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Macartismo obstétrico

Estamos diante de um dilema crucial para o futuro da assistência ao parto neste país. A sinalização recente aponta para a criminalização do parto normal e a percepção da humanização do nascimento como uma “ideologia exótica”, o que se configura um desastre não apenas para os profissionais que procuram respeitar os direitos reprodutivos e sexuais de suas pacientes, mas também uma tragédia para as próprias mulheres, impedidas definitivamente de exercer o protagonismo sobre seus corpos. O objetivo inconfesso por trás das perseguições aos profissionais do parto humanizado é impedir que as mulheres tenham voz e que possam tomar decisões sobre seus partos; a forma de levar essa ideia adiante é penalizar – até encarcerar – os profissionais do parto que aceitam respeitar os desejos e escolhas de suas clientes.

O resultado imediato será um incremento das cesarianas, que já ultrapassaram 60% do total de nascimentos no Brasil, pois os médicos sempre se protegem usando como escudo a ideologia hegemônica. A longo prazo veremos a absoluta artificialização do nascimento, que transformará as mulheres em “contêineres fetais“, alienadas em definitivo de qualquer decisão sobre seus filhos e como eles chegam ao mundo. Percebam que nenhum médico é processado por (ab)usar de cesarianas, inobstante os resultados – até mesmo desfechos fatais; a tecnologia, mesmo quando sem indicação e sem qualquer justificativa, os protege. Nesse contexto de “macartismo obstétrico”, a paciência, o respeito aos tempos e às subjetividades e a vinculação com as evidências científicas são defeitos, não virtudes. Agir conforme as determinações da OMS e mesmo do Ministério da Saúde do Brasil não é algo a ser elogiado; é uma atitude que coloca médicos em risco.

Para evitar perder sua profissão, ser processado, perder seu patrimônio e até ser preso, o profissional deverá ser incoercível e violento e deverá agir com a mão pesada, sem levar em conta qualquer questão subjetiva. Deverá objetualizar ao extremo suas pacientes, enxergá-la como uma ameaça, e se esconder atrás de práticas ultrapassadas, violentas e perigosas, mas que garantem a satisfação das corporações e das instituições que lucram com a alienação das mulheres e o controle absoluto sobre seus corpos. A lógica é a mesma da polícia: quem reclamar da violência aplicada contra o cidadão é “a favor de bandidos”; quem questionar a violência obstétrica e os abusos das cesarianas está “contra a tecnologia” e estimulando mortes evitáveis. Por trás desses discurso, a “carta-branca” para que médicos e policiais atuem da forma que mais lhes beneficia; a moeda circulante é o medo.

Não se trata apenas de restaurar a justiça, de analisar os fatos, de aceitar os limites da medicina, mas também de compreender que esta injustiça contra os médicos e parteiras que abraçam as propostas da humanização levará a um aumento considerável da morbidade e mortalidade maternas, além de consequências terríveis para os bebês nascidos sob o controle da tecnocracia sem limites. O ataque ao parto normal cobrará um preço alto em vidas humanas.

Este debate não se encerra no julgamento dos profissionais, na sua prisão ou liberdade e na justiça que se fará. O resultado da reação aos avanços da humanização apontará para onde desejamos que se situe o futuro da assistência ao parto. Se apostamos na alienação das mulheres e a penalização da medicina baseada em evidências, o resultado será o pior possível. Julgar médicos que defendem o parto normal e as escolhas informadas de seus pacientes como criminosos que agem dolosamente é uma aberração jurídica inédita, cujas consequências serão sentidas por toda a sociedade.

A escolha precisa ser feita. Que parto desejamos para nossos netos?

Crucial choice

We are facing a crucial dilemma for the future of childbirth care in this country. Recent signs point to the criminalization of natural childbirth and the perception of humanization of childbirth as an “exotic ideology”, and that is a disaster not only for professionals who seek to respect the reproductive and sexual rights of their patients, but also a tragedy for women themselves, who are permanently prevented from exercising agency over their bodies. The unspoken objective behind the persecution of natural childbirth professionals is to prevent women from having a voice and from being able to make decisions about their births; the way to carry this idea forward is to penalize – even imprison – birth professionals who agree to respect their clients’ wishes and choices.

