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Gênios

“Essa é a genialidade da Direita: fazer o preto e pobre acreditarem que o inimigo é outro preto, outro pobre, para que a gente não perceba que 1% dos brasileiros concentra 28% de toda a riqueza que o país produz. Atacamos nossos iguais, artificialmente colocados como distintos, para que os mesmos continuem lucrando com nossa miséria. Matamos uns aos outros para que a verdade permaneça escondida.”

Andrade Moraes, “Correio de Itapirubá”, coluna de política, pag. 135

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Valão

Há exatos 13 anos eu trabalhava em uma creche popular da capital fazendo trabalho voluntário. Essa instituição estava em uma vila extremamente pobre da cidade, uma zona de proliferação de doenças endêmicas, subnutrição e violência doméstica, cortada por um valão imundo e malcheiroso e controlada por uma facção poderosa do mundo das drogas. Uma vez uma equipe do Canadá veio me visitar para uma entrevista sobre humanização do nascimento no Brasil, e foi lá – no meio da miséria exposta de uma cidade grande – que resolveram gravar a matéria. Mas este é outro assunto…

Esta creche era controlada por uma freira extremamente carismática e poderosa. Próxima dos 70 anos, era extremamente respeitada na comunidade, inclusive pelos chefões das “bocas de fumo”, a quem recebia em sua salinha acanhada como uma verdadeira líder. Era também respeitada nos círculos da prefeitura e da Assistência Social do município, por ter uma personalidade forte, altiva e trabalhadora.

Um belo dia ela abre a minha sala de consultas com ar extremamente preocupado. Veio me dar uma notícia que considerava extremamente grave.

– Ele vai entrar com caminhões e retroescavadeiras, Ric. Vão invadir tudo aqui. Ele não tem respeito algum por nós, vai botar tudo abaixo!!”

Pedi que ela respirasse fundo e me contasse vagarosamente. “Ele”, era o prefeito, a ameaça atual. Prometera em uma reunião na qual ela esteve presente que um dos próximos projetos da prefeitura seria fechar o córrego imundo, o esgoto a céu aberto que dividia a comunidade, saneando a vila, acabando assim com as doenças surgidas da sujeira. Para isso precisaria derrubar e realocar os casebres que teimavam cair para dentro do valão.

– Mas irmã, ponderei, não é uma boa notícia? Não deveríamos estar felizes que a municipalidade resolveu finalmente olhar para essa parte esquecida da cidade? Não lhe parece uma bênção que um prefeito tenha finalmente prestado atenção em nossa existência?

Minhas palavras pareciam não fazer sentido para ela. Ela continuava ansiosa e agitada, e me descrevia a promessa como uma invasão, a destruição do seu lugar, da sua vila, da sua comunidade.

– Não confio nesse prefeito. Ele não tem boas intenções. Tudo o que ele quer é desmanchar nossa comunidade, botar tudo abaixo, fazer uma avenida cheia de carros cruzando aqui pelo meio, disse ela apontando para a margem do córrego.

Tentei mais uma vez argumentar, mas sem sucesso.

– Não me parece nada disso, irmã. Prefiro acreditar que essas coisas inevitavelmente aconteceriam. Um dia alguém daria um basta a esta vergonha, esta pobreza, esse descaso. Talvez, no futuro sequer será necessária a existência desta…

Parei. Foi nesse momento que olhei nos seus pequenos olhos azuis e percebi onde residia a sua angústia. Envergonhado, parei de falar sem terminar a frase. Ela, por caridade, fingiu não perceber que eu havia encontrado o âmago do seu desespero.

Uma vida toda ligada a curar feridas, oferecer comida aos famintos, ensinar meninos na arte da confeitaria, aulas de dança, creche e berçário para mulheres imersas na pobreza, acolhendo os viciados que a ela recorriam e se tornando a grande referência na comunidade, mais conhecida até que o próprio Papa, a quem devotava suas preces diárias. E agora, um prefeito janotinha pretendia acabar com a sua clientela. Os outrora famintos, desnutridos e ávidos de caridade poderiam receber pelas mãos do governo o que ela sempre ofereceu por caridade e amor. O progresso poderia acabar com sua importância, seu trabalho, sua missão de vida e até com sua identidade.

