ildo Meneghetti nos anos 60. Na época meu pai era um jovem funcionário das centrais elétricas do RS e com ideias de esquerda. Ora, quem não? Ildo representava a política conservadora de direita udenista (UDN) e era o inimigo da esquerda local. Para melhor compreensão, seria como imaginar um sujeito de esquerda como eu se encontrando com Gilmar Mendes. Meu pai foi à reunião marcada com o governador cheio de pedras para atacar sua postura política e quando começou a reunião já tinha engatilhados na ponta da língua argumentos ferozes contra o chefe de estado.
Passaram-se os minutos e o contato pessoal com o governador “direitista” foi revelando um sujeito que se afastava do personagem construído por anos de animosidade. Afável, gentil, democrático e bem humorado. Meu pai o descreveu como “encantador”. Para um “esquerdista” isso seria uma ofensa. Entretanto, ele percebeu que a mudança na visão que tinha do velho líder só foi possível graças a este contato face a face. Nenhuma explicação seria capaz de produzir tal efeito.
A energia complexa dos encontros pessoais é que nos possibilita essa mudança que, como dito anteriormente, só pode ocorrer pela via do afeto.