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Tortura

Não se produz justiça tratando desumanamente prisioneiros. Aliás, estes são atos que se chocam contra a carta de direitos humanos. Além disso, traficantes são o resultado de uma sociedade doente, não sua causa. Uma sociedade mais justa não produziria as multidões de drogados que se intoxicam para suportar a realidade, e nem os criaria traficantes que lucram com sua doença. Traficantes não são a causa primária do distúrbio; eles só aparecem para suprir a demanda do vício, criado pelo desequilíbrio social. Muito mais pessoas morrem por álcool e cigarro todos os dias do que por drogas ilegais, mas os “traficantes” (quem faz e vende tabaco e álcool) não são punidos. Curioso, não? E mesmo que fossem eles os causadores do distúrbio, mesmo que os traficantes tivessem criado também a demanda por drogas, nada justificaria a tortura a que eles são submetidos nas prisões. Exatamente por isso, as nações assinam tratados sobre direitos humanos.

Na mente dos direitistas existe um mundo dividido entre sujeitos “maus” e “cidadãos de bem”, mas a verdade é bem mais complexa e está bem longe disso. Nesse mundo de mentiras que criaram, ao se punir exemplarmente os “maus” – e até de forma cruel e definitiva, mas só a maldade dos pobres, por certo – o mundo ficaria melhor. Afinal, cortando as ervas daninhas o gramado ficaria verdejante, não é? Pois o mundo prova o contrário todos os dias. O país mais punitivista do mundo, com quase 2 milhões de prisioneiros, não diminui seus níveis de criminalidade, exatamente porque a iniquidade estrutural é a mãe destes crimes, e não uma chaga moral de uma parcela de seus habitantes. Ou seja: a visão da sociedade que estabelece os defeitos morais como as causas do crime, levando ao punitivismo inexorável como principal remédio, se mostrou uma grande mentira.

Divulga-se que famoso criminoso Marcinho VP está passando por uma preocupante crise psiquiátrica na penitenciária onde se encontra. Ora, o que se poderia esperar? Quem consegue manter a sanidade no sistema prisional brasileiro, onde os detentos são esquecidos e entregues à própria sorte? Não há dúvidas que muitos estão sendo torturados, jogados à própria sorte, mas quem se importa com as consequências psíquicas do confinamento e dos maus tratos? Na perspectiva do fascismo, a criminalidade é uma “infecção que se espalha”, porque seus seguidores não conseguem entender seus determinantes sociais. Se essa tolice de contaminação fosse verdade, porque não se manifesta criando criminosos da Noruega, Suécia, Japão ou Cuba? Por que tantos no Brasil, Argentina, México e Estados Unidos? Se olharmos para os níveis de criminalidade alarmantes desses países, o que salta aos olhos? O que tais países têm em comum? Sim: um capitalismo brutal que reforça desigualdades!! Ora, em sociedades mais igualitárias não há tanta necessidade para roubar, e por isso os níveis de crime são muito mais baixos. A razão de existir um Marcinho VP é a sociedade desigual onde vivemos e uma legislação estúpida e ineficiente sobre drogas. Prender para torturar um criminoso como esse em nada soluciona o problema, apenas cria novos líderes para substituir os trancafiados.

Torturar traficantes na prisão não diminuiu em nada o tráfico de drogas, apenas dá espaço para nossos sentimentos de vingança. Porém, os criminosos sabem das retaliações que receberão na prisão, e suas ações também levam em consideração a maldade que sofrem do sistema, num circo vicioso de culpa e crime, vingança e retaliação. Tratar prisioneiros com desumanidade, afirmando que eles “merecem”, por fazerem o “mal”, não soluciona nada e acrescenta lenha na fogueira da criminalidade.

Por fim, muitos acreditam que condenar a tortura física e psicológica de apenados é o mesmo que não punir. Para estes, tratar os prisioneiros com dignidade seria como absolvê-los de seus delitos, e que tal atitude representaria um estímulo ao crime, pela via da impunidade. Quem afirma isso não tem capacidade de entender que até mesmo os piores criminosos devem ser punidos dentro da lei, pois sem isso regredimos à idade média, aos linchamentos e aos apedrejamentos públicos que, como sabemos, nunca impediram as pessoas de cometerem crimes.

