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Conciliação e ruptura

As estratégias de combate à expropriação do parto não se resumem a debates estéreis e filigranas filosóficas. Existe uma materialidade evidente que emerge dos estudos e que nos oferece uma rota segura – porém mais difícil – de transformação. Por muitos anos, diante do crescimento evidente e sustentado da intervenção no processo de nascimento, ocorreu um debate sobre qual seria o futuro da obstetrícia. De um lado se situam aqueles que, entusiasmados por uma perspectiva tecnológica e movidos (mesmo sem o saber) pelo “imperativo tecnocrático” (que impulsiona as ações humanas em direção à complexidade tecnológica), acreditavam que o absoluto domínio da tecnologia sobre o ciclo gravídico-puerperal era o nosso porvir radiante. Para estes a gestação e, em especial, o parto, eram fardos demasiadamente pesados para serem carregados pelas mulheres. Liberadas destes encargos – gestar e parir – estariam livres de suas imposições fisiológicas para alçarem voos muito mais altos, conquistando espaços historicamente exclusivos para os homens. Os “casulos humanos” e as exterogestações povoam o imaginário de quem sustenta a tese de que as mulheres têm direito a esta liberdade, e que não recaia mais sobre seus ombros o peso de garantir a sobrevivência da espécie.

Do outro lado se encontram aqueles que percebem que o parto, assim como o concebemos, é constitutivo da nossa espécie. “Somos como somos porque nascemos de uma forma bizarra, particular e única”, e modificação das bases fisiológicas e afetivas do nascimento tem a potencialidade de transformar de tal maneira a nossa estrutura de sujeito que as gerações futuras em nada serão semelhantes àquelas de hoje, onde o parto ainda ocorre através do esforço e da resiliência das mulheres diante das dificuldades inerentes ao processo. Por certo que o movimento de Humanização do Nascimento no mundo inteiro foi criado diante do risco de abandonar a configuração multimilenária do parto em nome de uma aventura tecnológica, causando estragos semelhantes ao que ocorreu três décadas antes quando fizemos o mesmo projeto para a alimentação infantil, trocando a amamentação pelas mamadeiras e fórmulas artificiais. Tal processo, como bem sabemos, produziu uma tragédia incalculável para a saúde – em especial para as crianças de povos menos favorecidos economicamente. Por esta razão, muitas instituições se lançaram em projetos multicêntricos de valorização do parto normal, desde as pequenas ONGs locais de proteção ao parto normal até a OMS (Organização Mundial da Saúde). Porém, desde o princípio ficou claro que as estratégias para este combate eram duas que são, ao meu ver, inconciliáveis.

A primeira desejava uma “conciliação” com as forças hegemônicas da obstetrícia – os médicos, as instituições, os hospitais, a mídia – enquanto a outra percebia não haver possibilidade de conciliação e sequer cooperação, posto que não se trata de uma disputa ideológica, mas pelo poder, o domínio sobre os corpos grávidos. Para estes últimos, enquanto a obstetrícia for controlada por cirurgiões – com pouco ou nenhum apreço pelo parto normal e nenhuma habilidade para os desafios emocionais do processo – a taxa de cesarianas continuará alta, assim como o risco inerente a estas cirurgias para ambos, mães e bebês. Só os lucros aumentam com a intervenção, tanto para médicos quanto para as instituições hospitalares, indústria farmacêutica, indústria de equipamentos, etc. A solução para a questão da expropriação do parto não será através da academia, dos estudos e das pesquisas (importantes mas insuficientes), mas através da luta das mulheres exigindo partos com mais segurança e autonomia.

Um estudo de 2021 publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology deixa clara a existência de uma conexão entre os controladores do parto e as taxas de intervenção – como a cesariana. Existe um decréscimo sustentado de nascimentos cirúrgicos nos últimos anos concomitante com o aumento da atenção ao parto sendo realizada por enfermeiras obstetras. O gráfico acima não deixa dúvidas sobre a importância de abandonar a perspectiva conciliatória – tentando convencer os cirurgiões a não usar sua arte cirúrgica nos partos – e transformar o atendimento de forma radical, retirando dos médicos a primazia para a atenção aos partos normais. Para mudar a face do parto é essencial mudar quem exerce poder sobre ele.

