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Homens

Sou um defensor do masculino desde que, na condição de marido, lutei pelo direito de estar presente no nascimento dos meus filhos. E minha posição não foi baseada no benefício que isso poderia trazer à minha esposa à época; muito mais do que isso, foi pela crença de que minha presença nos partos seria benéfica para mim, na construção constante do homem que pretendia ser. Assim, minha trajetória na humanização do nascimento não se estabeleceu numa perspectiva identitária; não acredito que as mulheres devam ser tratadas com mais respeito por serem especiais ou pela sua especial condição de mulheres, mas porque compartem com todos sua condição humana. Não é por outra razão que devem ser tratadas com a máxima atenção e dignidade: por serem divinamente humanas.

Por esta razão me incomodam as publicações onde os homens são tratados como “a grande ameaça às mulheres”. Dizem “se não houvesse homens não seria necessária a proteção que oferecem a elas”, como se o único risco que as mulheres correm nesse planeta está nos homens que, com elas, compartilham os espaços do mundo. Penso que tal visão deturpada do masculino é obra destes tempos atuais, onde o necessário questionamento do patriarcado resulta em exageros e distorções inevitáveis. Ora, os homens, desde a aurora da humanidade, protegem as mulheres e seus filhos da natureza indômita, de um urso faminto, de um leão, de um tornado traiçoeiro, da chuva inclemente e da falta dela, da seca trágica que nos fez movediços, da falta de comida, da escassez de abrigos, da falta de proteínas essenciais para o crescimento encefálico e na proteção da comunidade ameaçada por outros grupos.

A campanha de desvalorização e criminalização do masculino não é capaz de elevar o feminino, mas expõe uma perspectiva curiosa sobre a imagem que as mulheres fazem dos homens. Esta visão, por sua vez, não se encontra nos homens em relação ao feminino. O que se poderia dizer de um homem que viesse a afirmar “não preciso de mulher para nada”? Ora, que tolo, diríamos; os homens já nascem com a marca dessa necessidade estruturando sua incompletude; nenhum homem ousa afirmar sua liberdade absoluta das mulheres. Trazemos na memória celular a dívida impagável com as mulheres pelo ensinamento de amor que recebemos. Já algumas mulheres acreditam numa delirante autossuficiência, como se a civilização que todos usufruímos não fosse uma construção dos homens, da sua coragem, obsessão e dedicação, e da qual as mulheres usufruem tanto quanto eles.

Os homens podem ser – e não raro são – uma ameaça real para as mulheres, e a violência contra elas é uma dura realidade, mas estas também os ameaçam – e muito. Convido a pesquisar o “mapa da violência” e os dados do IPEA sobre violência doméstica. Todavia, essa não é a definição justa para os homens, assim como mulheres que espancam seus filhos não são a definição correta para “as mulheres”. Além disso, são os homens as maiores vítimas da violência que se estabelece no patriarcado; 92% de todas as mortes violentas acontecem entre os homens. Não por outra razão, uma sociedade que os obriga a matar um leão todos os dias faz com que os suicídi*s sejam 4x mais prevalentes entre eles. Que vida fácil é esta no patriarcado que faz os homens terem uma vida mais curta, com mais sofrimento por depressão, sendo eles as vítimas preferenciais de homicídios e autocídios?

Por fim, reduzir os homens a agressores violentos ou estupradores em potencial é tão danoso e grosseiro quanto reduzir as mulheres a objetos sexuais manipuláveis e descartáveis. Estas generalizações agridem a imensa maioria de homens e mulheres deste planeta. Uma minoria ínfima de homens comete algum tipo de violência contra mulheres, e colocar esta minúscula fração como sendo a imagem definidora e emblemática do masculino é uma violência absurda contra os homens e o legado de criatividade, coragem e sacrifício que fizeram para que todos – inclusive suas mulheres – pudessem acender a luz de suas casas e beber água potável da torneira, ou mesmo pudessem ler este post na tranquilidade de suas casas.

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Violência e Imprints

Uma pesquisa recente na Finlândia mostrou que as crianças violentas ou vitimadas pela violência têm uma probabilidade muito maior de se tornarem adultos desajustados e violentos. O primeiro grupo é formado por crianças e adolescentes que foram “saco de pancada” na infância, em especial na escola, aqueles que sofreram bullying, que foram maltratados por serem gordinhos, pequenos, fracos ou pouco “inteligentes”. O outro grupo era o dos seus abusadores, os espancadores, os “bullies“, os “malvadões“, os opressores. Este estudo descortina que tanto os agressores quanto as vítimas de bullying tinham um risco aumentado para crimes violentos, quando comparados às demais. Bullying é um assunto de extrema importância, até do ponto de vista da economia dos países industrializados. No Reino Unido, 16.000 crianças entre 11 e 15 anos faltam à escola pelos maus tratos dos colegas, e 78.000 faltam quando o bullying é uma entre outras razões.

