Arquivo da tag: cuidado

Avós

Vi em uma postagem sobre a terceira idade uma pesquisa controversa sobre as “atividades de lazer” dos velhos. Muitos poderiam pensar que “cuidar e conviver com netos” estivesse nos primeiros lugares, mas esse não foi o caso. Em primeiro lugar estava “ler” (acho difícil que esta pesquisa tenha sido feita no Brasil) em 4⁰ lugar estava viajar. E cuidar dos netos, qual a posição nesta pesquisa? Pois estava em 18⁰ lugar.

Claro que estes resultados só podem ser levados em consideração ao conhecer a pesquisa e saber como as perguntas foram feitas. “Cuidar de netos” é uma tarefa, jamais um hobby. Conviver mais com esta geração pode ser fonte de prazer para os velhos, e também uma tremenda sobrecarga, e a diferença vai estar na materialidade das condições econômicas. É muito diferente cuidar de netos por um tempo determinado – e com espaço, tempo livre e condições – do que ter a obrigação de vesti-los, educá-los e alimentá-los diariamente porque os pais estão trabalhando. Além disso, quando se trata de questionar o desejo de ter filhos e, depois deles, os netos, é importante atentar para o fato que estes temas estão ancorados nas camadas mais primitivas do inconsciente. Não se trata de uma questão racional e objetiva, que pode ser decidida analisando uma planilha, mas algo que nos obriga a questionar valores, e estes são subjetivos por definição. Desejar ter filhos e netos é uma questão que não é passível de discussão, a não ser para, por meio de uma análise profunda, procurar entender as razões para desejá-los ou não. A ninguém cabe discutir o peso da paternidade ou da maternidade para o outro, muito menos o prazer de conviver com os netos.

Entretanto, hoje em dia já existem dados objetivos sobre o tema. É sabido que a convivência com os netos aumenta a saúde, o bem-estar e a longevidade dos velhos. O convívio com a geração mais jovem oferece aos idosos sentido, direção e motivo para continuar vivendo – e bem. Muito disso foi estudado no “Efeito Vila” (Village Affect) quando os fatores que levam à longevidade foram analisados em comunidades onde existem muitas pessoas centenárias. Descobriu-se que dar aos velhos convivência com pessoas da mesma idade e relevância na sua condição de “sábios” orientadores das crianças, aumentava seu prazer de viver e, portanto, seu tempo de vida. Por esta razão, ao lado dos valores subjetivos da nossa relação com a maternidade, a paternidade e a “avosidade”, existem elementos demonstrando que a proximidade entre estas gerações é positiva para os jovens – que adquirem experiência e uma percepção mais alargada de mundo – e para os idosos – que recebem dos netos o estímulo para uma vida mais longa e produtiva.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Nunca mais

Há muitos anos uma paciente me contou que, algum tempo após se casar, viu seu marido desaparecer por várias horas. Quando confrontado, a explicação que deu de onde estivera não foi muito convincente. Uma amiga sua havia desaparecido na mesma hora, com uma explicação igualmente frágil, e ela imediatamente juntou as histórias. Na sua cabeça, mesmo que ambos negassem, algo havia ocorrido. Ela decretou o fim do seu casamento e assim o fez. Anos mais tarde, quando perguntei a ela o quanto de certeza tinha sobre aquele evento, e se considerava que realmente houve um encontro amoroso, ela me deu uma resposta muito significativa.

–  Não sei e não importa; hoje tenho certeza de que este fato não foi decisivo. O casamento havia terminado meses antes, e eu apenas buscava uma boa desculpa para dar fim àquela relação. Aquele fato – e só agora tenho essa clareza – serviu de forma oportuna para este fim. Mas foram necessários muitos anos para reconhecer essa verdade.

– Por que, então, seu casamento havia acabado? Se é que você sabe….

Ela suspirou e tentou colocar o sentimento em palavras.

–  A admiração se foi. Eu creio que o amor se sustenta por cuidado e admiração. Existe amor quando admiramos algo no outro: coragem, inteligência, beleza física, posição social, etc, algo que nos faz reconhecer uma virtude. Amar também é um compromisso de cuidado. “Quem ama cuida”, sabe? Eu deixei de admirá-lo porque ele não pareceu ter qualquer conexão com meu filho, nosso filho, e isso foi determinante. Sua distância e seu desinteresse mancharam a visão que tinha dele; estas falhas secaram a fonte de admiração que tive por tantos anos. Não houve nenhuma briga, nenhuma voz se levantou, nenhuma raiva; apenas uma pequena vela se apagou em meu coração, deixando tudo escuro.

Colocou as mãos nos joelhos e baixou os olhos para continuar

–  Hoje eu penso naquele fato mal explicado como um alivio; eu finalmente poderia dar corpo a um sentimento etéreo, diáfano, inexplicável e sujetivo. Durante muito tempo eu tive medo de confessar a ele minha infelicidade e receber como resposta um cliché desesperador: “Mas o que eu te fiz? Não te falta nada em casa. Eu nunca levantei a mão e nunca te tratei mal. Diga o que eu fiz!!”. Eu não teria nada para responder, pois não haveria como mostrar a ele o vazio que eu carregava no peito.

