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Rosebud

Há alguns dias, meu neto de 8 anos veio me pedir para ajudá-lo a fazer uma maquete para levar à escola. Era necessário unir 3 latas de café para fazer uma torre. Entregou para mim as latas para que fossem unidas com fita colante. Quando peguei as latas percebi que estavam vazias mas com as paredes ainda sujas de café.

– Precisa limpar, Zuki, senão vão ficar cheirando a café.

Levei até a pia e comecei a lavar. Ele ficou me olhando por alguns instantes, deu um sorriso e comentou:

– Que sorte eu pedir ajuda exatamente para o especialista.

Na divisão de tarefas da Comuna coube a mim a função de lavar a louça. Esta não era das tarefas mais disputadas entre as que estavam sobre a mesa; afinal já somos 11 comunas, fora os convidados esporádicos; por certo que era uma das funções menos desejadas. Entretanto, lavar a louca, nunca foi um peso para mim. Ao longo dos anos desenvolvi técnicas para fazer deste tempo algo produtivo. Coloco fones de ouvido e fico ouvindo podcasts, entrevistas, as notícias do dia, às vezes músicas e o tempo passa muito rápido.

Entretanto, esta é tão somente uma meia verdade; de certa forma é apenas uma racionalização barata. Mesmo sem as “técnicas”, a verdade é que eu gosto de lavar a louça. Gosto do barulho da água, de organizar os pratos, dos gestos repetitivos e calmantes com a esponja, do cheiro do sabão e de ver tudo limpo no final. Tenho o costume de lavar a própria pia após a tarefa, até deixá-la brilhando. Quando quis descobrir a chave para explicar este meu estranho gosto lembrei que quando criança minha mãe colocava eu e meu irmão mais velho a ajudá-la nas tarefas após o almoço. Era uma rotina diária, e só podíamos brincar depois de terminá-la. Quando bem pequenos ela contava histórias sobre as aventuras de dois garotos: Patrick e Bolão. Quando ficamos mais velhos, ela ligava o rádio e ficávamos escutando “2001”, um programa de ciência narrado por Flávio Alcaraz Gomes, ícone do rádio gaúcho, transmitido pela saudosa Rádio Guaíba (que ainda existe, mas se transformou em um antro bolsonarista). Aliás, foi ele quem adaptou para o rádio brasileiro a “Guerra dos Mundos“, de Orson Welles.

Por certo que a lembrança destas cenas de convívio com a minha mãe no passado criaram pontos de luz na memória, transformando uma tarefa enfadonha em uma atividade quase lúdica. Lá nas profundezas escuras do meu inconsciente profundo ainda escuto a voz da minha mãe contando as histórias enquanto passo detergente nas panelas. Na verdade, qualquer sujeito que procure atividades prazerosas em sua vida acabará encontrando conexões com fatos escondidos do passado.

Em Cidadão Kane o protagonista morre dizendo o nome do fabricante do trenó com o qual brincava no dia em que foi levado de casa para viver com a família que o adotou. Orson Welles desejava, mostrar que a construção do Império jornalístico de Charles Foster Kane (baseado no barão do jornalismo americano William Randolph Hearst) estava ancorada em um trauma do passado: o desligamento precoce dos laços que tinha com a mãe e a família. Aliás, o fato de Kane ter o nome do meio “Foster” (adotivo) já deveria nos acender um alerta. Sua fortuna imensa e seu poder estavam concentrados na solução da dor profunda criada naquele dia, como um buraco negro poderoso que o sugava de volta para aquele momento decisivo.

Todos carregamos nossos “Rosebud” particulares; eles podem ser vistos em nossas manias, fixações, desejos, fetiches, taras e prazeres. Somos constituídos por estas marcas feitas de lembranças do passado, que nos ligam ao prazer e à dor de forma intensa e vívida, mesmo quando a conexão consciente já foi há muito perdida na neblina do tempo.

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Virgindade

A Revista POP, com Rita Lee e Marcucci (criador da banda Rádio Taxi) na capa, mostra um aspecto interessante da minha juventude: em 1978 ainda havia espaço para debater “virgindade”. Ora, não se debate mais virgindade porque não é mais necessário; sobre esse tema não há mais um tabu como outrora. Na minha juventude era possível até cancelar um casamento pela noiva não ser virgem. Havia constrangimento sobre a vida sexual das meninas naquela época, e só por isso era preciso escrever artigos e matérias em revistas populares. Hoje o fenômeno é outro: uma onda neoconservadora liderada por denominações cristãs e voltaram muitas regras da minha época estimuladas pelo pentecostalismo, que é uma doença social da nossa era.

