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Desejo de Matar

O Brasil inteiro ficou chocado, na última semana, quando surgiram nas telas da TV as cenas de assaltos cometidos por grupos de jovens nas ruas de Copacabana. Impossível não se identificar com o horror das vítimas, muitas delas meninas, que foram espancadas pelos meliantes. Nas cenas, a população parece indefesa, sem ação, atônita e sem qualquer proteção das forças policiais.

A reação nas ruas e nas redes sociais foi de indignação. Brotaram na Internet os conhecidos jargões da extrema-direita, exigindo desde espancamentos até linchamentos, pena de morte e mesmo a execução sumária dos assaltantes. A elite da extrema-direita vociferou sua previsível violência contra os delinquentes, mas a imprensa burguesa também foi igualmente incisiva. Alguns lembraram do caso do rapaz despido e amarrado a um poste após um assalto frustrado, quando até setores da imprensa aplaudiram a ação dos populares.

Ato contínuo aos arrastões no Rio de Janeiro, lutadores de Jiu-jitsu apareceram em cena oferecendo-se como proteção à população, agindo como vingadores, heróis acima da lei, salvadores dos fracos e indefesos habitantes do Rio. Assim, foram criados “comandos” populares de rapazes musculosos, que foram filmados espancando suspeitos (normalmente os pobres e pardos) e espalharam arbítrio, violência e um aroma de “Whey Protein” pelas ruas da cidade maravilhosa. Como Charles Bronson em “Desejo de Matar” – de 1974, um filme que contém as sementes do fascismo e do racismo – os lutadores do Rio acreditam na fábula de consertar uma sociedade com a ferramenta da vingança violenta. No filme, Charles Bronson produz um banho de sangue contra delinquentes (todos de pele escura) para vingar da forma mais cruel a morte da sua família. No início dos anos 80 este filme era um campeão das locadoras, e isso levou dois produtores israelenses (coincidência) a comprar os direitos da franquia, fazendo mais 4 filmes de sucesso.

Como sempre, estas reações da sociedade, carregadas de emocionalismo, levam a uma contenção imediata dos assaltos, mas invariavelmente passageira. Assim que os Comandos deixam de atuar, a normalidade dos abusos volta a ocorrer. E assim acontece porque continuamos a moralizar a questão, acreditando que esses ataques ocorrem pelo choque entre duas classes: as pessoas de bem (nós) e os bandidos, meliantes covardes e oportunistas. Continuamos a olhar para os bandidos como seres deformados, moralmente deteriorados, que usam de sua malícia e força para atacar pessoas inocentes pelo simples prazer de roubar e machucar. Acreditamos que se trata de uma questão moral, e não econômica, política e sistêmica.

É evidente que o aparecimento das “brigadas populares” , compostas por lutadores das academias do bairro, também se dá pela falência da segurança pública da cidade, controlada por uma polícia que está infiltrada em todos os níveis pela contravenção. Entretanto, a simples repressão destes marginais (e aqui uso no sentido de estarem “à margem”) pela polícia não seria uma solução muito melhor, apesar de produzir menos ataques discriminatórios – mas não muitos. 

Estes sujeitos, cansados de espiar pelos buracos do muro, resolvem invadir a festa do consumo como verdadeiros penetras, subtraindo dos desatentos as bugigangas que carregam. Quem não aceitar ainda leva um olho roxo. Por certo que não há como aplaudir como os pobres e excluídos do Rio de Janeiro decidem, de forma paroxística e desordenada, reclamar seu quinhão na festa do capitalismo usando as ferramentas do terror. Entretanto, não há como negar que uma sociedade de classes, onde a imensa maioria é expulsa do consumo (o caminho para a felicidade), é pródiga em produzir este tipo de reação. É improvável que se consiga manter por muito tempo tamanho desequilíbrio sem uma enorme força repressiva, mas também é justo esperar que muitos vão reagir – com maior ou menor violência, maior ou menor organização. Os assaltos no Rio de Janeiro tem suas raízes profundamente inseridas na terra fértil da desigualdade e da injustiça social. 

