Arquivo do mês: dezembro 2020

Pelé…. e Maradona

Até quando o Maradona morre o foco volta a ser o Pelé e de novo aparece a nossa incapacidade de aceitar um ídolo e herói negro para um país racista. É difícil aceitar o Pelé, não?

Acho curioso que o Pelé não pode ser referência por causa de seus erros humanos, mas a madame branca que apoiou a pedofilia pode…

Nada a ver com drogas ou “vidaloka” de um ou pela postura política à direita do outro. Pelé é criticado porque ousou ser um Rei preto num pais racista. Maradona pôde fazer filhos com todo mundo e dar porrada na mulher, mas não é negro. Aqui falam exaustivamente do “reconhecimento da filha” apenas para facilitar o ódio que sempre tiveram do Pelé pela cor da sua pele. Preto desaforado, metido…

Pelé deu declarações à esquerda no passado, mas assina camisas para presidentes de direita hoje, e por isso não é perdoado. Toda a cocaína e o álcool de Maradona, assim como as violências domésticas, recebem nosso perdão porque, afinal, ele “parece” ser um rei, e não alguém que algumas poucas décadas atrás era açoitado por um deslize qualquer.

Pelé nunca será perdoado pelo crime de ser negro.

Maradona não foi nem uma quarta parte do que Pelé foi em campo, não teve metade da sua genialidade com a bola nos pés, mas teve muito mais consciência social e muito mais engajamento nas lutas pelo povo da América Latina, e por isso merece também estar no Panteão dos gênios da raça.

Salve Maradona, salve Pelé, salve Fidel e Simón. Viva Che, viva Rosa e Ataualpa… e longa vida à unidade Latinoamericana.

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Mãe 90 anos

Hoje minha mãe estaria completando 90 anos. Este é o primeiro aniversário sem ela. Acho até engraçado um velho ter saudade da mãe, mas eu creio que chegar à minha idade ainda tendo sua mãe viva ate a pouco foi um milagre e uma bênção.

A maioria das pessoas ao meu redor não tem sequer memória de suas avós e perderam suas mães faz tempo. Com o inédito adiamento das gravidezes, colocadas pela primeira vez na história preferencialmente na quarta década, as pessoas se tornam avós muito tarde, muitos com até 70 anos!! Os avós se tornam figuras raras e fugazes, e os bisavós tão somente quadros nas paredes.

Consegui que meus netos tivessem, por um curto período, quatro de seus oito bisavós, e acho isso algo formidável em um mundo onde pela primeira vez na história se questiona o preceito de “crescer e multiplicar”.

Fora isso, digo apenas a frase que meu pai sempre repete: “Ela foi uma mulher extraordinária”.

Bença mãe…

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Racismo invisível

“PM nega motivação racista ao espancar o sujeito no Carrefour”.

O grande erro das análises sobre a morte no Carrefour continua sendo achar que a motivação racista se refere somente aos possíveis conteúdos CONSCIENTES, quando em verdade tem a ver com a estrutura social que INCONSCIENTEMENTE direciona nossas ações.

É exatamente por isso que temos um racismo invisível, até com aparência de cordialidade – ou democracia racial – porque ele está embebido na arquitetura social mais profunda, longe das luzes da consciência. Mas o fato de ser inconsciente o torna ainda mais difícil de combater. Como a violência obstétrica: quanto mais invisível, mais poderosa.

É muito difícil para muitos entender como funciona o racismo estrutural porque não percebem que nossas decisões percorrem um caminho que se situa abaixo da linha do consciente. É ali no breu do inconsciente, no escuro dos sentimentos mais primitivos e onde a luz da razão não encontra espaço, que estas escolhas são feitas.