Eu achei a historia dela muito pedagógica, e a carreguei por muitos anos. Pensava nela sempre que tentavam me explicar a razão por terem rompido com alguém e fiquei convencido que nossos sentimentos são fugidios, enganosos, traiçoeiros e muitas vezes se escondem por detrás de fatos corriqueiros, pois admitir as reais motivações de nossas ações seria insuportável – ou pelo menos embaraçoso. É difícil admitir que nossas escolhas e desistências são por vezes causadas por egoísmo ou oportunismo, e por isso colocamos acontecimentos banais para carregarem por nós essa culpa.

Por outro lado, estas despedidas são sempre muito tristes. Já tive oportunidade de pensar sobre amigos que estiveram muito próximos e que, subitamente, vi desaparecer qualquer admiração. Nessas ocasiões meu sentimento sequer era de raiva, mas de luto, como a me defrontar com um triste adeus. “Não poderei jamais voltar a ser amigo dessa pessoa, nunca mais”. Sei que algumas histórias se modificam através do perdão, mas também sei que os vasos quebrados não retomam sua forma original. Algumas amizades lamento profundamente terem desaparecido do meu horizonte, mas reconheço que estas perdas são inevitáveis e fazem parte da trilha dolorosa e cheia de percalços que constitui nossas vidas.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Os Homens e o Cuidado

A primeira grande briga que tive contra o identitarismo na pauta da humanização do nascimento foi quando afirmei que os homens também poderiam atuar como doulas, desde que a gestante assim o quisesse e aceitasse. Por causa dessa simples afirmação, movida por um desejo de equilíbrio entre os gêneros, fui atacado e cancelado sem dó, acusado de “machismo”. Justificavam este cancelamento afirmando que os “homens estavam invadindo um espaço feminino”. Respondi explicando que nos últimos 50 anos tudo o que vi na sociedade foram mulheres invadindo “espaços masculinos” em todas as áreas da atividade humana, desde médicas até juízas de futebol, passando por pilotos de avião e presidentes da República – o que deveria ser saudado por todos. Não seria justo que os homens também pudessem se aventurar na seara do cuidado? A luta contra o essencialismo não deveria ser uma via de duas mãos – ou uma faca de dois “legumes”?

De nada adiantou minha resposta; fui xingado, ofendido e cancelado. “Como ousa?“, diziam algumas mais furiosas. Pois se há algo que me constitui é a ousadia. Não tenho problema algum em regar inimizades em nome da defesa de ideias honestas e sinceras – mesmo correndo o risco de estar errado. Não levo estas coisas para o terreno pessoal, mas já passados quase 20 anos ainda acho que minha proposta continua correta. A tese contrária à minha era de que “as mulheres foram desconsideradas por milênios, impedidas de fazer tarefas reservadas aos homens. Não seria justo que as poucas coisas reservadas a elas – como o cuidado – fossem agora divididas com quem já controlava quase tudo”.

Respeitosamente discordei. Acredito na lei biológica que diz ser o hibridismo uma característica que fortalece as espécies. Da mesma forma, sociedades com diversidade de gênero nas tarefas comuns aprendem com a diferença de perspectivas que homens e mulheres podem oferecer. A paralaxe que se produz aumenta nossa capacidade de entendimento dos fenômenos e auxilia na resolução de dilemas. Uma mulher que atua em áreas outrora dominadas por homens oferece mais qualidade a este trabalho e ao mesmo tempo aprende com esta nova função. Homens que atuam no cuidado – de doentes, crianças, velhos, gestantes – também cooperam com uma maior diversidade de compreensão do trabalho enquanto se nutrem com o aprendizado que recebem em seu labor.

Quando estive na China havia uma propaganda na TV sobre novas iniciativas de saúde governo. Uma delas era a incorporação de obstetras do gênero masculino na atenção pública ao parto. Na propaganda um marido avançava para atacar um médico quando ele se aproximava para examinar sua mulher. Uma enfermeira intervém e explica que ele é um obstetra, e que não teria nada a temer. Para aquela cultura, a ideia de um homem examinando as partes íntimas de uma mulher era tão estranha quanto o era para o ocidente no final do século XIX. Hoje parece estranho e bizarro um “doulo”, mas talvez sejam barreiras que o tempo vai desfazer. Como saber?

