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Rejeição

Há algumas semanas conversei com uma mulher sobre uma série de assuntos relacionados à sua gravidez e, depois de um certo tempo, ela fez um comentário de caráter político que me deixou curioso. Como ela tocou no assunto, resolvi espichar um pouco a conversa para entender onde ela se situava nesse espectro político. Por curiosidade, perguntei:

– Mas afinal, em quem você vai votar?

Ele fez uma cara de quem estava pensando e por fim, respondeu:

– Ainda não escolhi, mas vai ser qualquer um, menos o Lula.

Um pouco surpreso, perguntei a razão de eliminar preliminarmente o ex-presidente de suas preferências, ao que ela explicou:

– Não adianta, não gosto dele. E não adianta tentar me convencer do contrário. O Lula trata as pessoas como se fossem coitadinhas, incapazes, fracas. Eu jamais precisei de ajuda para chegar onde cheguei. Não é porque sou negra que preciso ser tratada como inferior.

Ela era, por certo, uma mulher negra de classe média baixa. Havia estudado, tinha acumulado alguns bens (normais para seu estrato econômico) e tinha seu próprio pequeno negócio. Perguntei como poderia ser essa a visão que tinha de um sujeito simples, nordestino, operário, etc. Na minha cabeça, era pouco compreensível que as pessoas mais prejudicadas por uma estrutura social injusta como a nossa rejeitassem o personagem que mais representa a esperança de reversão dessa dura realidade.

As respostas dela foram tão subjetivas que se tornam até inúteis para uma análise de suas causas. Falou coisas como “O jeito que ele olha para os pobres”, ou “as palavras (falsas) que usa para falar deles”, e até “essa mania de falar da própria mãe, pobre e retirante“. Eu me convenci de que não havia nada em sua fala sobre o que Lula havia feito de errado, mas seu rechaço se fundava sobre o que Lula é: um homem que, reconhecendo as dificuldades do povo mais oprimido – negros, pobres, mulheres, operários, gays, etc – lança sobre eles um olhar de reconhecimento e cuidado, mas que para alguns parece ofensivo.

Perguntei sobre os candidatos ricos, de outras classes sociais, preocupados com suas próprias realidades próximas, e como ela lidava com o fato de que nenhum olhar seria direcionado aos pobres e destituídos. Questionei também se ela entendia que esta rejeição a Lula nos levou a eleger um sujeito racista, homofóbico, misógino e que despreza os pobres e até a própria democracia. Sua resposta foi curiosa:

– Ora, todos são racistas; ele é apenas mais um. O Brasil é um país racista; você, lá no fundo também é – e não adianta negar. Esse presidente ao menos é sincero e verdadeiro. Transparente.

Por fim disse não aceitar nenhum tipo de postura, assim dita, assistencialista. Afinal, não é justo que os outros ganhem “de presente” o mesmo que ela batalhou tanto para alcançar. As ajudas do governo acabavam por diminuir o valor de tudo que ela havia conquistado em sua vida, algo inaceitável e injusto.

Isso me fez lembrar os médicos que reclamavam do pagamento dado às doulas. Um deles, antigo e reacionário membro do conselho médico local, dizia que as doulas eram como “verdureiras”, no sentido de atuarem em uma “profissão” sem qualquer regulamentação, e que seria injusto ganharem bem quando os médicos – após anos de esforço – ganhavam quase o mesmo que elas.

Sim, mais fácil depreciar o trabalho alheio do que reivindicar a valorização do seu.

Quando a esquerda oferece mais equidade e justiça social esta promessa incomoda algumas pessoas por parecer desmerecer suas conquistas, ao menos nesta percepção deteriorada delas. Acreditam que, para que suas coisas ganhem valor, é importante que outros só as obtenham mediante sacrifício.

As ideias socialistas geram desde sempre a ilusão de extermínio da meritocracia, como se a justiça que apregoam fosse oferecer “igualdade para os desiguais”. Na verdade apenas promete que ninguém poderá ser privado de suas necessidades fundamentais e que o trabalho deverá ser remunerado com equilíbrio e sem exploração. Porém, diante da proposta de que todos devem ser remunerados com justiça, é chocante ver o quanto de rejeição isso ainda provoca.

Desisti de convencê-la a trocar seu voto, mas ao menos deixei claro que sua escolha era muito mais baseada na aversão à ideia de justiça social e muito menos nos defeitos de Lula. Ou seja, seu preconceito estava mais ligado às virtudes do que às imperfeições do candidato. Por outro lado, percebi que esse tipo de discurso é muito mais prevalente do que se pensa, e que é importante escutar o que estas pessoas têm a dizer.

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Pagar a conta

Oi amor, vamos rachar essa conta?