Ambos os grupos são marcados pelas duas pontas da violência, seja aplicando-a ou sendo vítima dela; imagina-se que a violência seja replicada nos espancadores pelo gozo continuado de oprimir e nas suas vítimas pela necessidade de vingança, para reverter as humilhações do passado.

Todavia, estas ainda são marcas da infância, do tempo da escola ou do início da socialização. Eu me questiono quais marcas ainda mais profundas – que os psicólogos contemporâneos chamam de “imprints” – são produzidas quando a violência ocorre na primeira infância, no período pré-verbal e sendo perpetradas por aqueles que mais confiamos e dependemos, como nossas mães e nossos pais? É lícito imaginar que as cicatrizes dessas experiências precoces são ainda mais profundas e mais facilmente produzem comportamentos violentos, produto das inúmeras dores recalcadas. Uma pesquisa de 2021 mostrava que 35 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no Brasil, segundo levantamento do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No subgrupo de crianças de 0 a 4 anos ocorreu aumento de 27% nos casos. Em 90% dos casos o agressor é da família. Mas, e os sobreviventes? Que tipo de visão de mundo terá uma criança que sofreu agressões durante o período mais frágil de sua vida e ainda por intermédio das pessoas que mais deveriam cuidá-la e protegê-la? Isso sem falar das agressões tão precoces que são capazes de transformar a chegada a este mundo em um trauma poderoso – as violências no parto.

Apesar disso, em uma pesquisa de 2020 realizada com 7038 cuidadores de crianças de 0 a 5 anos residentes em 16 municípios cearenses, incluindo a capital, Fortaleza 84% dos pais acreditam que os castigos físicos e gritos (ou ambos) são importantes e necessários para a educação de crianças. Uma fração enorme dos pais e cuidadores de crianças desta região acreditam na violência como método pedagógico necessário para colocar as crianças no caminho. Acreditam mesmo que a violência, por produzir resultados imediatos como o silêncio e a obediência, seriam capazes de moldar o caráter das crianças, quando, na verdade, apenas desenvolvem personalidades cujo medo é o sentimento preponderante e a violência sua reação mais natural. Resta-nos questionar como se contrapor a essa proposta, tão arraigada em nossa cultura, que conecta educação e caráter com violência física e psicológica em crianças.

Os resultados de uma sociedade baseada na violência podem ser vistos no nosso cotidiano. Homens e mulheres de 60-70 anos, que certamente foram educados com a severidade das surras, das humilhações e dos castigos, hoje afirmam impávidos nas redes sociais: “apanhei muito, mas não virei marginal”. A resposta talvez esteja nesta violência muito precoce que sofreram ou impuseram, que ao criar este “imprint” na tessitura maleável da alma infantil, faz desabrochar na maturidade a opção pela violência física e moral.

Não lhes parece?

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Parto é Pauta

Em uma reunião político-partidária na qual estive envolvido há alguns meses escolhi fazer parte do grupo temático que debateria as questões das mulheres. Minha experiência de quase 40 anos escutando suas queixas, sonhos e alegrias (acreditava eu) poderia ser útil para o debate. Por certo que acabei chamando a atenção por ser o único homem em um círculo composto por duas dezenas de mulheres de várias partes do Brasil, de diferentes etnias e de distintas classes sociais. Mas, como acho que todos temos o direito de cultivar e expor nossas perspectivas sobre qualquer problema social, permaneci sentado aguardando humildemente a oportunidade de me manifestar. Eu temia o que estava para ocorrer, e por isso mesmo estava preparado para desafiar o padrão dos debates. A coordenadora listou, como sugestão, que fossem debatidos três temas essenciais, os quais eu já sabia de antemão que estariam presentes.

1. Trabalho doméstico
2. Descriminalização do aborto
3. Violência contra a mulher

Fácil adivinhar, não? Estes são os três temas mais comuns em todos os debates feministas, e não há como negar sua importância ou relevância. O trabalho doméstico é um ponto nevrálgico da sociedade capitalista ao manter a mulher atrelada a uma rotina de trabalho estafante e não remunerado, condenando-a à dependência econômica e/ou à tripla jornada, sacrificando sua saúde e seu lazer. O debate sobre a dinâmica desse labor é essencial para a emancipação da mulher, a qual jamais ocorrerá sem a conquista de sua independência financeira.

