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Voltar pra casa…

Subitamente “Manhã de Carnaval” é interrompida com dois (talvez três) estampidos secos, que cortaram a harmonia do nosso canto, cruzando o vazio escuro da noite, interrompendo nossos glissandos e deixando o silêncio como rastro. Por alguns segundos o acompanhamento ficou sem a melodia a lhe guiar.

– Um escapamento de moto, disse Claiton, que acabara de afirmar a “beleza da manhã” nas palavras de Luiz Bonfá.

Mantivemos o silêncio por mais alguns instantes, para ver se haveria mais surpresas, mas por ora a noite não tinha mais nada a nos declarar. Mudamos de assunto, cantamos “Canto em qualquer canto”, sorvemos o último gole de cerveja e raspamos o prato de bolo que Lúcio nos trouxe. O ensaio do “DaBocaPraFora” se encerrava, e combinamos nos encontrar em dois dias para cantar no Instituto de Artes.

Depois das despedidas na casa de Luciane coube a mim, mais uma vez, a agradável tarefa de levar Gica e Elba para suas casas. Entramos no carro e imediatamente selecionamos a trilha sonora de nossa curta trajetória. “Almondegas” seria o prato da noite, em preparativos para o show de reencontro do grupo que ocorreria em duas semanas.

Foram necessários apenas 50 metros em nosso caminho para que as coisas, por fim, fizessem sentido. Uma viatura da polícia bloqueava nossa passagem. Alguns metros adiante um corpo jazia no asfalto duro da noite quente.

– Eram tiros, dissemos, quase ao mesmo tempo, como se a ficha caísse em uníssono.

– Vou ter que dar a volta, disse, enquanto a crueza da cena era digerida por todos e o carro desviava da tragédia.

Depois de alguns momentos Gica nos disse, com uma voz pesada e séria:

– Alguém não vai voltar para casa esta noite.

Ficamos em silêncio por alguns momentos. Ela continuou,

– Sabe, não importa o que houve, se era uma boa pessoa ou se era um criminoso. Não sabemos se a vítima era jovem ou idosa. Por pior que fosse, esta pessoa tinha família, irmãos, pais talvez. Foi pequeno, criança, brincou na chuva como todos nós; teve sonhos e alegrias. Mas hoje não vai voltar para casa.

Mantivemos nosso silêncio de reverência. No carro havia um pai, duas mães e três avós. Todos nós temos ideia do que seja o vazio de um filho que não volta, de uma espera angustiante e o som metálico e tenebroso de um telefonema trazendo a pior das notícias. Todos entendemos a tristeza de perder, pois por certo já amamos o suficiente para entender o quanto pode doer a falta de alguém.

Seguimos nosso caminho de volta para casa, para os nossos amores, escutando nossa música, lembrando dos filhos e netos e com nossa mente conectada a alguém que, esta noite, não vai voltar para casa.

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O Troll da Comuna

Eu procuro selecionar bem os filmes que vou assistir com meus netos. Geralmente escolho filmes de aventura, com crianças como protagonistas, onde podem ser observadas inúmeras agressões às mais elementares leis da física, mas procuro evitar coisas que dão medo, como acidentes ou mortes, ou cenas que contenham situações absolutamente nojentas, como…. beijos.

De qualquer forma, o neto do meio, que recentemente fez 7 anos, ainda faz muitas observações engraçadas durante as nossas sessões de cinema. No filme que vimos esta tarde o pai da protagonista – um velhinho cientista, genial e incompreendido – acaba morrendo, mas fica provado que sua tese estava certa desde o princípio (claro). Quando ele morreu meu neto disse:

– Ele está de olhos abertos, vovô. Nos filmes quando as pessoas morrem elas fecham os olhos. Acho que ele não morreu.
– Bem, neste caso, ele morreu mesmo… sinto muito. Mas gente velha morre, isso acontece frequentemente quando a gente envelhece.
– Morreu? Hummm, mas só no filme né?
– Sim, só no filme. Eles normalmente não matam os atores durante os filmes, só quando o ator é muito ruim. Aí, quando tem muita reclamação, eles fazem prá valer.

Ele para e olha bem sério para mim. Leva uns 4 décimos de segundo e percebe a comissura direita dos meus lábios se retorcendo, o que sempre denuncia uma mentira.

– Ahhh vovô, para de mentir. Claro que eles morrem só no filme. Imagina que as pessoas iam morrer…. de verdade!!

Seria um egoísmo brutal de qualquer ser humano, mas eu confesso que adoraria muito que o tempo congelasse e eu pudesse conversar com os meus netos assim por toda a eternidade.

(Filme “O Troll da Montanha”)

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Regras

Quando meus filhos eram pequenos eu também era muito jovem; antes que eu chegasse nos 30 ambos já eram alfabetizados. Agora, observando as brincadeiras dos meus netos, descubro que o mundo deles é baseado na produção de regras e limites. Qualquer jogo ou disputa é precedida de um extenso desfiar de regras, do que pode ou não pode, do que é lícito e o que é proibido.

