Arquivo da tag: utopias

Os idosos

A maioria das pessoas da minha idade são conservadoras na política e nos costumes; isso é um fato que não é difícil de constatar. “Eu gosto desse político porque ele não é radical”, dizem. Ou, em contrapartida, “não gosto do fulano; ele é um radical, e os extremos são sempre ruins”. Quando elogiam uma personalidade pública fica nítido que se deixam ofuscar pela imagem de mídia que é produzida sobre ela, na maioria das vezes fantasiosa, produzida nos laboratórios de imagem das empresas que se ocupam da vida de celebridades. “Ahh, o fulaninho é uma pessoa super simples. Sabe que ele doou 1 milhão para os flagelados?”. Nessa fase da vida é muito comum que os “maduros” comecem a se interessar pela religião, pela morte, pelo cristianismo e coisas afins. Também os coroas se tornam céticos em sua visão política, alguns no nível do negacionismo; tornam-se ranzinzas, rabugentos e não acreditam haver possibilidade de que suas utopias da juventude possam se materializar.

“É sempre a mesma coisa, os políticos são todos iguais, é a roubalheira de sempre”. Via de regra, colocam os problemas políticos como afecções de caráter, máculas morais, não estruturais. Muitos acreditam na ideia de um “messias” no governo, no “bom ditador”, na “censura do bem”, “na ação enérgica da polícia”. Para estes, as pessoas que chegam ao poder político são corruptas, egoístas, espertas e desonestas. Curiosamente, não dizem o mesmo dos banqueiros, dos mega empresários, dos herdeiros, dos rentistas e nem sequer do próprio empresário que corrompeu o político. “Ahh, mas ele só fez isso para sobreviver e manter o emprego dos seus empregados”. Os políticos são sempre os que mais apanham: “Não sobra um, é preciso acabar com tudo isso que está aí, e colocar pessoas técnicas em posição de comando”. Assim, o Ministério da Indústria seria de…. um industrial, o da saúde deveria estar na mão de um médico, o ministério da agricultura, controlado por um latifundiário, etc., mas os coroas não pensam que estas posições sejam ocupadas por um operário, uma técnica de enfermagem ou um agricultor familiar, por certo. Seria radical demais.

Na maturidade o vigor das utopias e o colorido dos sonhos de uma sociedade mais igualitária vão desbotando paulatinamente. Não passa um dia sequer que eu não veja um colega de escola ou faculdade fazendo coro às manifestações mais reacionárias do momento, agindo de uma forma absolutamente individualista, falando de seus interesses próprios e sem qualquer perspectiva para a sociedade. Seu pensamento parece ser “Bem, já que meus sonhos de igualdade não vão acontecer, melhor que eu garanta um pouco de conforto na minha velhice; afinal, quem mais do que eu merece um descanso digno?”

Os antigos já diziam que o grande avaliador da honestidade é ter em mãos a possibilidade de efetuar o delito e mesmo assim recusar (ou recuar), o que me parece justo. Afinal, denunciar o suborno de alguém quando nunca teve sua honestidade realmente colocada à prova é sempre tarefa muito fácil. Da mesma forma eu digo que a grande prova do idealista e do sonhador é envelhecer mantendo jovens e vibrantes os seus ideais, sem deixar-se sucumbir pelo negativismo, pelo derrotismo e pelo cinismo. Manter suas ideias joviais, nutridas pela esperança e pela visão positiva do mundo é o que nos mantém jovens, mesmo quando a carroceria já não tem mais o vigor dos anos dourados. Por isso eu aceito ser comunista, espirita laico, internacionalista, anti-imperialista e ativista pelo parto normal, mesmo tendo plena consciência de que não estarei aqui para ver nenhum dos meus sonhos de adolescência se tornarem realidade.