Já o aborto é uma questão de saúde pública mas, anterior a isso, está o direito das mulheres de disporem livremente sobre seus corpos e seus destinos. É, portanto, um tema relacionado aos mais básicos direitos humanos reprodutivos e sexuais, pois tem repercussão na saúde e na proteção das mulheres. A luta pelo aborto livre e seguro não pode faltar em nenhum debate que se proponha a proteger socialmente as mulheres e seus filhos.

Por último, a violência doméstica contra a mulher. Triste perceber que esta drama social teve um aumento de significativo durante a tragédia social dos governos Temer/Bolsonaro, mas também em função da pandemia e da crise que a antecedeu. Durante todo ano de 2020, 1.350 mulheres foram vítimas de feminicídio, número 0,7% maior que no ano anterior. O número de chamadas por violência doméstica para o 190 (Polícia Militar) subiu 16,3% e chegou a 694.131 no ano passado. Todavia, a única resposta que temos oferecido a este problema nos últimos anos tem o caráter punitivista da Lei Maria da Penha que jamais solucionou o problema da violência de gênero porque ataca apenas a ponta do iceberg: o resultado social das frustrações acumuladas transformadas em violência. Como todas as ações que apontam para a punição, esta é mais uma medida de resultados pífios; a causa, como sabemos, é a perversidade do capitalismo, porém nos parece mais fácil encarcerar pretos e pobres do que sanar nossa ferida social crônica da iniquidade e da opressão. Finda a apresentação eu sabia que a mesma lacuna desses grupos se repetiria e, por isso mesmo, pedi a palavra em primeiro lugar para que as pessoas que se manifestassem depois de mim pudessem pautar suas falas com o que eu tinha para lhes dizer. Olhei para minhas colegas de causa socialista e disse:

“É provável que a maioria de vocês nunca passe por um aborto. Algumas, espero, nunca serão vítimas de violência de gênero, ao menos por aquelas agressões mais grosseiras. Algumas de vocês talvez tenham companheiros dispostos a dividir tarefas no lar. Entretanto, TODAS vocês estarão marcadas pelo parto, sem exceção. Sim, porque se não tiveram a oportunidade de parir, ou sequer desejam passar por esta experiência, certamente chegaram a este mundo através de um parto. Não é exagero dizer que o nascimento é um dos eventos mais marcantes na vida de homens e mulheres e nele podemos ver claras as marcas do capitalismo e do patriarcado, momento em que seus valores serão impostos e reforçados.

O nascimento de uma criança é o momento onde mais ocorre violência contra a mulher, que vai se manifestar na visão diminutiva e defectiva sobre ela, nas práticas desnecessárias, nos procedimentos anacrônicos, na perda dos seus direitos, no silenciamento da sua voz e na visão depreciativa que a sociedade lança sobre suas capacidades de gestar, parir e maternar com segurança.

Não haverá nenhum avanço nas lutas das mulheres sem que o parto e o nascimento livres tenham um lugar de destaque nas lutas pela dignificação feminina. É preciso que a esquerda se dê conta da importância do parto no discurso de emancipação das mulheres. Como dizia Máximo Gorky “só as mães podem pensar no futuro, porque dão a luz à ele em suas crianças”, mas, digo eu, elas também vão parir e educar os reacionários, e por isso estas mulheres precisam encontrar no parto o momento de revolução de sua autoimagem, tornando clara sua nova trilha de autonomia, valor, coragem e liberdade – na direção do socialismo”.

Surpreendentemente todas as mulheres presentes concordaram que esse deveria ser um tópico que não poderia faltar, e muitas deixaram em suas falas depoimentos pessoais de maus tratos obstétricos, inclusive citando a epidemia de cesarianas como um aspecto dessa violência, que se mascara como cuidado tecnológico, limpo e asséptico, mas que, em verdade, é dominado por uma perspectiva autoritária e alienante, tornando as mulheres prisioneiras de uma lógica intervencionista e despersonalizante. Mais tarde o trabalho do grupo temático foi lido na plenária e fiquei muito orgulhoso de ver a violência obstétrica levada a todos os congressistas como um tema que não deve jamais ser esquecido – como historicamente o foi – nas pautas de luta das mulheres. Por fim, mesmo que ainda testemunhemos violência e abusos na atenção ao parto, não há porque naufragarmos no mar do pessimismo, pois sempre haverá motivos para manter a esperança.