Eu vivi essa época. Virgindade era um assunto debatido inclusive em programas de TV, e até chamavam pessoas da Igreja como debatedores. Já na época eu me perguntava, olhando o jovem clérigo discursar sobre a importância de chegar “pura” ao altar: que se pode esperar do “padre eterno que nunca foi lá” falando sobre esse assunto? Que sabem eles daquilo que dá dentro da gente que não devia, que é feito estar doente de uma folia?

Havia uma perspectiva muito prevalente no discurso da classe média: a vantagem de “esperar” para ter relações só no dia do casamento, entrar na igreja de branco, ser pura, imaculada, etc. mas é claro que essas determinações eram direcionadas apenas às mulheres. Aos homens a iniciação sexual era incentivada, assim que houvesse possibilidade; isso diminuiria o risco de ser “bicha”. Muitos homens dessa época relatam os traumas desse tipo de violência. Na escola uma colega desapareceu das aulas e suas amigas me disseram que estava grávida. Depois do nascimento do bebê ela visitou as antigas colegas na escola e levou as fotos do casamento. Perguntei porque o vestido era rosa e todas me olharam como se tivesse dito uma enorme bobagem. “Ela não casou virgem, seu burro!!”, disseram elas sussurrando e fazendo gestos para eu fechar minha boca. Sim, até esse tipo de constrangimento era comum para as meninas.

Esse tipo de constrição sobre o exercício da sexualidade das mulheres gerava no imaginário masculino uma divisão de classes: havia aquelas “para casar”, as intocáveis, e aquelas para transar – as outras. Tive amigos da época que tinham uma noiva virgem e uma outra namorada com quem transavam. Quando questionei a um deles se achava certo, respondeu que achava justo, pois “precisava aprender com alguém” para ser “bom de cama” no casamento. Tive amigas, que agora estão com 70 anos, que casaram virgens. Uma delas me contou que havia muito controle, muita pressão, e mesmo os namorados tinham medo de exigir uma “prova de amor”. Sim, pois se ela cedesse aos seus avanços, quem garantiria que não cedeu antes para outro? Como saber se não seria infiel depois? Das mulheres era cobrada uma fidelidade à virtude.

Ainda havia muita gente que defendia essa ideia e exaltava a “honra feminina”, mas os anos que se seguiram foram lentamente sepultando essa questão nas culturas ocidentais. O debate foi aos poucos desaparecendo e talvez o que ainda resta é o tabu da monogamia – que  igualmente vai se tornando cada vez mais frágil. Apesar disso, até agora não descobri um modelo que seja mais seguro (não necessariamente melhor) do que o casamento, pelo menos no que diz respeito aos filhos. O futuro dirá se esse mito vai resistir.

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Nostalgia

Sim, é verdade que idealizar as antigas gerações é um traço comum de qualquer sociedade. Temos a mania (quem não?) de começar frases com a famosa “No meu tempo…”, e depois fazer rasgados elogios às brincadeiras, ao trabalho, à cidade, à família e às relações de amizade de outrora. Isso porque a idealização das gerações passadas obedece a mesma lógica da idealização da infância.

Fazemos isso por mecanismos psíquicos bem simples. É muito comum retirar dos primeiros anos de vida o medo, o horror e o desespero que caracterizam a infância, um período da vida onde a crueza das emoções nos assalta sem anteparos e proteções. O pânico que sentíamos de situações corriqueiras é apagado da memória como forma de proteção do Eu. Da mesma forma, mantemos na mente as brincadeiras, o amanhecer e o convívio com a família entre as mais belas imagens do filme da nossa infância, mas cortamos dele as cenas de abuso, as surras, o medo, a tristeza, a solidão, a insegurança, etc. Sobram em especial as cenas bucólicas e as fugazes alegrias compartilhadas. Da mesma forma o ideal da “família feliz” do passado não passa de um mito, pois que esta construção por vezes escondia infelicidades e frustrações sob o manto desta estrutura social.

Por certo que nas infâncias vividas na brutalidade e no ambiente de terror e ameaça – como nos “filhos da guerra” – essas memórias podem assumir um tamanho desproporcional, mas não é delas que falo, e sim da infância comum. Aliás, para essas crianças do trauma e da dor, o fato de terem sobrevivido já torna o mundo de hoje um paraíso.