Tomem aí, meus netos, a semente que vos deixo…

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais, Pensamentos

Utopias

Curiosamente, todas as utopias do futuro – ou do mundo após a morte – mostram um modelo social que muito se parece com o comunismo, um contexto sem classes e pacífico, e isso deixa claro que a paz só será possível através da supressão do capitalismo e da sociedade de classes, transformando nossa cultura na direção de um sistema que se importa com a equidade e a justiça social. Por outro lado, todas as distopias futuristas contemporâneas – como “Exterminador do Futuro”, “Blade Runner”, “Mad Max” ou mesmo “De Volta ao Futuro” entre outras – apontam para um porvir disfuncional, com o incremento violento e caótico das contradições capitalistas.

Isso me faz lembrar da história que Elizabeth Davis, parteira da Califórnia um dia me contou. Há muitos anos, em uma conferência, ela pediu para uma plateia lotada com centenas de enfermeiras para que imaginassem como poderia ser um “parto perfeito”. A regra para construir essa imagem mental era simples: não havia regras. Podia ser em qualquer lugar, em qualquer circunstância, com a ajuda de uma parteira, médico, xamã, obstetriz (ou até mesmo sem ninguém) e poderia ocorrer no lugar de livre escolha. Depois de alguns segundos com os olhos fechados, ela perguntou à plateia de enfermeiras obstetras quantas haviam imaginado o “parto perfeito” fora do hospital – o lugar onde praticamente todas elas trabalhavam. A resposta não trouxe nenhuma surpresa para quem conhece humanização do nascimento: praticamente todas as enfermeiras disseram que “o melhor parto possível” não ocorria no local onde elas mesmas trabalhavam, mas na segurança dos domicílios ou em uma Casa de Parto. Quase nenhuma acreditava que o melhor parto seria atendido em um hospital e por um cirurgião. Para elas a “utopia do parto” somente poderia surgir através de uma revolução no nascimento e pela mudança radical do modelo que hoje utilizamos.

Eu acredito que exatamente por isso as utopias são tão importantes. Inobstante o fato de serem distantes da realidade atual ou dificilmente factíveis, elas nos apontam o caminho a direção e o horizonte para a construção de uma nova realidade. Quando imaginamos o “parto ideal” ou uma “sociedade do futuro” e aparecem naturalmente sociedades igualitárias e partos fora do hospital isso nos mostra que insistir nos modelos atuais não parece ser o melhor caminho, e que a solução está na dura desconstrução de estratégias políticas e de cuidado que, apesar de terem valor e sentido em seu tempo, precisam ser suplantados se quisermos evoluir.

Entretanto, é essencial ter em mente que, para além do idealismo das utopias, é necessário colocar mãos à obra para que seja possível florescer a luta de classes e a revolução do parto.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo

When I’m 64

Só quem teve sorte na vida e conseguiu sobreviver à juventude pode escutar essa música dos Beatles e se sentir pessoalmente homenageado. Paul escreveu essa música “When I’m 64” quando tinha apenas 15 anos. Alguns críticos depois chamaram esta canção de “retro-rock”, e Paul a tocava para homenagear seu pai quando ele completou 64 anos. A música fala do medo sincero de um jovem querendo saber se a mulher que amava ainda o desejaria quando tivesse 64 anos. Para isso, mostrava a utilidade que ainda poderia ter nessa idade.

“Eu poderia ser útil, consertando um fusível
Quando suas luzes se apagarem
Você pode tricotar um suéter perto da lareira
As manhãs de domingo iríamos passear
Fazer o jardim, arrancar as ervas daninhas
Quem poderia pedir por mais?”

A verdade é que muito do amor que a nós chega se refere à utilidade; quando essa se esvai com os anos percebemos que somos lentamente deixados de lado. Essa é a lei da vida, e não há porque acreditar que ela não contém sabedoria. O que seria do mundo se os nossos ídolos ainda fossem os mesmos e as aparências não enganassem ninguém? Quando esse amor é recebido por milhões – como os artistas e os políticos – a dor é ainda mais sentida, mais intensa, porque se assenta sobre uma fulgurante ilusão. Para estes, envelhecer é um processo muito mais dramático e sofrido, essencialmente porque a torrente de amor que recebem fecha suas comportas tão logo deixam de ser o material eleito para as nossas fantasias.