O galãzinho da Globo disse em uma entrevista para a TV que não acha justa a obrigação de pagar as contas em um encontro com uma garota. Falou também que não se importa de pagar a conta do restaurante para amigos e namoradas, mas que se sente desconfortável com essa expectativa, como se esse ônus fosse obrigatório, e esta atitude seria “o que se espera de um homem”. Obviamente identitáries reclamaram do comentário.

Estranhamente eu vi este mesmo tipo de reclamação vindo exatamente das mulheres durante décadas, e sempre achei uma justa reivindicação. Muitas me diziam que não se importavam de cozinhar e/ou lavar a louça para o marido ou a família, mas se diziam indignadas com a naturalização que se criava sobre essa função, como se esse fosse o papel a ser desempenhado pelas mulheres. Como se ao ver uma pilha de louça suja na pia fosse natural e lógico que a obrigação de limpá-la recaísse sempre sobre elas.

Ora…. serei mais uma vez o “chato da equidade”. Se é possível reclamar de velhas construções sociais incidindo sobre as mulheres, porque seria injusto ou errado que os homens também questionassem seu papel de “pagadores compulsórios”?

Eu tenho a mesma posição em relação às pessoas ou instituições que sempre quiseram me pagar coisas. Nestes momentos eu lembrava das palavras do meu irmão, que sempre dizia: “Tudo que é de graça é muito caro”. Por isso a minha eterna posição rabugenta em relação às indústrias farmacêuticas e seus “presentinhos”. Eu sabia que jamais me dariam uma caneta, um jantar, uma viagem ou o ingresso em um congresso apenas pelos meus belos olhos; ele queriam a minha assinatura nas receitas pois sabiam que eu era a ligação fundamental entre o chão da fábrica de drogas e a boca do paciente. Seus agradinhos serviam para me seduzir a prescrever suas bugigangas, e para isso não titubeavam em me comprar com espelhinhos e miçangas.

Com o tempo eu fui abandonado por todas as empresas de medicamentos, a ponto de nunca mais receber nenhuma em meu consultório – o que me deixou muito orgulhoso.

“Ah, mas você vê maldade em tudo”. Não!!! Vejo a realidade da relação capitalista e me permito enxergar por detrás do meramente manifesto aos sentidos mais grosseiros. Muitas mulheres sacam rápido quando os homens pretendem exercer um poder sobre elas através do pagamento das contas, mas poucas se apercebem como será difícil contornar a situação depois de terem recebido a sua parte. “Ou dá ou desce”, sempre foi o mantra de quem tinha o volante nas mãos. Por trás destas dádivas (dos homens, das mulheres, das empresas, etc.) existe a expectativa de uma contrapartida, e quem se nega a enxergar isso é tolo ou perverso.

Só há uma forma de se proteger: não aceitar nada “de graça” se você desconfia que existe uma clara intenção de receber um “benefício” posterior, caso contrário a sua dívida ficará ativa. Mas, pra não dizer que não falei de flores, muitas vezes existem razões bem óbvias para deixar alguém lhe pagar, como por exemplo uma amiga que sabe que você está mal de grana, ou o namorado que acha que “é a sua vez de pagar”. Não é necessário criar um modelo de absoluta paranoia. No meu caso, quando as pessoas dizem “Deixa que eu pago, você é nosso convidado” eu aceito, porque sei que farei o mesmo quando for a minha vez de convidar.

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Amigo do Rei

Sou do tempo dos privilégios explícitos. Na minha época as credenciais médicas para atendimento eram dadas a amigos e correligionários. Credenciais do IPE (estadual) e INAMPS (federal) eram oferecidas com caráter político e de amizade pessoal. Era o padrão da época, e quase ninguém achava estranho ou imoral.

Quando os governos de esquerda assumiram a prefeitura da minha cidade resolveram acabar com a “farra dos postos de saúde”. Até então, os médicos com carga horária de 20h semanais compareciam por menos de uma hora pela manhã, “atendiam” 10 pacientes e corriam para o seu outro emprego – ou para o consultório. Eram obviamente mal pagos e isso criava uma equação perversa: “eles fingem que nos pagam e nós fingimos que atendemos”. A conta? Os pacientes acabavam pagando, como sempre. Na briga do rochedo contra o mar quem apanha é o marisco.

Zeza era enfermeira chefe de um posto de saúde nessa época e, quando passaram a cobrar os horários dos médicos através do “livro ponto” ela chegou até a receber ameaças. Retirar privilégios sedimentados de uma classe poderosa é uma tarefa das mais difíceis e penosas.