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Violência doméstica

Em relação às violências domésticas em que o homem é a vítima eu lembro de uma história contada há mais de uma década, mas que me marcou muito. Quem me contou o caso foi uma paciente, advogada que trabalhava como defensora pública, o qual me fez repensar os estereótipos de “homens maus, mulheres inocentes”.

Neste relato ela diz que um homem veio lhe procurar pedindo ajuda. Era um senhor idoso, por volta de 80 anos, casado com uma mulher bem mais jovem, por volta dos 50, a qual por sua vez tinha uma filha adolescente de outro relacionamento. Esta mulher era uma cuidadora de idosos e havia tomado conta da falecida esposa do homem durante sua doença, e após a morte desta eles resolveram se casar, até para que ele tivesse alguém para passar sua pensão de militar. O homem dizia que, durante a doença da esposa, se afeiçoou muito à sua cuidadora, e resolveu ficar com ela depois do falecimento da companheira para garantir um futuro para sua filha pequena, agora adolescente.

Depois de alguns poucos anos ela passou a maltratá-lo, pedindo que saísse de casa (que era a sua casa) e exigindo que mantivesse o sustento da mãe e da filha. Batia constantemente no idoso por qualquer razão e não tinha nenhum pudor em chamá-lo de “velho”, “traste”, “impotente” e de deixar claro que não tinha qualquer interesse sexual nele. É óbvio que, por vergonha e por pudor, ele jamais pensou em dar queixa da mulher pelos maus tratos que recebia. Isso simplesmente não cabia na sua imagem de homem e militar.

Um dia esta mulher chegou à delegacia com os braços queimados e fez uma queixa de violência doméstica. Disse que o idoso, seu marido, havia jogado uma panela de água fervente nela, visando queimá-la e talvez até causar sua morte. Imediatamente depois deste relato foram tomadas as ações de praxe nessas situações: afastamento, impedimento de entrar na sua própria casa (construída por ele mesmo com a ajuda da falecida esposa), ordens restritivas e um processo por tentativa de homicídio. Assim dita a Lei Maria da Penha.

Felizmente, por morarem em uma rua de casas muito próximas, um vizinho presenciou toda a briga e contou para a advogada que a verdadeira história da agressão e das queimaduras era bem diferente da versão contada pela mulher. Em verdade, naquele dia ela teve um novo surto de violência contra o marido, mais uma vez baseado em banalidades. Agrediu verbalmente e depois partiu para os ataques físicos, com tapas e socos. Como ele era muito menor, conseguia apenas se defender com os braços. Num ápice de raiva, ela pegou uma panela com água quente no fogão e jogou sobre ele, mas errou o alvo e a água derramou sobre os seus próprios braços.

Parecia mesmo que ela desejava alguma reação violenta dele que deixasse uma marca física no corpo – um soco, um tapa ou, porque não, uma queimadura – para poder materializar a queixa que desejava fazer na delegacia da mulher. Quando viu seus braços vermelhos e ardentes, percebeu que isso já era suficiente. Foi à delegacia e as funcionárias de lá imediatamente compraram sua versão falsa da história, acreditando que seu marido de 80 anos era o agressor e ela a pobre vítima.

Eu entendo que, diante de uma história como essa, a tendência é acreditar na mulher. Afinal, de cada 100 queixas que chegam numa delegacia da mulher, talvez uma apenas seria referente à agressão de uma mulher no ambiente doméstico. As outras todas seriam violências masculinas, tendo a mulher como vítima. Por outro lado, sempre que julgamos alguém em função da religião, da cor da pele, da orientação sexual, colocando esse pertencimento acima dos fatos, isso tem um nome: “pré-conceito”. Neste caso, a mulher se aproveitou do fato de a violência doméstica ser predominantemente masculina para criar uma falsa narrativa, cujo objetivo era expulsar um idoso de sua própria casa. Num ambiente pré-conceituoso – onde as palavras e a versão das mulheres têm valor de verdade – é fácil perceber como os abusos se tornam sedutores.

É claro, como eu já disse, que a violência doméstica contra a mulher na vigência do patriarcado é um problema muito mais urgente e muito mais dramático do que as agressões provenientes das mulheres. Entretanto, essa maior prevalência de agressões na direção “homem —> mulher” não pode nos deixar cegos à existência crescente de violências e até mortes na direção oposta.

Se rejeitamos preconceitos de cor, orientação sexual, identidade sexual e religião é importante que não nos deixemos levar por preconceitos de gênero, até porque mulheres e homens são igualmente capazes de mentir, fraudar e enganar, tanto quanto de seguirem uma conduta verdadeira, honesta ética e amorosa. Qualquer ideia que se afaste desta realidade é puramente sexista.

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