Da mesma forma, não é possível manter uma população de milhões de habitantes presa em um campo de concentração ao ar livre ou submetida à humilhação diária de espancamentos, prisões ilegais, abusos, desapropriações e assassinatos e não imaginar como natural a reação – até violenta e incontrolável – contra essa barbárie. Acreditar ser possível solucionar a situação na Palestina através da violência, seja pela eliminação do Hamas, a expulsão de toda a população restante ou até mesmo com a “solução final” – admitida por fascistas israelenses – é uma tolice, pois que a razão desse ódio é a invasão, o colonialismo e o imperialismo, da mesma forma que o ódio represados dos descamisados e favelados brasileiros é a traição do capitalismo ao seu desejo de participar da colheita dos frutos do trabalho. 

A solução, como sempre, está longe das alternativas paliativas. A brutalidade genocida de Israel e as brigadas de lutadores cariocas não podem solucionar problemas que não começaram na semana passada no Rio ou no 7 de outubro na Palestina; são doenças sociais ligadas à estrutura mais profunda e constitutiva de cada uma dessas realidades. Sem o fim do sionismo e do capitalismo nada será suficiente para dar fim à barbárie. Uma sociedade cuja matriz é perversa e onde a desigualdade é vista como natural será eternamente incapaz de solucionar a indignação dos excluídos através da violência. 

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Jacarezinho

A primeira vez que fui ao Rio de Janeiro tinha 23 anos e fui assaltado numa espécie de arrastão apenas uns 20 minutos após ter chegado na rodoviária para subir em outro ônibus com destino a Botafogo. Um motorista amedrontado abriu a porta para que três meninos armados pedissem relógios e dinheiro. O total do que eu perdi naquele dia seria equivalente hoje a uns 50 reais, mas passei dias com raiva pela impotência de ser roubado na frente da mulher e do filho pequeno sem poder fazer nada. Não foi, por certo, um bom cartão de visitas.

A cidade do Rio de Janeiro me impressionou pela sua história, a arquitetura, a natureza, os morros, o jeito do carioca falar, as praias. Dizem – Luis Fernando Veríssimo tem uma bela história – que gaúchos adoram o Rio e os(as) cariocas, pois nossa bronca mesmo é com São Paulo, transformada em “capital do Brasil” por iniciativa – adivinhem – de um gaúcho de São Borja, Getúlio Dornelles Vargas. Aqui no pago é comum as pessoas se derreterem por samba de raiz e escolas de samba, além de se exibirem recitando a ordem das praia cariocas, como Tim Maia o fez.

A primeira impressão, entretanto, é a que fica. O Rio ficou para mim eternamente com a imagem das favelas, aliás, o que mais se conhece do Brasil no exterior. Até Michael Jackson quis conhecê-las. Mas para mim as “comunidades” e o Rio de Janeiro são o choque real entre o povo criativo e alegre com a brutalidade da exclusão capitalista. E o resultado que se mostra no cotidiano é a indignação solitária, dividida, minúscula de garotos assaltantes roubando bugigangas como nos conta Chico Buarque, ou os núcleos controlados por milícias fazendo o papel de um Estado pusilânime ou inexistente.

As chacinas, as balas perdidas, as milícias, a “gaiola das loucas”, o “Vivendas da Barra”, matadores de aluguel, Marielle, Jacarezinho, as igrejas pilantras, o massacre da Candelária são como feridas abertas que sangram todos os dias. Essa é a imagem que tenho hoje do Rio, uma beleza amaldiçoada pela iniquidade, pela injustiça social e que só terá solução com o fim da barbárie capitalista.

O Rio não é para amadores. A notícia alarmante para quem gosta dessa cidade é que a população do Rio está deixando em primeiro lugar nas pesquisas de preferência o atual governador Cláudio Castro, do PL, ligado ao justiceiro Witzel e às forças mais reacionárias que governam o Estado há décadas. A distância é pequena com o segundo colocado, o que nos permite dizer que existe um empate técnico com o deputado Freixo que vem logo a seguir. É por essas tragédias que eu às vezes penso que o Rio de Janeiro não tem salvação e que o império das milícias, das oligarquias e das igrejas evangélicas não vai acabar antes de uma hecatombe social. Mas o meu coração comunista teima em ter esperança…

Da minha cabeça nunca sairá a imagem do levante popular. Nos meus devaneios vejo o povo descendo o morro organizado, exigindo seu direito à cidadania, à alegria, ao sorriso, à educação, à saúde e exigindo que as maravilhas dessa cidade não continuem sendo saqueadas pela elite tosca que a compõe. Quem sabe seja como no samba de Wilson das Neves, “O dia em que o Morro descer e não for Carnaval”

