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Minimalismo

Minimalismo, no meu conceito, é um estado de espírito, uma forma de encarar a vida e o consumo, não um conjunto de regras para serem cumpridas ou levadas ao cabo, como se fosse a “religião da escassez”. Baseia-se na regra dourada de Sêneca, que afirmava que “a pobreza não surge da falta de recursos, mas da multiplicidade dos desejos”. Para haver a dor da falta há que primeiro existir o desejo de possuir.

Somos seres constituídos de forma distinta e complexa, e em nossa arquitetura psíquica dormitam falhas e vazios que, muitas vezes, preenchemos com “cargo”, coisas, badulaques, matéria, comida e emoções. Entretanto, o que te faz falta pode ser irrelevante ao outro. Sempre vai haver alguém que sente mais a falta de algum conforto moderno, algum bem material e mesmo um afeto banal, e não há dúvidas que muitos vão desapegar de quase tudo – até dos amores, enquanto outros ficarão eternamente encarcerados pela penúria.

Mesmo que eu entenda a dificuldade de largar algo, como uma roupa, um carro, um livro, um eletrônico, acredito ser ainda mais necessário – e muito mais desafiador – o desapego das vaidades e das disputas de ego, pois este é o mais complexo de todos os minimalismos. Livrar-se da falsa imagem de si mesmo, desapegar-se do seu orgulho rastejante, abrir mão das vaidades oportunistas são formas fundamentais de retirar matéria acumulada das próprias costas, cujo peso faz atrasar nossa verdadeira missão.

O verdadeiro minimalista não se interessa pelos bens alheios e não faz julgamentos sobre o que é necessário, útil ou adequado aos outros. Espera-se dele que seja minimamente responsável pelas escolhas que faz, para si mesmo e para o planeta.

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Maturidade

Baruch (Benedictus, depois da excomunhão judaica) Espinosa foi um pensador holandês do século XVII de extrema relevância, fazendo parte do grupo dos grandes racionalistas, onde constam Leibniz e René Descartes. Ocupou-se da teologia e da política, tendo abordado ambos os temas em seu grande livro “Ética”.

Espinosa, entretanto, morreu aos 44 anos de idade, vítima de tuberculose. Homem simples, sobrevivia como relojoeiro e polidor de vidros. Renunciou aos prazeres da vida em nome das virtudes do conhecimento, em especial depois de sua trágica e injusta excomunhão da vida judaica.

Eu ainda me lembro muito bem dos meus 44 anos, e nem faz tanto tempo. Entretanto, não recordo dessa idade com saudade, pois percebo o quanto minha mente amadureceu nos últimos 15 anos. Quando penso em sua partida prematura, às vezes me pergunto o que Espinosa teria escrito aos 60 ou 70 anos. Se aos 44 conseguiu deixar sua marca de excelência no mundo do pensamento, o que mais poderia ter feito se mais tempo estivesse entre nós?

Normalmente a obra “Interpretação de Sonhos”, de Sigmund Freud, escrita em 1900, é reconhecida e apontada como o divisor de águas de um período pré-psicanalítico anterior à sua obra centrada na psicanálise. Quando a escreveu Freud tinha…. 44 anos.

Assim, toda a construção da teoria psicanalítica, feita por um dos maiores gênios da humanidade, surgiu após sua maturidade, alcançada depois dos 44 anos, idade com a qual outro gênio, algumas centenas de anos antes, nos abandonava.

O que teria escrito um velho Espinosa? Nunca saberemos, mas certamente seria ainda mais profundo e maduro.

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Sobre botes em oceanos revoltos

Vez por outra aparecem matérias – em geral sensacionalistas e com relatos anedóticos – a respeito de partos domiciliares planejados e até episiotomia, com a clara intenção de criticar os primeiros e exaltar a necessidade da segunda.

Não há dúvida de que, procurando bem, você pode encontrar artigos pequenos e sem relevância autoritativa para questionar, criticar ou exaltar qualquer coisa, em especial procedimentos médicos. Pode-se criar e desfazer gráficos de morbidade com relativa facilidade, bastando para isso torturar as estatísticas para que falem o que desejamos ler. O estado da arte, entretanto, é da qualidade e segurança do atendimento domiciliar e da inutilidade – e mais ainda, o efeito deletério – das episiotomias quando aplicadas como procedimento de rotina durante a assistência ao parto. Isso é o que – neste momento da história – nos fala a “Saúde Baseada em Evidências”.

Entretanto, esse debate só faz sentido se tivermos noção de que a ciência não se comporta como um bote que se move em um lago plácido e imóvel usando as evidências e provas como remos. Muito pelo contrário: o bote está em alto mar, sendo jogado para todos os lados pelo vento das energias culturais, equilibrando-se sobre gigantescas correntes oceânicas, as quais são comandadas pelo capitalismo e pelo patriarcado, as duas principais forças a movimentar as águas dos comportamentos, mas também de dados, pesquisas e estudos.

Desta forma, é lícito entender que episiotomia e parto domiciliar NÃO são debates exclusivamente médicos, mesmo que a medicina e a obstetrícia possam fazer ciência com estes eventos. Em verdade, eles são enfrentamentos de ordem FILOSÓFICA, com algum embasamento científico e consequências médicas.

A origem da disputa entre estas vertentes não está nos gráficos de morbimortalidade materna e perinatal, mas na forma como a sociedade enxerga a função social e a autonomia das mulheres sobre seus corpos. Todo o arcabouço científico é produzido A PARTIR das visões filosóficas primordiais que estabelecemos sobre esse tema central, e só depois disso as pesquisas se moldam para atacar ou refutar estas premissas.

A simples pesquisa sobre episiotomia e parto domiciliar já denuncia um preconceito que nos obriga a perguntar: por que é necessário debater sobre a integridade física de uma mulher ou sobre seu direito de ser assistida onde desejar? Por que é claro e nítido que nenhuma pesquisa assim seria feita com homens? Por que achamos justo questionar direitos humanos reprodutivos e sexuais básicos das mulheres, e jamais dos homens?

A medicina jamais será a linha de frente das modificações na atenção, pois que apenas reflete, dissemina e amplifica valores profundamente relacionados à nossa estrutura social.

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