The immediate result will be an increase in Cesarean rates, which have already exceeded 60% of all births in Brazil, as doctors always protect themselves by using hegemonic ideology as a shield. In the long term, we will see the absolute artificialization of birth, which will transform women into “fetal containers”, permanently alienated from any decision about their children and how they come into the world. Note that no doctor is prosecuted for (ab)using c-sections, regardless of the results – even fatal outcomes; technology, even when not indicated and without any justification, protects them. In this context of “obstetric McCarthyism”, patience, respect for time and subjectivity and connection with scientific evidence are defects, not virtues. Acting in accordance with the determinations of the WHO and even the Brazilian Ministry of Health is not something to be praised; it is an attitude that puts doctors at risk.

To avoid losing their profession, being sued, losing their assets and even being arrested, professionals must be uncontrollable and violent and must act with a heavy hand, without taking into account any subjective issues. They must objectify their patients to the extreme, seeing them as a threat, and hide behind outdated, violent and dangerous practices, but which guarantee the satisfaction of corporations and institutions that profit from the alienation of women and absolute control over their bodies. The logic is the same as that of the police: anyone who complains about violence against citizens is “in favor of criminals”; anyone who questions obstetric violence and the abuse of cesarean sections is “against technology” and encouraging preventable deaths. Behind this discourse is the “carte blanche” for doctors and police officers to act in the way that best benefits them; the official language in childbirth is fear.

It is not just about restoring justice, analyzing the facts, and accepting the limits of medicine, but also about understanding that this injustice against doctors and midwives who embrace the proposals of humanization will lead to a considerable increase in maternal morbidity and mortality, as well as terrible consequences for babies born under the control of an unlimited technocracy. The attack on natural childbirth will exact a high price in human lives.

This debate does not end with the trial of professionals, their imprisonment or release, and the justice that will be served. The outcome of the reaction to advances in humanization will indicate where we want the future of childbirth care to be. If we bet on the alienation of women and the penalization of evidence-based medicine, the result will be the worst possible. Judging doctors who defend natural childbirth and the informed choices of their patients as criminals who act intentionally is an unprecedented legal aberration, the consequences of which will be felt by the entire society.

The choice needs to be made. What kind of childbirth do we want for our grandchildren?

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Monark

Vejo muita gente debochando das condições físicas e emocionais do Monark, que durante anos foi o garoto propaganda do liberalismo ingênuo que tomou conta de parte da juventude brasileira. Dizem que sua cabeça fritou devido ao ideário de direita que adotou para si, porém não acredito ser essa a razão de sua decadência espiritual e psíquica. Na minha percepção, sua debacle está relacionada aos ataques recebidos em razão da postura de enfrentamento ao poder abusivo de algumas instituições.

Uma das razões da minha desconfiança sobre as origens do seu mal é que, para atacar o Monark, inventaram muitas mentiras sobre seus pronunciamentos. Sim, o Monark jamais foi a favor da criação de um partido nazista, e basta assistir o famoso podcast para constatar isso. Ele se disse favorável “ao direito de alguém criar isso”, não ele. Sua radicalidade era pela liberdade irrestrita de expressão e de organização em torno de ideias. Entretanto, de forma oportunista, criaram o factoide de que seria, ele próprio, um defensor de ideias nazi. Isso é mentira. O Monark entrou em uma espiral depressiva e autodestrutiva pela perseguição infame realizada por elementos do STF, em especial o ministro Alexandre. Este, em nome de uma postura populista e baseada em mentiras, resolveu subverter a liberdade de expressão criando uma versão personalizada da Constituição. Para os ataques ao jovem comunicador, o ministro do Temer usou o freestyle característico do STF, que faz da Constituição um “boneco de massinha” aquele que as crianças brincam, onde qualquer coisa pode ser criada da massa amorfa na dependência da vontade e dos interesses oportunistas da suprema corte.