O estudo de 2021 apenas demonstra o que falamos há mais de duas décadas: não existe possibilidade de mudança se continuarmos a usar o mesmo sistema fracassado. É preciso mudar pela raiz. Controlar o parto é uma questão de poder, e este deve estar nas mãos das próprias mulheres, para que possam decidir seu destino e o de seus filhos. Educar médicos para o valor e a importância do parto normal se mostrou um fracasso para o objetivo de humanizar o parto e garantir sua segurança; a forma mais eficiente de fazer esta revolução é garantir que o nascimento esteja nas mãos das especialistas na fisiologia de nascer: as parteiras profissionais – enfermeiras obstetras e obstetrizes. Sem isso continuaremos o autoengano que nos iludiu nos últimos 25 anos.

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Golpe reciclado?

Uma considerável parcela da esquerda resgata a memória recente das Jornadas de Junho (2013) para lembrar que o processo golpista se inicia desta forma: críticas diuturnas direcionadas ao governo, ao PT e aos seus expoentes, travestidas de cobranças e “críticas” pontuais bem intencionadas. Usam da democracia e da livre expressão (que deve ser defendida mesmo) para fazer ataques, sempre financiados por inocentes institutos internacionais ligados ao NED, à CIA, aos irmãos Koch, à Open Society, etc. Depois massificam diariamente as agressões em todos os canais midiáticos, em especial aqueles ligados ao poder econômico e à direita mais feroz, como Globo e Estadão.

Vamos assistir o mesmo espetáculo mais uma vez?

PS: quem pagou por esta publicidade? Quem aqui no Brasil está por trás dessa pressão para que Lula aceite uma indicação que vem direto do Partido Democrata através dos seus representantes? 

A resposta pode ser bem mais simples do que imaginamos:

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Caridade privatizada

Diz-se do jogador Sadio Mané do Bayern de Munique que ele é um grande filantropo que auxilia a população pobre de Bambaly, o vilarejo onde nasceu no Senegal. Muitas postagens o apresentam como um sujeito simples, que usa um celular com a tela quebrada e que prefere usar seu dinheiro para ajudar as pessoas pobres do seu país, em especial sua cidade – a base de sua filantropia. Mais do que isso, fazem comparações com os jogadores brasileiros – em especial Neymar – mostrando que o senegalês é um sujeito de caráter, enquanto o brasileiro não passa de um egoísta e aproveitador.

É minha convicção que não é função de jogador de futebol assumir o controle da educação e da saúde em seu país. O Senegal não precisa de Messias ou salvadores para resgatar a dignidade do seu povo; precisa de luta de classes e justiça social. Os ataques aos jogadores brasileiros e a exaltação dessas personalidades são cada vez mais comuns. Infelizmente caímos no engodo de fazer análises morais dos esportistas, ao invés de analisar sua performance em campo. Esse tipo de avaliação moralista dos craques serve apenas para nos afastar da importância da luta de classes.

Sadio Mané é aparentemente uma boa pessoa, mas é impossível saber a verdade que existe por trás da imagem construída pelas empresas de publicidade que trabalham a imagem dessas personalidades. Ele parece ser um sujeito preocupado com seu povo, interessado no seu bem estar e acima das questões mais consumistas que parecem prioritárias entre os muito ricos. Entretanto, cobrar dos outros jogadores de futebol a falta de auxílio aos problemas estruturais básicos do seu país de origem é um erro. Não é obrigação do Neymar – e de nenhum de nós – oferecer seu próprio dinheiro para resolver a fome e a falta de hospitais do Brasil. Cabe a nós mesmos usar de estratégias (como cobrar impostos altos de jogadores) para que o próprio povo possa decidir onde – e a quem – ajudar.