“O tema do enredo vai ser a cidade partida
No dia em que o couro comer na avenida
Se o morro descer e não for carnaval
O povo virá de cortiço, alagado e favela
Mostrando a miséria sobre a passarela
Sem a fantasia que sai no jornal”

Espero o dia em que o Rio seja a Cidade Maravilhosa e segura que eu gostaria de conhecer. Entretanto, enquanto nossa sociedade foi brutalizada por um modelo excludente, Candelária, Jacarezinho e tantas outras chacinas serão apenas historias tristes e trágicas sobre a cidade mais linda e mais desigual do mundo.

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Realidade em preto e branco

Copacabana, anos 70

Mais uma imagem que mostra o apartheid do Rio de Janeiro, e de resto o que ocorria em todo o Brasil. O Rio é uma cidade mestiça, com muitos negros e mestiços, mas a praia sempre foi de exclusividade dos brancos. Os negros e pardos aparecem nestas imagens apenas como serviçais, empregados, trabalhando onde os outros descansam e/ou se divertem.

Para aqueles que diziam não haver racismo nesta época eu apenas lembro que a expressão deste problema social só ocorre quando existe algum tipo de tensão e conflito. Nessa época havia a “paz do silêncio”, quando a questão racial era escamoteada e escondida. Até mesmo os negros sobreviviam se adaptando a uma sociedade que não foi construída para eles, de mulatas do Sargentelli a jogadores de futebol.

Cada um olha para essas imagens e extrai delas o que deseja. Eu não posso evitar o choque de ver a construção racista do nosso país. Não quero abrir polêmica, apenas lembrar do racismo em que vivíamos ao mesmo tempo que sofríamos a repressão de um regime brutal. As imagens concordam comigo.

Mas… sim, como era bom ser branco e de classe média no Rio dos anos 70.

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Esboço de uma historiografia da Humanização do Nascimento

Foi em 1999 eu encontrei pela primeira vez as pessoas da minha tribo. Após atender o parto de Cristina Balzano Guimarães em Porto Alegre ela me contou saber da existência de um congresso que se realizava todos os anos no Rio de Janeiro, apenas com pessoas que desejavam trabalhar com a humanização do nascimento. Nesse congresso apareciam pessoas de várias áreas de conhecimento não apenas da medicina. Suas palavras reforçavam minha ideia, há muito acalentada, de que o parto não era um ato médico como fui levado a acreditar na Escola de Medicina, mas um evento para muito além dessa caixa pequena da medicina. Parto era um evento humano, onde concorriam muitas formas de saber, e cuja complexidade não poderia jamais ser amarrada a uma forma apenas de entendimento.

Até o aparecimento desse convite de Cristina foram 13 anos da mais absurda solidão, sem contato com nenhum outro profissional que tivesse ideias semelhantes às minhas. Nunca houve durante a minha formação profissional qualquer médico que ousasse questionar a exclusividade da atenção ao parto na mão dos médicos. Jamais algum profissional – entre professores e colegas – questionou as múltiplas intervenções sobre o corpo da gestante, quanto mais o direito de recusa e consentimento informados por parte dela ou da família. Toda forma dissidente de compreensão do parto era tratada com escárnio, deboche e menosprezo. Não havia sequer espaço para a contestação: o parto humanizado era o terraplanismo da obstetrícia.

Por certo que nos meus anos de formação não havia internet, nem redes sociais. “Rede social” era “rádio corredor”, que era a “fofoca institucionalizada”. Aliás, o nível tóxico de maledicência, vaidade, luta por poder e fogueira de vaidades durante a minha passagem pela universidade foram parte das razões por ter fugido da vida acadêmica, apesar dos inúmeros convites para fazê-lo. Para além disso, eu reconhecia a maldição que meu pai havia vaticinado há muitos anos sobre a minha pessoa: a marca da rebeldia. Não, não tomem como elogio, era algo realmente maldito, uma força compulsiva de questionar os poderes estabelecidos, a incapacidade de receber ordens, a fúria pelas injustiças e a sede de transformação. Todavia, pelos relatos até de familiares meus que ingressaram nessa carreira, a vida acadêmica se mostrava muito mais próxima de uma organização eclesiástica do que com uma fonte de ideias renovadoras e criativas. Não foi difícil para mim perceber a característica conservadora da Academia e, mais ainda, seu sistema de poderes. Achei que viver sob a pressão que se produzia nas Universidades não se encaixava no meu temperamento, mas ainda hoje tenho profunda admiração por muitos colegas que lá trabalham e militam.