Uma grande amiga, que já passou dos 70, mas que foi sempre uma mulher linda, certa vez me contou de sua história com a idade. Disse-me ela que “Há alguns anos, enquanto eu caminhava pelas ruas da minha cidade, eu percebi, com horror e espanto, que os olhos dos homens já não acompanhavam minha trajetória. Voltei para casa devastada, olhei no espelho para entender o que havia acontecido, e percebi que naquela manhã eu havia recebido o primeiro aviso de que não era mais útil ao desejo alheio”. A declaração sincera e triste desta amiga me ajudou a entender e suportar minha lenta e consistente insignificância. Aliás, a música que mais me impressiona sobre o tema da desimportância que nos envolve insidiosamente é “Duchess”, do Gênesis.

Manter-se útil – e amado – até o fim dos seus dias é uma tarefa muito complexa. É necessário reformular completamente a forma de encarar a vida e suas relações. Aceitar limitações, absorver as novas ideias e reconhecer a validade de sua experiência, mas perceber que ela não é a resposta para todas as perguntas. Ficar velho é descobrir a derradeira forma de ser; para alguns sua melhor versão, para outros o reinado do mau humor e do ressentimento. O velho nada mais é do que o jovem sem as máscaras com as quais a juventude convenientemente o escondeu. Para mim, envelhecer significa absorver o que a vida ainda tem a lhe oferecer, enquanto estende a todos o que a vida lhe garantiu graciosamente. Significa também rever seus erros e falhas, reconhecendo sua condição humana falível e frágil. É tempo de dizer adeus às ilusões, e abraçar com fervor as utopias. Era isso…

Feliz-me 64.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Utopias

No YouTube vejo mil cursos dizendo para você crescer, sair da sua “zona de conforto”, ser um vencedor e conquistar aquilo que você merece e que só não ganha por preguiça – ou falta de oportunidade. A totalidade deles se baseia na ideia de que você pode ganhar o dinheiro que os outros estão perdendo, aprender a lucrar com as brechas do sistema financeiro, lucrar com “mercados emergentes”, se fartar na flutuação da bolsa ou encher o c* de bitcoins, bastando para isso entender as manhas do grandes vencedores.

Tudo isso terá como resultado final ganhar muito dinheiro, vencer na vida, ser reconhecido, ficar famoso, usar uma peruca legal, viajar pelo mundo, conhecer mulheres incríveis em seus biquínis minúsculos deitadas de bunda pra cima na proa da sua lancha ancorada em uma praia do Mediterrâneo. E eu achando que uma utopia bem mais divertida seria ir com os meus netos passar um fim de semana na praia do Pinhal ou visitar a concha acústica de Cidreira.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Utopias e Zumbis

Muitos se assombram que Geraldo Vandré tenha se tornado um reacionário na maturidade depois de ter embalado nossos sonhos de justiça e equidade com a trilha sonora da nossa adolescência ao compor “Prá não dizer que não falei das flores”. Essa música era cantada em onze de cada dez acampamentos onde houvesse um violão e a luz flamejante das utopias. Sim, e também garotas…

Eu não me assombro. Vandré tinha 30 anos quando sobreveio a ditadura e 33 anos quando sua música ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção em 1968. Era, na minha perspectiva de terceira idade, um garoto. Quando penso nele lembro muito bem dos amigos de juventude que hoje são reacionários – e muitos deles fanáticos bolsonaristas – mas que na juventude compartilhavam comigo sonhos à esquerda. As idéias dessas pessoas mudaram, ou sua postura revolucionária era tão somente uma máscara a esconder seus medos e angústias?

Fico com a segunda opção; jamais foram de esquerda ou socialistas. Eram inconformados, amedrontados, queriam derrubar “isso tudo que está aí” (como repetiram à exaustão os bolsonaristas também), mas não se conectavam com as bases que estruturam o socialismo. Eram rebeldes, mas não tinham a dureza da luta pela sobrevivência no seu horizonte próximo.

Há uma velha piada da direita que diz que “quem não foi comunista na juventude não tem coração; quem continua da maturidade não tem cérebro”. A piada serve para tentar explicar esse fenômeno: por que tantos abandonam seus sonhos, deixam a esquerda, atiram-se nos braços do conservadorismo e assumem uma posição cínica, utilitarista e desprovida de paixão?