Curioso que nós achamos que a interferência do milionário Lemman na Educação, através do seu instituto e dos “Think Tanks” que opera, é perigosa e ameaça o ensino plural e crítico, mas não acreditamos que um jogador de futebol fazer o mesmo é errado. Afinal, nós acreditamos que o Sadio Mané é um “cidadão de bem”. Ora, precisa mais do que uma aparência para acreditarmos que estas iniciativas privadas podem ajudar o povo do Senegal. Fazer caridade, exaltando personalidades e o “culto ao salvador” é uma péssima iniciativa, pois despolitiza a sociedade e cria, como subproduto, sujeitos maiores do que o próprio Estado. E essa atitude não pode ser julgada “boa” apenas porque sonegação de impostos (que outros jogadores fazem) é uma atitude pior. Ora, trata-se de um falso dilema. É preciso combater a sonegação e limitar ao máximo (regulamentar e fiscalizar) a intervenção de grupos privados na saúde e na educação.

Não há porque desenvolver simpatia por nenhum milionário “bonzinho”. Não existe bondade em quem lucra com a miséria global para que uma franja cada vez mais diminuta tenha luxo e poder. Aliás, Messi – para além de um grande benemérito – é um grande sonegador também. Neymar e Cristiano Ronaldo idem. Soros faz caridade com identitarismo e muitos beijam sua mão. A Fundação Ford e a Fundação Gates espalham suas garras por todo o mundo. Aceitar essa benemerência é submeter-se à sua perspectiva de mundo. Ninguém é aprioristicamente contra o assistencialismo, como se ele fosse um mal a ser combatido. Enquanto houver fome, haverá pressa. Enquanto a divisão perversa das riquezas do planeta persistir haverá necessidade de oferecer ajuda humanitária. Entretanto, faz-se necessário não entender essa “caridade” como a solução última do conflito de classes e da pobreza. O que vejo ocorrer com a divulgação dessas ações de jogadores milionários é a normalização do assistencialismo privado, aceitando como preço a pagar tudo de perverso que vem com o personalismo.

Assistencialismo só se for público, democrático e estatal, caso contrário haverá desequilíbrio e despolitização. Sabe quem faz assistencialismo privado? As ONGs evangélicas da Amazônia, que levam Bíblias e junto com elas a destruição de culturas. Elas estão no olho do furação sobre a exploração da Amazônia exatamente porque pregam a privatização da assistência. Sabe quem mais faz assistencialismo privado? Todos os representantes da ordem mundial imperialista. Muitos hoje fazem a exaltação da caridade do Sadio Mané. Nestas questões eu acredito que é preciso ser radical: tais ações de solidariedade/caridade deveriam ser proibidas em Estados soberanos. Você, por exemplo, jamais poderá fazer isso em Cuba. Lá, o Estado autônomo e independente diria: “Quer ajudar? Entregue seu dinheiro e permita que o povo escolha que tipo de saúde e de educação ele deseja. Não será você a determinar como quer os tratamentos médicos ou quais matérias e em quais livros as crianças deverão estudar“.

Para finalizar, não se trata de debater a assistência, mas o conceito imperialista de que o auxílio aos deserdados pelo capitalismo pode ser feito pela caridade dos bilionários, ou seja, pelos próprios capitalistas. Desta forma, os mesmos que condenam países inteiros às guerras, miséria, opressão e exploração seriam responsáveis pelo combate à fome e à pobreza que, em última análise, eles mesmos causaram. Ora, chega desse engodo neoliberal que nos pede que aceitemos migalhas como elemento central em um projeto de justiça social. Sadio Mané pode ser um bom cidadão, mas o que ele faz jamais deveria ocorrer pois serve à exaltação de personalidades e não tangencia os dramas estruturais da sociedade. A lei deveria limitar ao máximo a interferência dessas pessoas nos assuntos que o Estado deve atuar – como saúde e educação.

Para saber mais sobre o tema, clique aqui e veja outra abordagem sobre a caridade.

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Os Frutos

Há muitos anos eu imaginava que a verdadeira revolução na assistência ao parto seria uma modificação da estrutura da sociedade, em seus aspectos mais profundos. As condutas médicas durante o parto nada mais eram do que a ponta final de um processo que emergia das profundezas da estrutura social. A violência obstétrica era, no meu ver, como um osso de dinossauro na superfície do deserto, que tanto nos permitia perceber o gigantismo do animal quanto a tarefa hercúlea de desenterrá-lo.