Nos “anos heroicos” da humanização do nascimento o “congresso da Fadynha” era o nosso porto seguro. Eu sempre comparei minhas idas a este encontro anual como um jovem homossexual que, vivendo numa cidade do interior, pela primeira vez entra num “club gay” e descobre que existem outros que pensam e sentem como ele. O congresso era muito pequeno, talvez 100 e no máximo 200 pessoas, absolutamente artesanal. Tudo recaía nas costas da organizadora, Maria de Lourdes, chamada carinhosamente de Fadynha, uma hippie sobrevivente dos anos “paz e amor”, que dedicou sua vida na defesa do parto livre. O ambiente era absolutamente “bicho grilo”, o que para mim era desconfortável na época, mas que nas memórias aparece como uma das características mais deliciosas dos encontros. Sim, tinha Hare Krishna, tinha gente de manto, tinha turbante, tinha culto ecumênico, tinha sessão de Yôga. Era um clima de abertura sensorial, como um pedido aberto para os participante se questionarem “se o parto pudesse ser diferente, abra sua mente e imagine o cenário perfeito“.

Na época as viagens eram muito mais complicadas. A gente marcava hotel por telefone, comprava passagem de avião na loja da Varig no centro da cidade, pagava o congresso na hora (em dinheiro ou cheque) mas era sagrado participar do congresso da Fadynha. Não tinha dinheiro para estadia ou para pagar a viagem, e os palestrantes tinham que pagar sua inscrição também. Os temas eram simples, muito mais depoimentos de profissionais que estavam atuando de forma mais “fisiológica” do que debates técnicos com autoridades nacionais ou internacionais. Éramos muito singelos na forma de pensar, e os congressos funcionavam como uma catarse em grupo para desovar indignações e sonhos. Alguns temas seriam considerados absurdos hoje em dia. Lembro uma vez que uma advogada do grupo “SOS Erro Médico” foi chamada a palestrar e o tema de sua fala foi “processar médicos que deixam passar da hora e não fazem cesariana por cordão enrolado no pescoço“. Ai, ai, ai… Ficava claro que a pura indignação diante dos desmandos da obstetrícia contemporânea e da falta de vinculação com as evidências científicas eram insuficientes para levar adiante um projeto de renovação na atenção ao nascimento.

Neste tempo, início do milênio, também não havia uma clareza sobre partos conduzidos por enfermeiras e o tema do parto domiciliar era quase desconhecido. Vivíamos o debate ainda da “Casa de Parto 9 Luas”, uma experiência interessante mas que sucumbiu por questões administrativas – foi assim que lembro até hoje – mas que não era uma Casa de Parto (no conceito de parteria que temos hoje), e sim uma clínica de nascimentos que tinha até bloco cirúrgico.

Parto domiciliar era tabu, e a grande estrela desse tema uma moça que morava na Itália e pariu no Rio de Janeiro com uma obstetra chamada Stella. Certamente que ela teve sua importância na emergência desse debate. Éramos todos entusiasmados e profundamente ingênuos. Sabíamos o que não queríamos, mas não exatamente qual era o nosso Norte. Não se falava em “protagonismo” da mulher – essa vinculação com o conceito de autonomia estava ainda muito embrionário – mas em boas práticas, como abolir episiotomias, diminuir cesarianas, parto de cócoras, marido presente, etc.

O movimento de doulas (apesar de já existirem doulas, como Fadynha e Lucia Caldeyro, entre outras) surgiu em 2002 quando Maria Helena Bastos trouxe a Debra Pascali-Bonaro para um curso de formadoras no Rio, e a partir deste ponto o movimento explodiu como um rastilho chegando no barril de pólvora. A partir da entrada de um gigantesco contingente de mulheres leigas, fora do mundo da assistência ao parto, o movimento ganhou as ruas, as vozes se multiplicaram e as mulheres foram finalmente incorporadas mais diretamente ao debate. Depois disso, a criação da Escola de Obstetrizes da EACH (USP Leste) foi outro grande passo, protagonizado pela professora Dulce Gualda.