Para entender o racismo estrutural é importante despir-se da arrogância racionalista e reconhecer a origem das nossas decisões. Somente esse mergulho nas emoções mais ancestrais nos permitirá entender porque os negros morrem nas mãos da polícia ou de seguranças enquanto aos brancos é reservado um espaço de civilidade protetiva. Os corpos negros, como se diz, são corpos “castigáveis”; violar e maltratar as carnes pretas ainda é um ato impune.

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À Esquerda

Estas são as “acusações” que a direita faz à esquerda: aborto, drogas e soltura de presos…….. mas qual a dúvida de que estas são três pautas que devemos MESMO apoiar?

A descriminalização do aborto é uma pauta de URGÊNCIA para salvar vidas de mulheres (pobres, claro) que recorrem aos abortos clandestinos, arriscando suas vidas. Sabemos como as mulheres ricas têm acesso a clínicas caras e sofisticadas, mas esta é a razão pela qual os abortos na parcela menos favorecida da sociedade são um grave problema de saúde pública.

O garantismo e o desencarceramento da mesma forma, pois prender jovens (negros e pobres, que surpresa) de NADA adianta e não diminuiu em nenhum lugar do mundo as taxas de criminalidade. Prisões são lugares infectos e fábricas de criminalidade. Abolicionismo penal é uma necessidade social e um avanço civilizatório. Abrir as prisões – e só manter lá quem atenta contra vidas – é um passo fundamental para produzir avanço social e justiça.

Por último, o que dizer da descriminalização das drogas??? E não precisa sequer ser comunista como eu para se entusiasmar, basta ser capitalista como os americanos, onde maconha não é crime e se tornou negócio rentável. Essa é uma atitude simples para acabar com a mortandade de jovens nas periferias, e não tem nada a ver com a esquerda, mas com direitos humanos básicos – uma pauta bem liberal.

Liberação das drogas, sim;
Abolicionismo penal, por certo e
Aborto livre pelo SUS…. mas é claro que os moralistas, os anacrônicos e os fascistas não estão prontos para esta conversa.

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O Bagaceiro Reaça

Depois de velho eu fui obrigado a testemunhar o nascimento de um personagem que poderia ter sido descrito por Nelson Rodrigues: o “bagaceiro reaça”.

Ele é pobre, muitas vezes desempregado e faz bicos ocasionais. Vive da pensão da mãe, com quem mora, mesmo tendo mais de 40 anos. Já teve algumas mulheres, mas abandonou a todas. É grosso, machista, misógino e, mesmo tendo aquela pele mais escura adora fazer piadas racistas (jura que é branco e que seu avô era alemão), porque são “brincadeiras entre amigos”.

É bolsonarista raiz. Mesmo já tendo várias entradas na chefatura por pequenos delitos – como punga, furto, violência doméstica e desordem – acredita que bandido bom é “bandido morto”. Adora a polícia batendo – nos outros – e faz o mesmo com os filhos pequenos. Acha que o comunismo é coisa do diabo. Vai na Igreja, paga dízimo quando tem algum, faz promessa prá Santo, toma passe no terreiro, vota sempre em empresários e gente rica, pois eles sabem como “cuidar de nós”.

Esse personagem apareceu de forma resplandecente nas últimas eleições. A mídia conseguiu convencer esse sujeito de que a sua miséria é fruto de sua falta de ambição ou de fé, e não de uma conjuntura que o maltrata desde o berço. Não há consciência alguma de classe: acredita ser um um ente sem vínculos; o que vale é o “cada um por si”.

A esquerda precisa voltar a falar com esse sujeito. Ele foi entregue para a direita mais atrasada e alienada. Usaram sua frustração para alavancar uma utopia neoliberal que se mostrou fracassada, mas que aqui ainda embala os sonhos de popular através da religião exploradora da fé e da propaganda massiva contra qualquer modelo meramente justo e distributivo.

Acredito que a tarefa da esquerda é ali, no seio do proletariado mais abandonado, para resgatar nestes o sonho de uma sociedade mais equilibrada e justa.