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Alvo

Não…. racismo não se define pelo “alvo”. Fosse verdade, qualquer morte negra seria racista e, da mesma forma, todas as guerras tribais entre negros africanos seriam igualmente racistas. Também não se dá pelo “executor”, pois ele pode estar agindo sob uma ordenação social racista, mesmo sendo negro – como faria um Capitão do Mato.

A função de um Capitão do Mato, que perseguia um escravo fugitivo para devolvê-lo ao dono, não era menos racista pelo fato de ambos os personagens dessa perseguição serem negros. Também havia negros e nas forças de repressão do apartheid na África do Sul, assim como vemos árabes atuando como policiais no apartheid contemporâneo na Palestina. O racismo está acima dos sujeitos, pairando nas estruturas valorativas da sociedade. Ele é a máscara preferida para o fosso que separa as classes.

Não, o racismo se dá pelo contexto, onde vidas negras são descartadas, destruídas e exploradas para a manutenção de um abismo de classes. O racismo seria assim a naturalização de um sistema de opressão, que usa a raça para justificar-se. É um modelo de sociedade onde a vida de um negro se mede em arrobas e onde sua validade se esgota junto com sua força física. Nesse contexto pouco importa quem puxa o gatilho ou manipula o porrete; a sociedade inteira é responsável pelas mortes determinadas pelo fosso de classe obsceno que separa as gentes, usando a cor como disfarce.

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Partidos identitários

O que pensar disso? Um partido feminista? Ou seja, um partido de mulheres. O que pensar de um partido que se produz pela exclusão de um gênero? Mas se isso for realidade, por que não um partido só de negros ou gays, pelas mesmas razões? Que tal um só de judeus? Isso me parece o identitarismo levado às últimas consequências, em uma sociedade de “cada um por si”, pelo seu grupo, cada vez mais isolados com propostas centradas em seus minúsculos segmentos.

Minúsculos mesmo, até porque dentro do “partido feminista” haverá uma ala gay. E também uma ala negra. E dentro dela uma ala negra-gay. E mais uma ala feminista trans. E todas vão se odiar e se combater porque é da natureza humana lutar por visibilidade e espaço. É o que vemos dentro do feminismo, mas também no movimento negro, no socialismo e no liberalismo. A fragmentação infinita leva ao grupo de si mesmo.

Se a luta feminista é válida e nobre ela também é uma luta de mulheres e para mulheres, e não necessariamente uma luta pela sociedade. Para isso existem propostas mais abrangentes que não nos separam em sexo, raça, cor de pele ou religião. Um partido feminista seria, para mim, uma profunda aberração, tanto quanto o seria um partido negro ou gay. No meu ver as mulheres deveriam tomar de assalto os partidos centrados em ideias e propostas para a sociedade inteira, e não para um gênero. Também não por qualquer outra identidade. O fato da luta ser “nobre” não torna um partido em seu nome justo ou adequado.

Alias… o partido feminista seria de direita? Esquerda? Pró ecologia? Socialista? Mas… Como votaria uma feminista ferrenha de esquerda num partido feminista de orientação liberal? O que pesaria mais, sua filiação com o feminismo ou sua visão de sociedade? Como se insere este partido na questão da luta de classes? Um partido feminista, no meu modesto ver, composto apenas por mulheres de forma institucional (e não como é hoje, onde as mulheres têm pleno acesso, e apenas são menos votadas por questões da cultura patriarcal) é um absurdo. Será nanico exatamente por enxergar a sociedade por um funil de gênero, tão inaceitável quanto um partido constituído apenas por imigrantes, aposentados, negros ou gays. Na minha opinião, é um desserviço ao próprio ideário feminista, que prega pela diversidade e pela inclusão. .

O fato de haver um problema sério e as lutas por equidade e justiça serem nobres e necessárias não impede que as propostas na defesa desses temas possa ser errada. Um partido construído com base na exclusão seria um fracasso. Entretanto, acho surpreendente que algumas pessoas se deixem seduzir por este tipo de identitarismo radical. Sabe onde encontramos isso? Em Israel. Sabe onde ele se desenvolveu a partir de 1948? Na África do Sul. Na origem havia um sentimento nobre de proteger uma parcela oprimida (judeus na Europa e uma minoria branca da sociedade africaner), mas o que se criou foi monstruoso. Sabem que na Rússia foi criado um partido dos bebedores de cerveja? Pergunto: o que isso significou de positivo para a política russa?