A criação dessa história corria paralelo nas listas de discussão nesta ferramenta fantástica criada pelos List Servers. Ali se brigava, se xingava, se debatia, se conhecia gente, se exibia, se crescia nos conceitos. Foi outro fabuloso propagador da boa nova, no alvorecer do milênio.

Já está na hora da história da humanização do nascimento ser escrita, mas o medo que sempre tive foi com a parcialidade dos relatos. O que escrevi acima é um bom exemplo. Está foi a minha perspectiva, de um profissional da medicina, do sul do país, isolado e numa época em que os contatos pessoais eram muito difíceis. Essa história poderia ser coordenada por alguém de qualquer área ou latitude, mas precisaria contemplar as múltiplas perspectivas deste movimento nascente. Como aconteceu esse movimento nos diferentes estados, quais as diferenças locais que produziram entraves e facilitações? Quais as personalidades que produziram mudanças reais e quais não – e por quê?

Esta historiografia seria fundamental para que nossa experiência acumulada de lutas pudesse frutificar, mas precisaria ser um trabalho coletivo. Nesse aspecto, esquecer nomes pode ter um efeito dramático. Como eu disse anteriormente, somos dotados dessa capacidade (única na espécie humana) de acreditar sermos mais importantes do que realmente somos, e isso faz com que pequenos esquecimentos possam produzir grandes transtornos e mágoas.

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Ripples

A primeira vez que fui ao Rio meu filho tinha 1 ano e meio de vida. Entrei com ele e sua mãe em um ônibus para Botafogo e fomos assaltados antes mesmo de sentar, quando o ônibus se preparava para sair. Três garotos entraram e um deles puxou da cintura um revólver. Roubaram meu relógio e uns cruzados. O valor corrigido de ambos não passaria hoje de 50 reais, mas foi a primeira vez que sofri um assalto e uma ameaça dessa forma. Eu tinha 23 anos na época.

As vezes penso que os três meninos meliantes já morreram, o que é bem provável. Eles tinham entre 15 e 18 anos. Pretinhos, mirradinhos, bonitos. Não houve nenhum contato e sequer violência física, mas fui atingido no peito por uma sensação de fragilidade e impotência. Eles apenas ordenaram: “Passa o relógio e o que tiver no bolso“. Só isso.

A lembrança desse fato voltou à minha memória hoje. O roubo em si foi insignificante, mas o que me incomodou durante semanas foi o estrago que produziu em mim. A raiva, a sensação de impotência, o susto, os dentes trincados, os desejos de vingança e o pensamento fixo na cena me acompanharam por vários dias. Como uma pedra jogada em um lago que produz ondulações por muito tempo. Lembro de ter visto os mesmos sentimentos destrutivos muitos anos depois no rosto de um colega anestesista que havia sido assaltado nas férias. O orgulho de macho ferido, a impotência, o ódio, a raiva, as expressões malignas eram todos muito piores que as bugigangas e os poucos pilas roubados.

Estas lembranças me atingiram porque quando ocorre um fato brutal – como as agressões às mulheres dos últimos dias – as reverberações destes eventos são horríveis e continuadas. O fato se repete todos os dias em muitas outras mulheres que despertam suas dores antigas, as quais cumpre extravasar, numa catarse que as redes sociais amplificam de forma intensa e dolorosa.

Não me cabe questionar a validade destes relatos, pois talvez a expulsão destes demônios a partir de um fato alheio possa ajudar as vítimas cujas vozes se calaram. Todavia, me resta lamentar o quanto de dor ainda produzimos nesse planeta, e o quanto ainda se mantém guardado e calado dentro de tanta gente.

Espero somente, solitário em minhas fantasias, que os três garotos cariocas que um dia encontrei do lado oposto de uma arma sejam hoje homens de valor, pais, parceiros, amigos, talvez avós como eu. Espero que tenham encontrado uma saída para suas vidas, assim como espero que a dor que emerge de tantas mulheres que sofreram nas mãos de seus algozes sirva para que um dia tenhamos plena consciência da importância de respeitar a todos.

Não são esperanças tolas.

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