Arquivo da tag: essencialismo

Contradições

Por muitos anos fui atormentado por esta contradição: o movimento de humanização do nascimento se adapta – e é mais bem acolhido – entre conservadores. Durante décadas eu vi parteiras americanas conectadas com grupos cristãos de caráter extremamente conservador e achava bizarro que assim o fosse. Em minha cabeça comunista eu pensava: como pode ser possível que um ideário que me parece libertador e conectado aos direitos humanos mais básicos pudesse ter ressonância com mulheres à direita no espectro político?

A resposta que pude elaborar – ainda que parcial e incompleta – se encontra no fato de que a humanização do nascimento sempre colocou uma enorme importância na maternidade e na amamentação, funções especificamente femininas que os movimentos feministas sempre trataram com reserva – para não dizer, contrariedade. Para estes grupos a emancipação da mulher passa pela liberdade econômica, a competitividade em campos outrora dominados pelos homens e o poder social conquistado na arena das disputas profissionais. Mulheres queriam o dinheiro e o poder para comprar sua “alforria”, sua independência, para serem donas do seu destino. Por certo, não há como criticar seu desejo legítimo.

Todavia, parto, nascimento, puerpério e amamentação jogam as mulheres no universo de sua biologia, nos compromissos ancestrais com a espécie, no corpo, na sobrevivência, na “dívida” que as mulheres tem com sua raça. Impossível não entender o quanto esse mergulho na essência feminina mais bruta e primitiva significa um anteparo às suas legítimas aspirações de autonomia.

Desta forma, qualquer movimento que tente debater, esclarecer, problematizar e questionar a suprema invasão tecnológica do nascimento contemporâneo “desnaturado”, ou seja, retirado da natureza e da integralidade destes processos, estará funcionando como um anteparo à utopia libertária da mulher, pois estará enxergando seu corpo através de um prisma mais ligado à sua natureza e sua essência.

Levei anos tentando entender e lidar da melhor maneira possível com estas contradições, mas creio que a compreensão histórica dessas lutas é sempre uma ferramenta fundamental para o seu entendimento.

Deixe um comentário

Arquivado em Parto

Crime

Um jovem, cuidado por um padrasto militar e explicitamente nazista, pega armas do pai (CAC), vai para dois colégios munido de armamento pesado e mata várias pessoas. Depois disso volta para casa e vai para a praia com a família. Parece um enredo de uma peça de Nelson Rodrigues, mas é apenas o fato ocorrido na cidade de Aracruz, no interior do Espírito Santo. Apesar de ser algo pouco comum no Brasil é algo que ocorre diariamente nos Estados Unidos (school shootings), o país que mais produz este tipo de ação destrutiva. Parece que as iniciativas de distribuição de armas protagonizada por Bolsonaro estão desde já mostrando seus resultados.

Diante da barbárie desta ação, e a frieza com a qual foi conduzida, nos perguntamos: Por quê?

Parafraseando Tolstói, “As pessoas que não matam o fazem por uma única razão; as que matam o fazem pelas mais diversas razões”. As que não matam tem estruturas psíquicas – muito mais do que a lei – que as impedem de tirar a vida de alguém. Mas todas as explicações que eu poderia dar para o fato de alguém matar um semelhante se encontram confinadas apenas ao espectro da neurose; não há como me identificar com alguém que circula na perversão. Estas razões são para mim são um mistério.

Para alguns a resposta é simples: “São criminosos brutais. Gente do mal. Que se entendam com a lei”. Neste caso, para que debater? Coloquem logo em uma jaula. Pronto, o problema está resolvido. Simples, não? Mas com esta simplificação não teremos mais a necessidade de abordar estes casos através do cientista social, do criminologista, da assistente social, do psicanalista e do psicólogo. Precisamos apenas sistema judiciário e carcereiros. Ahhh… e se o espancador não for da cor “normal” a gente sabe como o judiciário atua, não?

Veja, esse é o pensamento clássico punitivista, um modelo moralista que entende as pessoas de uma determinada localidade (cidade, país, planeta) como divididas entre dois grupos essenciais: pessoas “do bem” e pessoas “do mal“. Todo mundo conhece um bolsonarista que usa essa perspectiva e essa divisão da sociedade. Nessa lógica a aplicação da lei e a segregação (ou mesmo eliminação) das pessoas “do mal”, com eficiência e precisão, determinará que na sociedade (e em liberdade) sobrem apenas as pessoas “do bem”. Assim, a lei depura “o cesto que contém maçãs podres”.

E aqui está nossa dose diária de essencialismo moralizante. Esse é o pensamento neoliberal de direita, de gente de bem, armada, que atira em assaltantes, criminosos, traficantes etc. Quem pode dizer que estão errados?

Bem, eu digo. Se estes sujeitos são criminosos – e precisamos contê-los – isso não impede que sejam entendidos em suas motivações. Pelo contrário, precisamos levar a fundo a pergunta que é fundamental: “O que leva alguém a matar…” pois sem essa resposta faremos o mesmo que os americanos, que transformaram a América Livre no “país dos prisioneiros”, um lugar onde quase 2.3 milhões de pessoas estão encarceradas a um custo de mais de 50 bilhões de dólares anuais, sendo que 200 mil desses presos são mulheres e mães. Ou mesmo o Brasil, onde 920 mil pessoas tem privação da liberdade. E de que adianta esse aprisionamento em massa? Do ponto de vista da eliminação da violência NADA. As ações punitivas tem resultados pífios. O crime é muito mais consequência do que causa. Colocar gente na prisão apenas abre vaga para novatos aqui fora…

Um sujeito que espanca talvez peça socorro. Outro está reproduzindo a única matriz de relacionamento que aprendeu na infância. Outro é psicopata. Aquele outro se vingou de um espancamento que recebeu previamente. Cada sujeito espanca por sua história e suas dores. Mulheres são as maiores espancadoras de crianças – mas a gente encontra justificativas com muito mais facilidade, não? – e também elas precisam ser entendidas para podermos curar a ferida da violência doméstica em sua origem, e não na ponta do iceberg – a pancada explícita e pública.