“Vamos fazer que a gente era transformers, mas tu não pode me atacar e só pode usar as armas comuns, e eu posso usar esses poderes aqui”. Eu fico encantado com esses diálogos pois eles são a encenação lúdica dos dilemas angustiantes que carregam em sua adaptação ao mundo. Tudo depende se pode, se foi combinado, se vale, se deixam, etc. É com o eles enxergam o mundo: um lugar cheio de interdições civilizatórias chatas e incômodas.

Na minha juventude eu fui esmagado pelo peso torturante das ideias, algo que me envolveu de forma completa e onde me joguei de maneira compulsiva. Não tive tempo e/ou sabedoria para saborear essas lições maravilhosas com meus filhos, pelo menos não o quanto deveria. Hoje, já consigo parar e escutar dos meus netos a beleza destes encontros, saboreando a dor e a delícia que vivenciam enquanto crescem.

Quero ter saúde só para curtir essas maravilhas mais um pouco…

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Papel carbono

Lembrei da história de dois garotos de 5 e 6 anos que abrem uma gaveta na casa do avô e descobrem uma folha de “papel carbono”.

– Pra que serve isso vovô? perguntam.

Sem dizer nada o avô corta uma folha branca ao meio e coloca o papel carbono entre as duas partes. Com uma caneta desenha um rosto na folha de cima. Olha para os netos e diz:

– Estão preparados para ver um milagre?

Os dois arregalam os olhos e balançam a cabeça afirmativamente. O avô levanta lentamente a primeira folha junto com o papel carbono e mostra a imagem exata do seu desenho na folha de baixo.

– Uau vovô!!! Que mágica é essa??? Faz de novo!!!

Vovô sabe tudo….

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Filhos, quando

Tive filhos muito cedo. Fui pai aos 21 anos, mas sei que o capitalismo não aceita mais estas escolhas. “É cedo demais, precisa terminar os estudos”, dizem. Depois se estabelecer, fazer mestrado, doutorado, viajar e conhecer o mundo. Filhos se tornaram acessórios e perderam a prioridade. Devemos ainda ter filhos? Creio que sim, mas sei que pela primeira vez na história minha opinião pode ser contestada. Porém, para além da decisão de tê-los outra pergunta se impõe: “Ok, mas quando?

Muitos dirão: “Apenas quando tiver maturidade e condições (financeiras) para esse empreendimento“.

Isso só vai acontecer para a classe média bem depois dos 30 anos. Muitos se aproximam perigosamente dos 40 anos, quando os riscos genéticos se associam à natural queda da fertilidade. Assim sendo, do ponto de vista genético, orgânico e fisiológico, a época mais adequada para ter filhos é a terceira década, mas não é a mais escolhida por fatores culturais. Mesmo sendo socialmente mais seguro, ter filhos mais tarde é muito pesado.

Tive meus filhos ao acaso, por descuido, mas creio que se não fosse assim teria logo depois. A paternidade sempre foi um objetivo primordial na minha vida. Hoje percebo que o que à época pareceu “azar” foi, em verdade, muita sorte. Devo muito do que sou ao aprendizado com meus filhos. Tive ainda a chance de ser avô aos 52 anos, e ter tempo e saúde para ajudar na educação dos meus netos. Quando vejo amigos de quase 50 anos encarando a dureza da paternidade – com muito menos energia que eu tive – só posso sentir pena. Não é fácil e demanda muita força e dedicação. Por isso digo que a melhor época para ter filhos nessa sociedade é quando guardamos a energia necessária para uma tarefa de tamanha magnitude.

Aliás, ao dizer que tive filhos “por descuido” ou , “ao acaso” cometo uma simplificação, ou mesmo uma mentira. Essas ações são sempre carregadas de desejo, seja ele inconsciente ou não. Há sempre uma volição escondida sob a tênue camada de racionalidade que nos abriga de medos ancestrais. Excetuando-se os casos de violência, sempre há intenção nesses deslizes. A pulsão de vida não se importa muito com nossa frágil racionalidade. Sua força e potência é necessária para a manutenção da vida e, portanto, não seria essa conquista tão recente forte o suficiente para ameaçá-la.

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Netos

avos

Meus netos são ilhas de alegria e esperança em uma vida aguerrida, que olhando de longe parece um Rio Doce pós-Samarco, cheio de impurezas e detritos. Se eu não pudesse ser avô faria isso mesmo: andaria de pela cidade, solitário, a pé ou de ônibus, todos os dias e me ofereceria para casais ou moças simpáticas a minha disponibilidade de ser avô.

Aliás, reclamo há muitos anos da falta que me faz esse substantivo. A paternidade é a qualidade de ser pai, assim como a maternidade se refere às qualidades maternas. E como diz para avô? Pois se me fosse negada a possibilidade biológica de ser avô eu ofereceria a minha “avozidade” para um casal mais velho cujos pais já se foram. Assim essas crianças não seriam privadas do melhor exemplo de vida que podem lançar mão: a sabedoria açucarada de um avô.

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