Há uns 15 anos tive de realizar uma pequena cirurgia e resolvi procurar um colega de longa data. Boa praça, bon vivant, sério e um ótimo cirurgião. Fui até seu consultório, mostrei meus exames e ele confirmou a necessidade de realizar a operação. Conversamos longamente sobre os velhos tempos, o destino dos antigos colegas e os momentos engraçados que passamos juntos.

Restava decidir onde a cirurgia seria realizada. Poderia ser no hospital particular onde ambos operávamos, mas como eu não tinha convênio algum – por razões ideológicas – a hospitalização haveria de ser privada (e cara).

Foi então que o cirurgião deu uma ideia…

– Posso lhe operar no hospital público. A fila para cirurgia tem vários meses de espera, mas posso abrir um horário fora da escala, ao meio dia, e opero você na hora do meu almoço. Não tiramos o lugar de ninguém, não furamos a fila e eu abro uma sala extra. Que acha?

Não tive nem tempo de pensar e concordei. Afinal, à primeira vista parecia razoável. Ninguém seria prejudicado e o médico doaria seu horário de almoço para a minha cirurgia. Feito.

O passo seguinte foi o colega ligar para o hospital. Pediu para falar com o setor de marcação de cirurgias. Explicou o desejo de abrir um horário de cirurgia extra, ao meio dia, para operar um colega.

Depois dessa explicação escutei um demorado “hum-hum” ao telefone. Passados alguns minutos ele agradeceu e desligou.

– Nada feito, Ric. Gertrudes, a secretária do bloco cirúrgico, me disse que se eu abrir um horário novo para cirurgia ela vai chamar o próximo da fila. Disse ainda que as cirurgias em horário especial e a pedido do médico estão proibidas há 1 ano. Quem quiser trabalhar em horários extras o fará dentro das regras e obedecendo a fila dos pacientes do SUS.

Quanto escutei sua explicação foi como se um clarão aparecesse na minha frente. A normativa fazia todo o sentido!! Não haveria porque dar aos médicos o direito de burlar as filas de cirurgia ou de exames especiais, mesmo que fosse no seu horário de almoço, até porque não havia apenas a doação do seu tempo pessoal, pois o hospital inteiro estaria à sua disposição.

Depois de ouvir as razões da funcionária da marcação cirúrgica, e quando ela tomou corpo em minha compreensão, fiquei orgulhoso da negativa. Sim, fiquei feliz que um erro que eu estava cometendo tivesse sido impedido. Percebi que havia uma nova diretriz para coibir privilégios, fazendo com que o hospital público fosse usado de forma equânime e justa, respeitando a igualdade entre todos os usuários.

Falei para o colega que eu faria um esforço e pagaria a hospitalização, sem problemas, e marcamos a operação para o hospital privado. Na saída meu colega me cumprimentou e ainda arrematou…

– Desculpe o contratempo. Não deu para marcar a cirurgia no hospital do SUS. Hoje em dia essas funcionárias se acham mais importantes que os próprios médicos. Isso está assim desde que o PT entrou. Que raiva…

Ele nunca soube que essa demonstração de respeito às pessoas simples – as que não tem amigos cirurgiões – foi algo que me marcou profundamente e que me fez respeitar ainda mais os governos populares.

Percebi também que o que mais irrita as pessoas à direita no espectro político é a ousadia dos comunistas de acreditar que não existem privilégios sagrados, corretos ou justos. Também a eles incomoda a ideia de que, para o surgimento de um país mais igual e fraterno, todas as vantagens espúrias devem ser exterminadas.

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Pensamentos mal humorados

“Insistir na proposta neoliberal, o mesmo modelo fracassado que falhou em todos os lugares nos quais foi implantado (vide Chile), é aceitar a opressão de milhões em nome de uma fantasia.”

“É curioso como os espíritas têm – quase sempre – uma postura reformista relacionada ao capitalismo. Quase todos acreditam que a “evolução espiritual fará o sujeito menos egoísta e mais caridoso”. Ou como me diziam muitos, “Não importa o sistema; qualquer um será bom ou ruim, dependendo da pureza da alma das pessoas”. Segundo me dizia um ex-amigo “No futuro os empresários se negarão a explorar as pessoas porque terão Jesus no coração”. A ideia que perpassa é a de que o capitalismo, quando bem administrado, subverteria sua própria essência – o capital – e se tornaria humanista.

Nada pode ser mais ingênuo do que isso. Aguardar que a justiça social seja oferecida graciosamente pelos opressores é um absurdo tão gigantesco quando imaginar que na história do mundo alguma liberdade foi alcançada por “dádiva” – e não for luta e sacrifício. Já a caridade, para os espíritas, significa distribuição de rancho e roupinha para pobre; sopão e festa de Natal para criança. Em outras palavras, alívio das culpas acumuladas pela vida burguesa”, exatamente a mesma prática dos empresários picaretas e selvagens, ou das senhoras da alta sociedade que fazem chazinho beneficente para auxiliar a enfermaria de pediatria da Santa Casa.”