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Gente tóxica

A dura verdade é que “afastar-se das pessoas tóxicas” passa a falsa mensagem de que somos carneirinhos mansos e ingênuos de quem lobos tóxicos se aproximam, produzem transtornos e causam dor. Ou seja: o problema não somos nós, são os outros.

Mentira. Somos todos tóxicos, egoístas, interesseiros ao mesmo tempo em que somos fontes de luz e afeto. Não há ser humano sem sombra. Somos feitos de “silêncio e som”, como diria Lulu Santos.

Muito ouvi falar na minha infância da lenda “um bom rapaz que se envolveu com más companhias”, como se não houvesse sintonia entre aqueles que se encontram. A história era contada como “uma alma pura maculada pela influência maléfica de espíritos primitivos”. Pura fantasia indulgente.

Ora, é fácil entender que se as companhias tóxicas desaparecessem como por encanto, em poucos minutos outras apareceriam por pura atração. Como aquele casal que se separa e depois cada um encontra alguém parecido com seu antigo amor… em seus piores defeitos.

Sempre erra quem acha que resolve os seus problemas ajustando ou eliminando os outros. Não, o único modo de mudar o mundo ao seu redor é transformando a si mesmo para, com isso, mudar também os que lhe seguem.

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A Lógica do Extermínio

Mas por que não eliminar os criminosos cujos crimes hediondos nos chocam diariamente?

Porque assassinado patrocinado pelo Estado é igualmente um crime bárbaro, além de ser inútil, pois matar abusadores não diminui o abuso, da mesma forma que proibir a bebida não extermina o alcoolismo.

Penas de morte servem apenas à vingança, e esta não se presta para construir uma sociedade melhor. Se a pena de morte produzisse algum efeito diminuiriam os crimes onde ela é aplicada no Brasil – na guerra de facções das grandes cidades. Não é o que se vê. Pelo contrário; mais execuções, mais ressentimento, mais mortes em um ciclo vicioso infinito de dor e destruição.

Não se elimina o mal com extermínio, mas com acolhimento, por mais difícil que isso possa parecer. Entretanto, é o único caminho que comprovadamente funciona.

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Ethel

A pesar de estarmos procurando há vários minutos parecia se apequenar a chance de encontrarmos a rua. Com nosso carrinho pequeno alugado, parecia difícil achar no labirinto de ruas de São Paulo aquela pequena Alameda com árvores de flores roxas que conhecíamos de nossas visitas anteriores. Olhei para Ethel mais uma vez e disse:

– Erramos de novo. Eu falei que não era na primeira, mas na segunda à direita.

O carro minúsculo agora estava parado olhando impávido para o muro de uma obra, enquanto seus pneus, quais sapatinhos pretos de usar na escola, pisavam sobre velhas telhas de amianto que restaram de um desmanche anterior.

– Pode dar ré e começar de novo. Não temos tempo. Estão todos nos aguardando para o aniversário de Nora. E o jogo deve começar em alguns minutos. Apure!!

Só me restava concordar e engrenar a ré. O carrinho fez um guincho curioso e partiu de costas em direção à rua de onde viera, antes da má escolha de entrar no beco. Quando lá chegou manobrei para seguir com o plano traçado por minha vaga memória do lugar. Entrar na segunda, e não na primeira rua, exatamente como me lembrava. Mas bastou engrenar a marcha do carro e um fato me fez frear. À nossa frente estava um gigantesco ônibus de excursão, esses de dois andares, bloqueando a rua e na contramão. Sua face quadrada olhava para nosso pejôzinho de forma ameaçadora. Por instantes ficamos parados olhando um para o outro, sem saber o que fazer.

– Como esse sujeito ousa ficar na nossa frente desse jeito, e ainda na contramão? Quem ele pensa que é? Faça você alguma coisa, não fique parado!!

– Infelizmente aluguei um carro sem asas, disse eu. Carros voadores estavam muito caros. Preferi um modelito terrestre mesmo.

Ela sorriu do meu sarcasmo e voltou a olhar para a cara braba do ônibus. Senti que algo ia acontecer quando, depois de alguns segundos, o motorista pisou duas vezes no acelerador fazendo um ruidoso “Vrummm – Vrummm”. Milagrosamente vi o ônibus gigante emitir um apito conhecido e começar a andar para trás. Vagarosamente andou de ré enquanto eu o seguia, como se uma força milagrosa fizesse nosso carrinho alugado empurrar o monstro de dois andares. Mais alguns instantes e ele deixou passagem para a segunda rua, aquela que eu acreditava ser a correta para chegar na casa de Carlos. Tão logo houve passagem buzinei para a gentileza do motorista e entrei na rua de árvores com flores roxas. Liguei o rádio e começou a tocar “Soy pán, soy paz, soy más” de Mercedes Sosa, uma música que sempre me carrega à adolescência. Mais ao fundo eu vi o final da Alameda e uma placa, mas as casas eram antigas e cinzas, completamente diferentes do que eu trazia na memória. Fiquei mais uma vez desnorteado e pedi a Ethel que me dissesse o que lia na placa.

– Calle 25 de Mayo, disse ela. Com “ípsilone” mesmo, completou.

Fiquei confuso, mas minha confusão só aumentou quando percebi ao fundo o que parecia ser um estandarte azul e branco que eu bem conhecia, o qual tremulava com a brisa salobra do Rio da Prata. À minha frente vários cupês pretos de capota amarela cruzavam ruidosamente as faixas da avenida. As casas antigas e o estilo inglês agora faziam sentido.

– Estamos em Buenos Aires, Ethel. Aconteceu alguma coisa, mas creio que só existe uma explicação. Temo dizer, mas creio que você já sabe.

Ethel sorriu conformada. De seus olhos marejados surgiram dois tênues córregos cristalinos de lágrimas.

– Eu sei, eu sei, disse ela com a voz embargada, e você pode fazer o que precisa ser feito. Estarei aqui quando você voltar. Vá, não se demore. Pode ir.

Ainda relutante, olhei fundo em seus olhos verdes enquanto suas mãos frágeis e frias juntavam as palmas das minhas junto ao meu peito.

– Você sabe como fazer.

Afastei-as e bati uma vez. Repeti o gesto e parei. Olhei para Ethel enquanto meus olhos diziam “Não posso ficar mais um pouco aqui com você?”, mas ela apenas sorriu e balançou a cabeça dizendo para bater as mãos uma derradeira vez. Na terceira batida as imagens foram se apagando, tornando-se emaranhadas e confusas. Abri os olhos e pude ver, ainda buscando o foco, a porta do armário de madeira escura, pintada pelos primeiros raios de sol da manhã. O barulho dos passarinhos já era estridente, enquanto os sons desconexos da rua se misturavam com o ar do quarto. Fiquei por instantes olhando a porta, mas depois de girar meu corpo na cama encontro os olhos fechados de Ethel que ainda aguardava o seu momento de voltar. Quem sabe preferiu ficar na solidão do nosso carro alugado esperando o término da música de Mercedes.

Maurício Rosenfeld, “Delírios e blues”, ed. Brasilianense, pág 135

Maurício Rosenfeld é escritor e advogado. Nasceu em 1959 em Campo Grande – MS e desde cedo escreve para jornais e coletâneas literárias de sua cidade. Na advocacia dedicou-se à defesa das comunidades quilombolas e dos trabalhadores sem terra. Escreveu vários artigos para os jornais locais e “Delírios e Blues” é seu primeiro livro de crônicas, onde aborda seu trabalho com as populações excluídas, contos eróticos, ficção e sua paixão pelo “blues”, em especial o trabalho de Riley Ben King, mais conhecido como “B. B. King”. Mora em Campo Grande.

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