Muito cedo me dei conta que a tarefa de reescrever a história do nascimento jamais se daria através da simples ampliação da consciência dos profissionais, seja pela alteração nas “práticas médicas” ou pela transformação das estruturas hospitalares. Isso seria reconhecer os poderes instituídos e tão somente suavizar sua opressão. Na época eu chamava este modelo de “sofisticação de tutela”.

Eu sabia que para mudar a forma de nascer precisávamos mudar a sociedade. Essa sociedade, assim consciente dos sentidos profundos do nascer, não mais permitiria que o parto se tornasse um foco disseminador de violência, exclusão e opressão, envolto na dura carapaça da misoginia. Sabia também que as vias de transformação se dariam através da medicina baseada em evidências e da interdisciplinaridade para enfim chegarmos ao pleno protagonismo do parto garantido às mulheres.

Para isso acontecer deveríamos contemplar 4 pontos essenciais:

A sociedade
Os profissionais
A mídia
Os operadores do direito

Nossa luta com junto à sociedade se dá há quase 30 anos, não só pela nossa ONG mais importante – a Rehuna Humanização Do Parto – como por tantos outros organismos surgidos espontaneamente. Citarei a Parto do Princípio e o GAMA como exemplos dessas instituições. Assim a sociedade – em especial as mulheres – sempre foram o foco primordial de nosso ideário. Se uma revolução no nascimento pode acontecer só será se forem as mulheres a conduzi-la.

Os profissionais humanizados se reúnem há mais de 20 anos para debater, questionar, construir um novo paradigma e disseminar sua visão renovadora através de artigos científicos e livros “à mancheia”, mostrando que temos, sim, muito a dizer e oferecer para esta luta. Dos encontros da Fadynha Doula, até os grandes congressos internacionais e o Siaparto, construimos uma rede segura e forte de disseminação de conhecimento embasado em evidências, reunindo profissionais de vários campos nesse debate.

A mídia ao poucos “vira o fio”. Se antes nos tratava como “malucos” ou “românticos” aos poucos reconhece que os partos humanizados são a ponta de lança da atenção qualificada. Os meios de comunicação hoje reconhecem que o combate ao intervencionismo é uma batalha que rompeu todas as fronteiras, que o excesso de medicalização prejudica a saúde da população e que o caminho é pela suavidade, pela “slow medicine” e pelo respeito aos direitos reprodutivos e sexuais. O sucesso de “O Renascimento do Parto”, a espera “angustiante” pela sua continuação e a produção de tantos outros documentários mostram que a visão da mídia sobre nossas palavras está mudando de uma forma bastante positiva.

O último elemento, o qual me motivou a escrever esta resenha, é a participação dos operadores do direito. Hoje a ReHuNa fez-se ouvir na Organização dos Estados Americanos, em Buenos Aires – através da brilhante advogada Ana Lucia Keunecke – que foi levar aos delegados desta instituição a voz dos ativistas do parto do Brasil junto com nossas denúncias de violência obstétrica. Tivemos a oportunidade de mostrar às Américas como se dá a perseguição sórdida protagonizada por corporações contra médicos, enfermeiras obstetras e doulas que lutam por partos mais dignos e menos violentos. Pudemos sensibilizar os delegados de muitos países irmãos para a nossa luta contra a violência institucional aplicada às gestantes, numa violação inaceitável de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Importante também salientar a importância da Artemis como participante das lutas pela dignidade garantida às gestantes, mostrando que nossa paixão invadiu o universo do direito e lançou sementes que aos poucos mostram seus frutos.

Assim, minhas previsões todas estão se cumprindo. Entretanto, erra quem pensar que esta tarefa está próxima de seu término. “Longo é o caminho de quem deseja trazer luz e discernimento“. Humanizar o Nascimento é garantir o protagonismo à mulher e, enquanto nossa missão não for cumprida, haverá sempre razão para continuarmos firmes nesta trajetória.

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