O sofrimento do Monark eu já vi no rosto de pessoas atacadas injustamente. Carregam no semblante o sofrimento por não conseguirem enxergar uma saída, em função do gigantismo das estruturas que os perseguem. Ele sofre por saber que seu direito de expor sua perspectiva de mundo – mesmo equivocada e claramente paranoica –  é censurada, proibida e perseguida. Ela sabe que, mesmo que a expressão de sua visão de mundo seja garantida pela constituição, os guardiões da nossa carta magna são os mais interessados em violentá-la em nome de seus interesses obscuros. Monark é um jovem, um filho de papai, um “gamer” e um garoto de classe média, sem estrutura para suportar a perseguição e o exílio. A solidão, a raiva, a cólera contida, o ressentimento e a tristeza do desterro são ácidos que corroem o próprio frasco de carne e ossos que o contém. Ele não tem a estrutura de um Brizola, um Lula, forjados na luta política e proletária e capazes de suportar os ataques, o exílio, a prisão e as acusações injustas.

Sou um comuna raiz e não concordo nem com 1% das ideias liberais do Monark, mas posso entender sua dor e sei o quanto ele está fragilizado e perturbado. Todavia, ver gente da esquerda debochando de seu sofrimento apenas mostra como nossa esquerda liberal é incompetente e ultrapassada, incapaz de se enxergar – num futuro próximo – na própria pele do garoto do Flow.

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Benedito

Um dos personagens que mais admiro no campo do conhecimento humano é o judeu holandês Baruch Espinoza. Não por acaso, eu o acho parecido com meu pai; alguns aspectos de suas vidas são semelhantes, em especial a coragem de enfrentar as opiniões majoritárias e manter-se firme em suas convicções, como fez o jovem Baruch. Foi esta postura que o levou a ser excomungado aos 23 anos pelas autoridades judaicas de sua cidade. Sua excomunhão vexatória e humilhante foi realizada através dos rituais judaicos, com todos os requintes de maldade que recaem sobre estas cerimônias:

“E que Adonai apague o seu nome sob os céus, e que Adonai o afaste, para sua desgraça, de todas as tribos de Israel, com todas as maldições do firmamento escritas no Livro desta Lei. E vós, os dedicados a Adonai, que Deus vos conserve todos vivos. Advertindo que ninguém lhe pode falar, pela boca nem por escrito, nem lhe conceder nenhum favor, nem debaixo do mesmo teto estar com ele, nem a uma distância de menos de quatro côvados, nem ler papel algum feito ou escrito por ele.” Este texto foi originalmente escrito em português, pois que a família de Baruch era de portugueses fugidos da inquisição ibérica que recebeu asilo nos Países Baixos.

O crime de Baruch Espinoza (que assinou seus trabalhos com o nome latino Benedito) foram seus escritos, os postulados a respeito de Deus contidos em seu livro “Ética”. Nesta publicação o jovem Espinoza defende que Deus é o mecanismo imanente da natureza, e que com ela se confunde. Além disso, agrega que a Bíblia é uma obra metafórico-alegórica, que não exige uma leitura baseada na razão e que, por ser uma criação simbólica, não pode ser a justa expressão da verdade sobre Deus. Seu axioma mais famoso foi “Deus, sive Natura” (Deus, ou a Natureza) que traduzia sua visão teológica monista. Para o jovem Baruch, Deus era a causa de todo o universo perceptível, sendo a Natureza tão somente as formas e atributos de Deus. Para ele, a “substância” é a única realidade que existe e é a causa de si mesma. Sustentou sua perspectiva teológica mesmo com as ameaças de excomunhão (na verdade, o Chérem, equivalente judaico da excomunhão católica) que acabaram se efetivando em 27 de julho de 1656. Despido, humilhado e sem família, refugiou-se no sótão de uma bondosa senhora que o abrigou até sua morte em 1677, provavelmente por silicose ou tuberculose, com apenas 44 anos. Neste seu período de ostracismo e isolamento trabalhou como polidor de lentes, recusando todas as ofertas de trabalho acadêmico. Hegel dizia ser ele o divisor de águas da filosofia: “Ou você é espinozista, ou não é filósofo”, enquanto Deleuze afirmava que Espinoza era o “príncipe da filosofia”. Einstein adotou o monismo de Espinoza quando perguntado se acreditava em Deus.