Falamos dos casamentos de antigamente como “cases de sucesso”, e criticamos o caráter frágil das relações atuais. Todavia, mulheres e homens de antigamente não eram mais felizes do que hoje. Para ambos faltavam opções, em especial porque até poucas décadas atrás os relacionamentos eram muito mais fatos sociais do que uniões pautadas no amor – algo bem recente na história do planeta. Como diria Contardo Calligaris, “O casamento sempre foi um sucesso, o que atrapalha é o amor”. Se para as mulheres do passado era um terror viver ao lado de um homem violento, para os homens também era terrível continuar dormindo com alguém que os desprezava – afetiva e sexualmente. Para ambos a falta de opções era brutal, e os novos tempos ofereceram a eles a possibilidade de uma vida mais livre, mas com o risco inerente aos relacionamentos mais frágeis. Se os casamentos eram mais duradouros no passado isso se referia apenas à forma desse laço social – rígida e incoercível – mas não ao conteúdo amoroso e erótico que poderia brotar dessa relação.

Idealizar o passado é, portanto, inevitável pela seletividade das nossas memórias. Entretanto, é necessário entender os contextos e as dores que surgem do progresso. É fundamental compreender as perdas inerentes a qualquer salto tecnológico assim como dar-se conta do quanto deixamos de viver em plenitude com a natureza ao nos envolvemos na modernidade. Porém, o saudosismo não é uma ferramenta adequada para corrigir nossas rotas, pois que esconde o joio para nos mostrar apenas o trigo.

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Vícios

Uma pergunta que se faz necessária: se o indivíduo for impedido – química ou cirurgicamente – de desenvolver seu vício em crack, cocaína ou outro psicotrópico, qual outra droga ele vai eleger para completar o vazio ilusoriamente preenchido pelas substâncias das quais fazia uso?

Não esqueçam que uma margem grande dos pacientes de bariátrica desenvolvem algum tipo de adição ou transtorno psiquiátrico sério quando o vício de comer não pode ser satisfeito. O aumento dos casos de suicídio chega a 58% segundo alguns estudos.

Até quando vamos olhar para a consequência (o vicio) ao invés de reconhecer a causa (o trauma) para elucidar a longa e complexa tessitura da adição?

“Fatores como autoimagem corporal, traços de personalidade e presença de compulsão alimentar prévios à intervenção, dentre outros, têm sido implicados na evolução e no prognóstico desses pacientes”, completa Sallet. Entre os problemas, está o aumento do transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP), complicação mais recorrente nos pacientes da cirurgia.

Por outro lado, o médico diz que, em alguns casos, é possível que condições psiquiátricas prévias se agravem, ou até mesmo novas doenças surjam após a cirurgia.

“Provavelmente, essas novas patologias são resultantes de fatores como necessidade de adaptação psicossocial à nova condição e de alterações psíquicas decorrentes de déficit nutricional”, detalha Sallet. Segundo o estudo, de 20% a 70% das pessoas que procuram a cirurgia têm histórico de transtornos mentais.

Os autores do trabalho brasileiro citam outro estudo, feito em 2007 por pesquisadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, que ilustra a incidência de mortes entre pessoas que passaram pela cirurgia. Segundo os americanos, mortes associadas a acidentes e/ou suicídio são 58% maiores em indivíduos no estágio pós-cirúrgico quando comparados aos que não fizeram a operação — isso sem contar os óbitos associados a comportamentos impulsivos, como bulimia e acidentes de trânsito. A maior parte dos suicídios se deu após apenas um ano da intervenção.”

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Circuncisão – Male mutilation

Um tema que sempre me atropela quando venho visitar a Matriz (gringolândia) é a luta de muitos ativistas – “red stained men” é um deles – contra a circuncisão. Aqui este é um tema atual e que suscita muitos debates acirrados. Entretanto, nunca ouvi nenhuma menção dessa questão no Brasil, pois que ela é restrita e exclusiva dos grupos religiosos, em especial os judeus. O contrário acontece por aqui no centro do Império: quase todos os meninos passam por esse ritual que em muito se assemelha às episiotomias, em especial porque são feitas sem o devido consentimento e sobre as zonas erógenas.