Dizer que estes sujeitos são criminosos é a típica meia-verdade, porque quem furta uma blusa na loja do centro também é ladrão, assim como a mulher pobre que rouba comida para dar aos filhos famintos, mas a história por trás desses furtos muitas vezes pode nos fazer entender a lógica que os motivam. E sem entende esta lógica jamais conseguiremos prever que novos crimes ocorram, exatamente porque desconhecemos a fonte de onde brota. Por trás dessas histórias por certo estará a estrutura perversa da nossa sociedade, a falha do capitalismo em oferecer justiça social e equidade e sua decadência espalhafatosa, que faz surgir em várias partes do mundo a sombra monstruosa do fascismo e, aqui no Brasil, sua vertente mais excludente e violenta: o neonazismo moreno brazuca.

Desta forma, sem entender o sujeito criminoso e o contexto político, econômico e social que o envolve qualquer abordagem será parcial. Prender o criminoso, seja ele o espancador, o assassino, o ladrão pode ter o efeito de estancar a hemorragia temporariamente – e por isso não podemos abrir mão da repressão ao crime – mas nada faz para impedir que novos cortes ocorram na carne da sociedade. Somos uma sociedade perversa; como esperávamos que os sujeitos que nela se criam não tomassem a perversidade como um signo a seguir?

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

O Corpo da Mulher

O Corpo da Mulher, por Dráuzio Varella

“Mas, é na gravidez que fica demonstrada a superioridade fisiológica do organismo feminino. Produzem apenas um óvulo, enquanto nos obrigam a ejacular 300 milhões de espermatozoides, para que se deem ao luxo de escolher o mais apto.”


Desculpem, não consigo ver nada de positivo vindo desse sujeito, e não é de agora. Falar que o organismo feminino é “superior” ao masculino é uma profunda tolice. Em verdade, dizer que um gênero (ou uma etnia) é superior ao outro tem o mesmo sentido de discriminação que tanto combatemos. Isso é sexista, mesmo que pareça beneficiar o gênero que em nossa sociedade é vítima de tantas violências. Dizer que o organismo das mulheres é “superior” ao corpo dos homens significa o mesmo que dizer que o corpo do leão é superior ao da leoa por ser “maior”, ou que o do elefante é superior pelas portentosas presas de marfim que ostenta.

Isso é absurdo, e a luta pelo respeito às mulheres e sua fisiologia não pode usar este tipo de argumento – que mais tarde pode cobrar caro ao exigir coerência. Não existe “superioridade”, mas complementaridade no que se refere aos gêneros. Para enaltecer a fisiologia feminina não é necessário comparar com o organismo masculino e desmerecê-lo. Bastam cinco minutos de estudo sobre a fisiologia da espermatogênese e os efeitos da testosterona para ver a maravilha do corpo masculino, tão perfeito quanto o feminino.

Ninguém se torna mais rico chamando de pobres os que o cercam. As maravilhas do corpo feminino não se tornam mais fulgurantes depreciando as características físicas e psíquicas dos corpos e mentes masculinos.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Liberdade, liberdade

Recordo que há alguns anos escrevi um artigo que falava criticamente do racismo que sobrevive no nosso meio e das suas conexões com a escravidão no Brasil. Para ilustrar o texto coloquei uma imagem da internet com um torso negro masculino envolto em uma grossa corrente. Recebi alguns elogios pela iniciativa (um obstetra falando de racismo institucional não é muito comum), mas no dia seguinte um famoso grupo identitário virtual me escreveu dizendo terem gostado do texto, mas que não aprovavam a imagem. Disseram que era hora de desvincular os negros da escravidão. Respondi explicando que o texto falava explicitamente da escravidão e suas repercussões, quase um século e meio após sua abolição, mas elas ficaram irredutíveis em sua proposta.

Eu troquei a imagem por outra (achei que não valia a pena a animosidade por um detalhe). Coloquei uma barriga grávida e negra, mas percebi o risco que havia nessa proposta de censura (que se limitou a um pedido). E se eu tivesse me negado? E se eu insistisse na imagem? Que tipo de represália eu poderia sofrer?

Quando escrevi meu capítulo no livro “Birth Models that Work“, da antropóloga Robbie Davis-Floyd, recebi um “sinal de luz” da revisora que achava que meu texto “essencializava” a mulher ao exaltar suas capacidades de gestar e parir, e isso podia incomodar algumas feministas. Desta vez bati pé e tive uma áspera discussão ao telefone que terminou com “então pode retirar o capítulo do livro“. Não foi necessário e minha contribuição nunca fui criticada por ter essa característica.

Liberdade de expressão é uma falta que eu vejo de maneira muito clara no discurso das esquerdas. As estúpidas expulsões de bolsominions de manifestações, ou mesmo negando-lhes o direito de falar, mostram a face autoritária que ainda sobrevive nesse meio. Cabe a nós, do campo progressista, eliminar qualquer forma de autoritarismo e censura, e para isso precisamos pagar o preço que se fizer necessário.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Pensamentos