Eu tenho uma perspectiva freudiana sobre o tema. Primeiro, a piada do “coração e o cérebro” é apenas isso: um chiste, uma troça, um gracejo que tenta explicar um fato através do humor – e o humor, ao meu ver, é sagrado. Todavia, essa piada não tem nenhum fundamento na realidade, e expressa o oposto do que se pode constatar cotidianamente. Quanto mais se estuda o capitalismo e suas contradições mais percebemos que a solução é “socialismo ou barbárie“, já que as promessas da Revolução Burguesa jamais foram cumpridas, liberando a classe proletária da exploração e oferecendo dignidade aos trabalhadores. Portanto, a presença do cérebro pode ser mais facilmente constatada naqueles que abraçam posições à esquerda do espectro político, e nunca o contrário.

Aliás, é daí que vem o mito de que as universidades são uma ameaça ao sistema, por serem “antros de esquerdistas”, exatamente porque onde se dissemina a luz do conhecimento, em especial das ciências sociais, mais se descortinam as realidades perversas do liberalismo e do Imperialismo, produzindo naturalmente um contraponto ao modelo social e econômico corrente. Ou seja: o cérebro nos leva à esquerda, não à direita.

Entretanto, o que cede insidiosamente durante a vida é o furor sexual da adolescência e da juventude. Assim como nossas juntas, também nossas paixões enferrujam, tornam-se rígidas, perdem movimento e amplitude. Somos, com o tempo, cooptados pelo sistema e pela necessidade de sobreviver – ou pela garantia de ilusórios privilégios – o que nos dificulta sonhar pelo bem comum. Acabamos nos tornando velhos ranzinzas, que jogam a culpa das mazelas do mundo nos políticos, na corrupção, no “comunismo”, nos vagabundos, etc, esquecendo a importância que o sistema injusto e opressivo ocupa na produção da realidade cotidiana.

Vandré e muitos dos meus amigos de infância, ex-esquerdistas, sofrem da fadiga dos metais, do abandono das utopias, do cansaço do desejo, da fraqueza das convicções e da senilidade de seus ideais juvenis. Mesmo entendendo a maturação de nossas propostas, vejo na desistência dessas motivações uma espécie de “morte ainda em vida”, algo que deve ter inspirado os cineastas a fazer tantos filmes sobre zumbis. Todavia, as utopias jamais morrem; como ervas daninhas elas se recolhem e retornam em solos mais jovens, cujo viço da paixão aduba as propostas de mudança.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

Caminho das Doulas

Galeano

A inserção das doulas na atenção ao parto começou assim. Passos, lentos e graduais, em direção a um lugar que sequer sabíamos com precisão qual era. Aos poucos fomos criando, com sacrifício e cuidado, a ideia dos limites de atuação das doulas, assim como um espaço de reconhecimento da sua ocupação. No início ninguém sabia o que era exatamente isso, e sobre o doular havia duvidas e incertezas. Para muitos a gente tinha que explicar, mostrando os resultados das pesquisas e debatendo em termos de direitos reprodutivos e sexuais de gestantes. Trouxemos há 13 anos Debra Pascali para nos dizer o que o movimento nos Estados Unidos tinha a nos ensinar e a partir daí muitos grupos de formação de doulas surgiram. As doulas capacitadas se multiplicaram, mudando a face da assistência ao parto, em especial na classe média.

Para cada conquista (leis municipais de doulas, inserção em hospitais, doulas voluntárias, livros, entrevistas, matérias em jornal, etc) percebemos que mais um passo era dado para que as doulas fossem incorporadas na cultura, como personagens indissociáveis da atenção ao parto. Tínhamos fé na recriação do “Círculo de Apoio” que foi a marca ancestral da atenção ao nascimento nos milênios que nos antecederam.

Cada pequena conquista é importante e nos faz olhar para um utopia distante, mas que há poucos anos sequer imaginávamos. Hoje já podemos sonhar com a ideia de uma doula para toda a mulher que assim o desejar. Se o caminho é longo também é grande nossa persistência.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Parto