Pela primeira vez tive contato com esse sentimento paradoxal: a aceitação da dor alheia pelo gozo de ser o remédio. A irmã tratava os moradores da vila como seus próprios filhos e agora sofria as dores do abandono que se anunciava. Como toda mulher que vê os filhos saindo de casa, ela também sofria pela perda de sua família e sua função.

Em seus olhos pude ler, escrito com as tintas de suas lágrimas: “e se todos forem, o que será de mim?”, e pude entender sua dor e sua angústia.

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Consumismo

“Mas os pobres nada possuem e por isso já são treinados para evitar o consumismo”.

Infelizmente eles não são educados contra o consumismo!!! Em verdade, pobres consomem também, muitas vezes para além do que precisam, mesmo dentro das suas estreitas possibilidades. O consumismo não diferencia ricos e pobres, o CONSUMO sim!!!

O fato de alguém não consumir não significa que não seja consumista, da mesma forma que um sujeito não beber não significa que deixou de ser alcoolista. O desejo de consumir é uma marca de personalidade estimulada pela “sociedade de consumo”, que vincula felicidade, alegria, poder e sucesso pessoal com a capacidade de adquirir coisas. Na realidade, existem muitos pobres que são muito mais consumistas que alguns milionários.

Sempre é bom repetir a frase de Platão: “A pobreza não vem da diminuição das riquezas, mas da multiplicação dos desejos“. O desejo permeia o humano, inobstante serem ricos ou pobres. Quem é mais rico, eu ou Bill Gates? Não procure os valores da conta bancária, mas encontre para onde aponta o desejo, este motor do comportamento humano que faz qualquer valor significar muito ou todos os valores serem insuficientes.

A dor que sentimos vem dessa falta subjetiva, desse vazio, desse buraco que enchemos com coisas – como carros, casas, comida ou até gente coisificada.

Certamente que ricos e pobres se beneficiariam de uma cultura em que os objetos que nos cercam tivessem menos influência na nossa felicidade. Contentar-se com poucas coisas é um dos melhores caminhos para a harmonia e o equilíbrio.

Nossa esperança é que essa crise nos ensine os prazeres das maravilhosas coisas gratuitas, um café fumegante, uma tarde de sol, o encontro com amigos e até o sorriso desdentado de uma criança.

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Dois papas

A caracterização dos dois papas foi soberba. A interpretação de Bento XVI por Anthony Hopkins foi genial. Os diálogos foram bem construídos e a trajetória de Francisco elegantemente traçada. Depois de ver o filme a gente sente saudade da Igreja engajada, da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiásticas de Base. É muito triste ver o cristianismo e sua potência renovadora serem dominados por canalhas pentecostais, aproveitadores, vendilhões do templo e mercadores da fé.

Apesar de não ter religião sinto que o catolicismo pode ser um ponto de inflexão para a volta a uma religiosidade a favor dos pobres, famintos, miseráveis e desvalidos que são produzidos pelo capitalismo. Para isso o Papa Francisco pode desempenhar um papel fundamental.

É evidente que eu acredito existirem inúmeros elementos ficcionais no roteiro, incluindo as conversas – que seguramente foram construídas a partir de relatos unilaterais ou mesmo especulações sobre diálogos privados. A própria causa da renúncia de Bento XVI apontada no filme – o descontrole sobre os escândalos sexuais que manchavam como nunca a reputação da Igreja – é controversa. Alguns dizem que as razões pela renúncia recaem sobre questões mais mundanas, como os escândalos do Banco do Vaticano e a prisão do seu auxiliar direto. Entretanto, é evidente que a trajetória de Francisco está centrada no retorno da Igreja para as reivindicações do povo. Foi a escolha clara de uma Igreja que testemunha o grave enxugamento de quadros e a perda de fiéis para o pentecostalismo.