“A caridade espírita é cristã: ou seja, visa MANTER A POBREZA para que a caridade e os caridosos continuem necessários e exaltados. Nossa caridade é um dos braços mais poderosos para a manutenção da miséria. Por isso as instituições internacionais ajudam tanto os identitários: para manter a sociedade dividida e manipulada, ávida por ajuda que caia do céu.”

“Estou farto dessa caridade dos caridosos. O mundo não precisa dessa esmola, dessas migalhas. Precisamos de justiça social, equidade, respeito à natureza e o fim do capitalismo. Ou como diria HOJE Alan Kardec “Fora da justiça social não há salvação”. Não é?”

“O Terceiro setor – as ONGs e similares – são a representação inequívoca da falência do Estado. Tapadores de buracos. Participei de várias a vida inteira, e com orgulho – especialmente da ReHuNa – mas sempre soube que nossa existência era a imagem perfeita da incompetência do Estado para realizar estas funções. Eu gostaria que a ReHuNa deixasse de existir, por ser desnecessária. Os colegas que ainda estão lá, entretanto, serão necessários ainda por um bom tempo.”

“Quando ouço falar de “Hospital de Caridade” me dá calafrios. O mesmo mal-estar que eu sentia ao ouvir o nome completo da Santa Casa: “Santa Casa de Misericórdia” que deixava claro que você só estava sendo atendido lá porque alguém teve PENA de você (movido pela misericórdia, que meu filho chamava de “meremecórdia”), e não por ser seu direito constitucional à saúde. Eu pergunto: desde quando cidadão precisa “caridade”??? Saúde não se ganha, se conquista através de políticas públicas. Filantropia é um remédio amargo e indigesto, cuja finalidade é manter um sistema injusto e cruel através da dominação e dependência. Qualquer país minimamente decente acabaria com todos os sistemas de filantropia interna.”

“Quem assumir em 2022 receberá um país dividido, em frangalhos, com a infraestrutura destruída por Moro e depois complementada por Bolsonaro/Guedes, sem emprego, sem estatais para alavancar o desenvolvimento, com teto de gastos e ainda controlado por uma elite financeira exploradora e uma burguesia de rapina, as mesmas que escondem dinheiro no exterior.”

“Nunca houve ‘taxação justa’ do setor produtivo, muito menos agora onde a sonegação bate recordes.”

“É preciso subjugar as forças armadas golpistas, exterminando o padrão reacionário que existe em seu seio tal como bem conhecemos. É preciso punir os militares assassinos e corruptos, como o comandante dos massacres do Haiti. Sem o fim do “partido militar” e de seus militantes nunca avançaremos. Precisamos fazer o resgate da história, corrigindo o erro da “transição pós 64″. Sem isso teremos nova crise militar em poucos anos”.

“É preciso acabar com a classe burguesa no poder. Esse é um projeto de décadas, mas o único onde é possível vislumbrar um futuro possível. O fim do capitalismo é a única esperança de continuidade da espécie humana. As pandemias em sequência e o colapso do sistema capitalista são avisos claros de que esse sistema de dominação e opressão não tem mais força para manter este planeta”.

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Quotas

Fernandinho Feriado, vereador negro e gay de SP, quer acabar com cotas para negros em concursos públicos para a prefeitura. Ele é um opositor ferrenho das cotas raciais em todos os níveis. Chama esse processo de coitadismo e vitimismo e usa a si mesmo como exemplo de meritocracia. “Se eu venci sendo negro, qualquer um consegue“.

Eu pergunto: quem seria a favor da discriminação? Se nascemos iguais deveríamos todos ser tratados iguais, certo? Portanto, seria justo pensar que qualquer sujeito que acredita que “somos todos iguais perante a lei” defenderia o fim das cotas raciais e sociais (positivamente) discriminatórias.

Verdade. Todavia, o fim das cotas não é a questão, mas quando. Eu mesmo serei o primeiro a festejar o fim das cotas quando elas não forem mais úteis e necessárias para acelerar o processo de equidade, e não precisemos mais dessa ferramenta para tapar o fosso que separa brancos e negros surgido com quase 400 anos de escravidão. Da mesma forma, quando tivermos uma sociedade economicamente mais equilibrada não quero mais que sejam oferecidas vagas sociais para pobres. Que todos lutem por seu espaço com igualdade de condições.

Enquanto houver racismo e a brutal iniqüidade social que separa os brasileiros em castas o dispensável não são as cotas, mas os capitães do mato que tanto a criticam.

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