Baruch Espinoza morreu aos 44 anos, vítima de suas verdades. Foi sacrificado no altar das conveniências, atacado por desagradar às autoridades, chamado de “ateu”, humilhado publicamente, rechaçado e desprezado em seu tempo. Manteve altiva sua postura, guardando fidelidade às suas ideias e oferecendo aos seus detratores e inimigos o perdão. Soube honrar seu curto tempo de vida oferecendo ao mundo suas ideias, deixando a paixão pela filosofia como um legado a influenciar muitos que o seguiram. Isto é, provavelmente, o que Hahnemann queria dizer quando falou que o maior propósito de restaurar a saúde seria a possibilidade de “atingir os altos fins de uma existência“. O mundo está repleto de Beneditos de muitas nacionalidades, muitos deles jamais conheceremos. Todavia, mesmo aparentemente solitários e insignificantes, seu exemplo de vida poderá ser a semente a germinar em um bravo coração.

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Hecatombe


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Se você ainda não percebeu que há algo de podre no Reino da Obstetrícia Brasileira, e continua acreditando nas perseguições medievais dos Conselhos de Medicina, preste atenção ao que está acontecendo ao seu redor. O “Caso Adelir” – cesariana sob ameaça da Polícia, em Torres, RS – foi um balão de ensaio. Ali ficou claro que, se for possível dispor do corpo da mulher sem que ela aceite e permita, a porta estará aberta para QUALQUER outra arbitrariedade.

(Não esqueçam que no caso de Torres as duas médicas que atenderam a gestante, além da juíza que lhe deu a intimação judicial, eram mulheres, o que expõe uma face cruel do nosso machismo: ele é reproduzido pelas próprias mulheres.)

Estamos muito próximos de uma “hecatombe médica”, quando nenhuma mulher mais tiver chance de ter seus filhos de parto normal pela total incapacidade dos médicos em atendê-las. O caso do Rio de Janeiro é emblemático: a Unimed não disponibiliza mais atendentes de parto normal. O parto, como evento fisiológico, está desaparecendo, consumido pelo monopólio médico que se interessa prioritariamente pelos ganhos e facilidades da cesariana, negligenciando seus riscos multiplicados. (veja aqui a decisão do tribunal do Rio de Janeiro)

Quem defende o parto normal é caçado (pode ser com “ss” também), agredido, violentado, difamado, perseguido e caluniado. Quem abusa de cesarianas recebe tapinhas nas costas dos colegas e jamais é admoestado por seus pares.

Somente a sociedade organizada, forçando a modernização dos operadores do direito, poderá mudar essa realidade. Não podemos mais admitir um ministério publico ainda tão inoperante nos casos de violência obstétrica  (ressalva aqui aos poucos e bravos procuradores que abraçam a causa) e a ignorância constrangedora de magistrados que continuam a julgar casos médicos por senso comum e sem a mínima noção do que seja medicina baseada em evidências.

O que mais precisa acontecer para que as mulheres percebam que seus partos foram roubados para oferecer conforto e dinheiro às corporações?

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Lawfare

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Lawfare é uma palavra inglesa que representa o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política. Neste sentido, a lei é utilizada como uma espécie de “arma de guerra”, o que permite o uso de um instrumento jurídico com afeição política.

Lula, juízes garantistas e obstetras humanistas são perseguidos pela justiça e pelos seus pares, no caso dos obstetras, a corporação médica. A perseguição contra os médicos humanistas se insere como um capítulo negro na longa crise da obstetrícia brasileira que, sem capacidade de justificar a barbárie das cesarianas descabidas e outras tantas práticas anacrônicas, prefere atacar os médicos que se posicionam contrários a esta prática. No final, atira-se no mensageiro para atrasar a chegada da mensagem. Infelizmente para eles essa estratégia não dura muito tempo, e a verdade por fim se torna a única possibilidade de avanço.

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