O retorno para os “braços do povo” seria o movimento óbvio de uma Igreja que perdeu sua conexão com os pobres, assim como se preconiza a mesma volta às origens para a esquerda brasileira. A própria escolha do “nome fantasia” do novo papa nos aponta nessa direção, além da origem jesuíta e terceiromundista do Bispo Bertoglio. Também não duvido que haja um claro “passar de pano” para a possível condescendência do padre Bertoglio com a repressão brutal na Argentina, mas sobre isso pouco mais se pode especular.

Ainda prefiro acreditar no papa quando diz “Eu mudei“.

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Pobreza

Não é pobre quem pouco tem, mas quem muito deseja“. Durante toda a minha vida fui atropelado por essa verdade escrita por Lucius Annaeus Sêneca, há 2000 mil anos. Muitas vezes testemunhei que a pobreza estava diretamente ligada ao querer, muito mais do que ao possuir. “Quem se dá bem na pobreza é sem dúvida o verdadeiro rico“, já nos ensinava o nobre escritor

Nosso sofrimento pelo escassez de recursos se dá pela multiplicidade dos nossos desejos que são, por definição, infinitos. Não há limite para o quanto desejamos, e o quanto de sofrimento esta falta irá nos atormentar. Por saber da qualidade relativa da escassez, eu brincava com meus filhos pequenos perguntando a eles “quem é mais rico, eu o o Silvio Santos?”. Eles achavam engraçada a pergunta mas eu explicava que a pergunta fazia sentido se a gente soubesse os desejos de um e de outro.

Por certo que falava dos desejos, e não das necessidades. Estas são aquelas não nos propiciam condições de viver: comida, abrigo, afeto, roupa. O resto é desejo.

Para evitar tanta força de não ter a regra seria desapegar-se e se afastar do aprisionamento inexorável dos desejos, como Gandhi e sua caneta, seus óculos, sua túnica e sua roca de fiar. Para o mestre, nada mais o encantava e prendia e acreditava que somente assim despossuído poderia ser livre.

Lembrei disso no dia que consertei meu carro velho com quase 20 anos de uso que se encontrava guardado na garagem há mais de ano, acometido por vários defeitos. Bateria, rodas, radiador e ar condicionado tiveram de ser trocados ou ajustados. Na primeira vez que saí de casa para a Comuna com meu carrinho velho “recauchutado no limite” percebi que meu orgulho era exclusivo de minha condição. Silvio Santos e Bill Gates estavam proibidos dessa emoção específica. Seu orgulho e satisfação eram reservados a outras coisas, mais caras e abrangentes, mas não a esta. Todavia, quem há de dizer que existem felicidades superiores e mais nobres? Essas só podem ser medidas pela régua do sujeito.

Meu neto Oliver me disse “Quero sair com o carro ‘novo’ do vovô.” Se o velho carro assim lhe parece, porque haveria eu de discordar?

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Desapego

O pensador Sêneca, pintura de Rubens, Sec. XVII

“O Mestre Mahatma Gandhi nos ensinou que a vida na simplicidade era muito mais feliz e plena. Muito antes dele Sêneca, pensador romano, já nos mostrava que “a pobreza não está na falta de recursos, mas na multiplicidade dos desejos”. Não somos pobres por termos pouco, mas por desejarmos demais, nem ricos por termos tudo, mas por encontrar satisfação e alegria nas minúsculas aquisições.

Assim, a busca pela riqueza nos oferece dois caminhos distintos e opostos: a profusão ilimitada de bens, acumulados no limite possível do espaço para guardá-los, ou o desapego de todas a coisas materiais, no limite das necessidades básicas de sobrevivência. No matiz que se produz entre estes polos extremos estamos nós, entre a sedução ofuscante da matéria reluzente e a consciência cada vez mais vívida de que tudo o que possui real valor na vida nos é dado de forma gratuita.”

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