Um partido deve ser promotor de propostas para a sociedade como um todo e não para representar apenas um segmento dela, mesmo que majoritário!!! Eu não vejo nenhum problema em que as mulheres criem movimentos, ONGs, frentes parlamentares, associações cívicas e o escambau. O que não posso aceitar é um partido cuja proposta seja excludente (olha o Paulo Freire aí de novo) e que governe apenas para a parcela a qual representa.

Alias… quem diz isso é Bolsonaro quando vocifera “As minorias devem se curvar às maiorias”. É Bolsonaro que diz governar apenas para quem votou nele. Um partido feminista é um partido para as mulheres e não para a sociedade. Isso, no meu modesto ver, é inaceitável e agride as próprias bases do feminismo. Como eu já disse, apesar de ser uma trajetória lenta, negros, mulheres e gays deveriam tomar de assalto os parlamentos através das agremiações políticas e por meio de propostas para a sociedade, e não apenas através de sua visão identitária.

“Ahhh, mas é demorado. Ahhh mas o mundo é machista”. É verdade, mas um partido como esse jamais acabaria com o machismo. Pelo contrário, produziria um efeito rebote contrário na sociedade.

A propósito… É claro que há espaço nos partidos para as mulheres!!! Por lei 30% dos candidatos precisam ser mulheres!!! Muitas são catadas à unha para preencher as vagas. O problema é a relutância das próprias mulheres em votar em mulher, mas isso não termina com decreto, e sim com educação, paciência, formação e combate sistemático ao modelo patriarcal excludente da sociedade. Creio mesmo que os políticos fazem menos do que deviam, mas são votados por gente que não se importa muito com isso. As minorias deveriam se revoltar, mas não através de projetos anti democráticos ou excludentes. Aliás…. essa é a visão anti política de Bolsonaro. “Já que os políticos são uma porcaria vamos governar de forma autoritária e com militares”.

É isso que queremos?

Para exigir respeito não é necessário criar um partido excludente. Isso é absurdo. Além do mais é da essência dos partidos dominar a cena política para implementar suas ideias para toda a população – e não apenas uma parte dela, mesmo que majoritária.

A criação de um partido de mulheres, feminista e excludente é, para mim, um anátema e uma quimera. Não é a toa que foi rejeitado pelas democracias de todo o mundo. Um partido assim seria como o Nasionale

Não se acaba com a violência com mais violência e não se extermina a exclusão com mais exclusão. Paz e inclusão são as respostas, mesmo quando mais são reconhecidamente mais demoradas.

Os “homens cis” adorariam esse partido. Finalmente poderão dizer que seus medos tinham fundamento. Dirão, e com razão, que as mulheres ameaçam a democracia criando um partido que, se for vitorioso, governará apenas para uma parcela da população, marginalizando metade do país – que jamais poderá participar das decisões.

Pensem nisso…

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Quotas

Fernandinho Feriado, vereador negro e gay de SP, quer acabar com cotas para negros em concursos públicos para a prefeitura. Ele é um opositor ferrenho das cotas raciais em todos os níveis. Chama esse processo de coitadismo e vitimismo e usa a si mesmo como exemplo de meritocracia. “Se eu venci sendo negro, qualquer um consegue“.

Eu pergunto: quem seria a favor da discriminação? Se nascemos iguais deveríamos todos ser tratados iguais, certo? Portanto, seria justo pensar que qualquer sujeito que acredita que “somos todos iguais perante a lei” defenderia o fim das cotas raciais e sociais (positivamente) discriminatórias.

Verdade. Todavia, o fim das cotas não é a questão, mas quando. Eu mesmo serei o primeiro a festejar o fim das cotas quando elas não forem mais úteis e necessárias para acelerar o processo de equidade, e não precisemos mais dessa ferramenta para tapar o fosso que separa brancos e negros surgido com quase 400 anos de escravidão. Da mesma forma, quando tivermos uma sociedade economicamente mais equilibrada não quero mais que sejam oferecidas vagas sociais para pobres. Que todos lutem por seu espaço com igualdade de condições.

Enquanto houver racismo e a brutal iniqüidade social que separa os brasileiros em castas o dispensável não são as cotas, mas os capitães do mato que tanto a criticam.

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