Vendidos como “procedimentos médicos” seguros e higiênicos (no caso da circuncisão) e necessários para proteger o bebê (no caso das episiotomias) suas vantagens nunca foram comprovadas pelas evidências científicas. Inobstante a ausência de benefícios, estas cirurgias se disseminaram no imaginário americano por cumprirem os três princípios fundamentais que compõem um ritual: repetitivos, padronizados e (acima de tudo) simbólicos. Junto com a tonsilectomia (a tradicional retirada de amígdalas na adolescência, que era comum até bem pouco tempo) estas cirurgias podem ser entendidas como “cirurgias ritualísticas e mutilatórias” da medicina ocidental – como contraponto à clitoridectomia, usada no Oriente. Violentas, traumáticas, injustificáveis e medievais, não passam de fósseis culturais que sobreviveram à razão e à ciência. Todavia, exatamente por serem ritualísticas e refratárias à razão, sua erradicação é tão difícil.

Entretanto, há ainda um outro detalhe que me chama a atenção. Boa parte dos ativistas contra esta mutilação sexual masculina é composta de…. mulheres. Sim, elas mesmas. São em especial mães que se debruçaram sobre o assunto, perceberam os traumas e dramas envolvidos, conheceram casos dramáticos e resolveram combater uma prática que, além de nunca ter se comprovado benéfica, expropria há séculos os meninos de sua plena capacidade de prazer sexual.

Apesar da suposta usurpação de um “lugar de fala”, de ser uma sensação erótica por elas desconhecida, de advogar em nome do outro gênero e de falar sobre o que ocorre na intimidade do corpo dos homens, estas mulheres se sentem no direito de combater uma prática obsoleta e arcaica apenas porque acreditam que o mal que é feito aos homens afeta não apenas a eles, mas a toda a coletividade humana – inclusive as mulheres que eles um dia vão amar. Sim, a luta delas é plena de valor porque se fundamenta na legítima proteção daqueles homens a quem tanto amam.

Quando os homens – existem muitos hoje em dia – se dedicarem ao parto e nascimento na defesa dos direitos de mães e bebês seria bom que este princípio também fosse amplamente respeitado. Defender as mulheres – seus direitos e seu protagonismo no parto – é, em última análise, defender a humanidade inteira. Não esqueça que, mesmo que você não tenha parido, certamente nasceu do corpo de uma mulher. O parto, inexoravelmente, afeta a todos nós…

ENGLISH VERSION

Male mutilation and birth

One issue that always strikes me when I come to visit the United States is the fight of many activists – “Bloodstained Men &Their Friends” is one of them – against circumcision. Here in USA, this is a current topic and it raises many heated debates. However, I have never heard any mention of this debate in Brazil, since it is restricted and exclusive to religious groups, especially the Jews. The opposite happens here in the center of the Empire: almost all boys go through this male ritual that very much resembles the episiotomies, especially because they are done without the proper consent and in the erogenous zones

Sold by the medical establishment as safe and hygienic “medical procedures” (in the case of circumcision) and necessary to protect babies and perineum (in the case of episiotomies) their advantages have never been proven by scientific evidence. In spite of the lack of benefits, these surgeries have spread in the American imaginary by fulfilling the three basic principles that make up a ritual: repetitive, standardized and (above all) symbolic. Along with the tonsillectomy (the traditional withdrawal of tonsils in adolescence, which was common until very recently) these surgeries can be understood as “ritualistic and mutilating surgeries” of Western medicine as a counterpoint to clitoridectomy, used in the East. Violent, traumatic, unjustifiable, and medieval, they are no more than cultural fossils that have survived reason and science. However, precisely because they are ritualistic and refractory to reason, their eradication is so difficult.

However, yet another detail strikes me. A good part of the activists against this male sexual mutilation is composed of …. women. Yes, mothers, girlfriends, spouses and grandmothers. These are especially women who have studied the subject, perceived the traumas and dramas involved, experienced dramatic cases and decided to combat a practice that, in addition to never being beneficial, expropriated for centuries the children of their full capacity of sexual pleasure.

In spite of the supposed usurpation of a “place of speech”, being an erotic sensation unknown to them, advocating on behalf of the other gender and of talking about what occurs in the intimacy of the men´s bodies, these women feel the right to fight an obsolete and archaic practice. The reason for that relies on their belief that the evil done to men affects not only them, but the whole human collective – including the women they will love someday. Yes, their struggle is full of value because it is based on the legitimate protection of those men whom they love so much.

When men – believe me, there are many nowadays – dedicate themselves to childbirth in defense of the rights of mothers and babies, it would be good if this principle was also widely respected. Defending women – their rights and their role in childbirth – is ultimately to defend the whole humanity. Do not forget that even if you did not give birth, you were certainly born from a woman’s body.

Childbirth, inexorably, affects all of us.

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