Eu sou testemunha direta desse processo. Vivo ao lado de 5 netos que são constantemente cuidados pelos seus pais homens. As tarefas de cuidado na Comuna são divididas de forma muito equânime, excetuando-se a amamentação. Posso constatar a qualidade de amor paterno que os meus netos recebem e o quanto isso é fundamental na formação ética que recebem. Para um velho, como eu, que foi criado em uma divisão sacrossanta de tarefas domésticas esta foi uma grande revelação. Ver a pequena revolução do cuidado foi um grande presente que a vida me deu. Por outro lado, existem resistências muito fortes, como esta da qual fui vítima. A psicanalista Vera Iaconelli, em um recente artigo, fala da dificuldade de garantir aos homens esta posição:

“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.(…) Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”

Para que a sociedade esteja legitimamente no caminho da equidade é fundamental reconhecer esta angústia feminina – e por vezes um rechaço explícito – em relação ao cuidado feito pelos homens com a mesma seriedade que entendemos a relutância destes em assumir a posição de cuidadores, onde será necessário muito mais do que habilidades técnicas e força física – que por milênios foram exaltadas como superiores – mas o desenvolvimento de novas aptidões como paciência, delicadeza, afeto, docilidade, compreensão dos limites, carinho e amor incondicional.

Sim, homens podem ser doulas; mais ainda: podem exercer as funções de cuidado com seus filhos, netos e avós; com os doentes, os acamados, os bebês e todo aquele que necessite da “fraternidade instrumentalizada”. Por mais que a ciência tenha adentrado no âmago das células ela jamais foi capaz de afirmar que o gene do amor se situa apenas no cromossomo X.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Histórias Pessoais

A Criação das Avós

Existem muitas teorias para explicar a existência da menopausa. Afinal, essa é uma dúvida válida: por que poderiam os homens manter sua capacidade reprodutiva até o fim da vida enquanto as mulheres a teriam até meados da sexta década? Por que oferecer aos homens uma possibilidade maior de disseminar seus genes do que às mulheres? Por que algo tão caro à vida como a reprodução é abruptamente interrompido nas fêmeas humanas – mas não nos machos?

A melhor resposta que eu conheço se chama “fator avó”, que conheci pela primeira vez no livro “Birth” da paleoantropóloga americana Wenda Trevathan. Esse processo de “produção de avós” supõe que as mulheres entram na menopausa para, liberadas do peso das próprias gestações e maternagens, poderem se dedicar à sobrevivência dos seus netos e, assim, da própria comunidade onde estão inseridas. Como esse cuidado era uma tarefa quase exclusiva das mulheres, interromper sua capacidade reprodutiva facilitaria esta nova função social, deixando-as livres dos cuidados com seus próprios filhos para dedicarem-se à geração seguinte.

(revi)Vendo a ação das avós nos cuidados intensivo junto aos netos – e de forma muito próxima – pude perceber com clareza como esta tarefa é complexa, estafante e só pode ser realizada com uma quantidade enorme de habilidades e capacidades adquiridas por aprendizado não formal, que as mulheres aprendem no transcurso de suas vidas e pelas suas próprias experiências prévias como mães, tias, irmãs e filhas. A quantidade de informações, ideias, saberes e conhecimentos de várias áreas (puericultura, amamentação, nutrição, psicologia, suporte emocional, etc.) é vasto e impressionante, e não poderia ser diferente, já que se debruça sobre habilidades que garantem sobrevivência de seres tão frágeis quanto os recém-nascidos.

Testemunhando a riqueza dessa relação avó-bebê é possível, com um pouco de imaginação, entender que a presença de uma avó ajudando no cuidado dos netos pode significar a diferença entre a vida e a morte em contextos de miséria, guerra, fome aguda, desastres naturais, etc. Se o surgimento da menopausa realmente ocorreu para a criação de avós, essa passagem na história pessoal das mulheres precisa ser valorizada, ritualizada e homenageada, pois é uma das estratégias mais eficientes de sobrevivência produzida pela cultura humana.

Às vovós todo o meu respeito e minha reverência. Quem ainda tem a bênção de ter avós ao seu lado, pense nelas com carinho e reconheça o quanto foram – e são – fundamentais na sua vida.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Pensamentos

Vaidades

Há alguns anos eu vi uma cena que até hoje me faz refletir. Nela havia um fusca estacionado no meio fio, enquanto um jovem se ocupava em lhe dar um banho de mangueira e passar uma esponja com sabão. Nada mais singelo e banal, não fosse o fato de que esse fusca era o carro mais enferrujado que já existiu sobre o planeta. Era todo amassado e com marcas gigantes de ferrugem que chegavam a carcomer a carroceria até atravessar em vários pontos. Era um caco velho, mas o jovem o estava cuidando, ajeitando e deixando limpo com todo o carinho, como se fosse um BMW.

Diante da cena tocante eu me perguntei em solilóquio: “que diferença faz estar limpo um carro TÃO deteriorado?”

Curiosamente eu sempre lembro dessa cena quando me olho no espelho e começo a pentear meus “cabelos”…

1 comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Amor romântico

Não acho que amor romântico seja uma “ilusão”, acho apenas que ele ele é um fetiche que tem tanto valor quanto bunda grande, seios voluptuosos, carros esportivos ou peito cabeludo. Acreditar que ele é o “verdadeiro amor” é um erro; ele é tão somente uma forma de amar.

Para mim o amor se resume em três elementos básicos: desejo, cuidado e admiração. A forma como você vai organizar estes sentimentos pode variar infinitamente, mas se eles não estiverem presentes eu penso que uma outra palavra precisa ser usada.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos