Memórias do Homem de Vidro – 07

Simulacrum

Passados alguns anos da saída da residência médica, minha inquietude com a obstetrícia atingia limites preocupantes. Já naquela época eu trabalhava em hospitais de periferia como plantonista do centro obstétrico. Nesses locais, eu po­dia vivenciar o tipo de obstetrícia que se oferecia à grande massa da população brasileira, pois a clientela atendida era basicamente formada por trabalhadores de baixa renda oriundos do cinturão de pobreza que circunda as grandes cidades. Ali, à margem dos grandes centros, os procedimentos rotineiros não diferiam muito daqueles que aprendi no transcorrer da residência médica. As condutas eram to­madas sem um critério sólido de embasamento científico, e atitudes aparente­mente banais, como abolir a tricotomia (corte dos pelos pubianos), eram vistas pelos colegas e pela enfermagem com desconfiança e, muitas vezes, com explí­cita aversão. Eu, entretanto, já estava por demais contaminado com uma forma diferenciada de entender o parto, e essa compreensão se manifestava inexora­velmente na minha prática cotidiana, tornando-se um incontornável gerador de tensão.

Meu ingresso na profissão foi cercado de desafios e conflitos inevitáveis. Algumas auxiliares de enfermagem desses hospitais eram antipáticas aos meus procedi­mentos médicos, e dentre elas algumas eram manifestamente contrárias. Diziam que não achavam correto “deixar uma mulher para ter filhos como uma galinha botando ovo”. Não aceitavam a quebra que eu produzia em um modelo de partos que elas repetiam irrefletidamente havia mais de 20 anos. Para elas, as explica­ções científicas sobre a postura de cócoras, por exemplo, eram completamente inúteis, e me diziam que, “se fosse certo nascer assim, o senhor não seria o único a fazer”. Na verdade, elas acreditavam que eu assistia partos de cócoras só “para ser diferente e chamar atenção”. Nessa época, eu já era alvo do escárnio de al­guns colegas, mas as próprias funcionárias, mulheres que tratavam de mulheres, eram tão ou mais cáusticas. Não foram poucas as que me informaram que não gostavam de trabalhar comigo, porque eu era “cheio de manias”. Minha presença era considerada uma ameaça. Minha pior “mania” era pedir que tomassem cuidado com tudo que fosse dito na frente das grávidas em trabalho de parto, porque sua fragilidade, causada pelo estado alterado de consciência, as tornava facilmente susceptíveis. A entrada de um centro obstétrico, além de ser um local de extrema violência institucional, é também um local onde se encontra muita “patologia da palavra”, que, em se tra­tando do nascimento, pode ser entendida como “a morbidade causada pelo uso inadequado de expressões, atos ou gestos que podem fazer a paciente adentrar o ciclo vicioso do medo-tensão-dor”. Maximilian, meu colega e “guru”, batizou esse processo de verbose.

Lembro-me de uma história em que a desatenção e o uso irresponsável de uma expressão colocou um grupo inteiro de pessoas em pânico. Nesse mesmo hospital de periferia, há mais de 10 anos, uma paciente adentrou o centro obstétrico com uma ultrassonografia demonstrando um abortamento fetal precoce, de menos de 10 semanas. Vinha encaminhada diretamente da clínica de ecografias, e parecia estar já conformada com a perda da gravidez. Apresentava sangramento vaginal moderado e o colo uterino estava aberto. Conversei um pouco com ela, expliquei como seria feita a raspagem uterina e pedi que o marido ficasse por perto para estar ao seu lado quando acordasse da anestesia. Ela concordou, mas pediu que eu falasse com ele, porque se encontrava nervoso e preocupado. Determinei, en­tão, que uma das auxiliares de enfermagem solicitasse a presença do marido para falar comigo.

A funcionária prontamente dirigiu-se à porta de entrada do centro obstétrico e de lá disse em voz alta, dirigindo-se para a pequena aglomeração de familiares que aguardava informações:

— Por favor, o marido da paciente que perdeu o bebê, queira entrar para falar com o médico.

Detalhe: naquele momento, estavam internadas cinco ou seis pacientes em tra­balho de parto. Para cada grávida, existem em média 2,5 acompanhantes, o que significava quase 15 pessoas aguardando, espremidas e ansiosas na pequena sala. Quando a funcionária disse essa frase, todos se ergueram em sobressalto para saber quem era a infeliz paciente que havia perdido um bebê. Afinal, poderia ser qualquer uma das gestantes internadas. Criou-se um alvoroço que só foi con­tornado quando eu expliquei a cada um a confusão, e reforcei que as suas espo­sas/filhas/irmãs, assim como seus bebês, estavam muito bem.

Apesar de a admissão nos centros obstétricos ser marcada por condutas equivo­cadas, como a narrada acima, era no interior deles que ocorriam as mais questio­náveis e insensatas atitudes. Continuava sem entender porque, apesar de termos veículos ágeis e de fácil acesso, como a Biblioteca Cochrane, os livros do Ministé­rio da Saúde e a própria Organização Mundial da Saúde, poucos médicos se inte­ressavam em discutir medicina baseada em evidências. Sentia-me isolado, por­que, diante dos meus questionamentos, meus colegas frequentemente se justifi­cavam dizendo que suas condutas estavam calcadas em “anos de experiência”, ou que “foram ensinados dessa forma pelo doutor Fulano, que era um grande mestre”. Não era fácil encontrar posturas críticas e criativas; a grande maioria re­petia atitudes e jargões padronizados. Diante desse cenário de conformismo com o modelo vigente, minha prática como obstetra que assistia “partos de cócoras” era vista como “modismo”, algo estranho e sem importância, que apenas algumas mulheres eivadas de fervor místico consideravam digno de consideração. Eu era tratado como “sonhador”, ou alguém que enxergava a medicina de forma român­tica e ingênua.

Meu sofrimento era incrementado pela ausência de explicações convincentes para as idiossincrasias da prática obstétrica. A despeito de ter percebido os maus re­sultados produzidos pela distância que mantínhamos das evidências científicas, eu ainda não tinha as respostas para uma pergunta que me torturava: por que, apesar das provas contundentes de que já dispomos, nós, médicos, continuamos a agir de forma mitológica e repetitiva, reproduzindo terapêuticas comprovada­mente inúteis e/ou perigosas para as nossas clientes? O que nos movia? Por que a distância entre nosso saber e nosso gesto? Por que nossas condutas eram tão afastadas do cientificamente comprovado como útil e seguro?

Naquela época, esse hospital tinha índices de cesarianas superiores a 45%, e questionar a validade de, por exemplo, episiotomias de rotina (entre outras con­dutas corriqueiras e igualmente equivocadas) era considerado quase um sacrilé­gio. Essas perguntas, relativas às práticas comprovadamente ineficazes ou inade­quadas, eram frequentemente respondidas pelos colegas com afirmações do tipo: “É o efeito inercial; agimos assim porque mudar é sempre complicado e difícil. Fomos treinados em um determinado tipo de proceder e nos mantemos nele por hábito”. Em uma frase que acabou famosa através de uma tese da Dra Simone Diniz, uma ginecologista explicava a razão pela qual aplicava episiotomias nas suas pacientes, apesar de saber de sua inutilidade: “Eu até tento não fazer, mas minha mão parece que vai sozinha!”. Também chamavam essa conduta repetitiva e automática de “hábito vicioso”, que poderia ser definido como a “dificuldade em mudar um procedimento previamente conhecido que nos oferece a segurança de um resultado previsível”.

Nada disso me satisfazia. Eu costumava responder a essas afirmações com uma pergunta capciosa: “Se você ganhasse um milhão de dólares na loteria, continua­ria indo para o trabalho de ônibus porque teria dificuldade em romper um hábito de 25 anos?” Nunca escutei nenhuma resposta afirmativa a essa pergunta; ninguém manteria um costume como esse sem ter uma boa justificativa. A tese de “repeti­ção inercial” ou “hábito” parecia querer esconder motivações inconscientes, que provavelmente seriam complexas ou constrangedoras demais para serem explici­tadas.

Mas que motivações inconscientes seriam estas? Tratar-se-ia, por acaso, de sa­dismo por parte dos médicos? Utilizariam eles cesarianas em excesso, enemas, tricotomias, episiotomias etc., muito além do que seria medicamente admissível, apenas para que suas pacientes sofressem intervenções injustificadas? Seriam os médicos tolos, ignorantes e cegos às realidades disseminadas modernamente sobre a validade desses procedimentos? Não pareciam ser estas as respostas. Rebater as críticas a uma prática médica cientificamente equivocada com argumentos de ordem moral me parecia uma tá­tica escapista, muito utilizada para explicar outros fenômenos sociais. Assim era com a criminalidade, tratada como uma mácula social criada pela ausência de va­lores éticos, dessa forma mascarando as questões econômicas e culturais envol­vidas na distribuição da riqueza. Não me permitiria acreditar nessa interpretação tacanha da realidade, que mais escondia do que revelava respostas. Deveria exis­tir algo mais profundo, recôndito e de difícil acesso que pudesse responder a es­sas questões.

Se as explicações eram escassas, os fatos, por sua vez, eram inquestionáveis: bastava uma passada superficial pelas estatísticas para perceber a brutal distân­cia entre realidade e evidências científicas. Na minha cidade, existiam hospitais privados em que o índice de cesarianas era maior do que 80%. Essa realidade ainda vigora incrivelmente nos dias de hoje, e depois do trabalho de Joe Potter e Kristine Hopkins (mostrando que as cesarianas não são a preferência das ges­tantes, como foi historicamente apregoado) já não podemos culpar as mulheres pela opção insensata do nascimento pela via cirúrgica. Nossa mortalidade ma­terna, que estava nessa época em um patamar superior aos atuais 75 por 100 mil nascimentos, é fortemente ligada às hemorragias e infecções — muito mais fre­quentes nas cesarianas — e está entre as mais altas do mundo, pareada com os mais pobres países da África. Onde estaria, então, a resposta para esse divórcio entre ciência e prática médica?

As explicações para o intervencionismo no nascimento humano às vezes apre­sentavam características que oscilavam entre o absurdo e o bizarro. Em uma con­versa que tive alguns anos atrás com um colega obstetra durante o congresso de ginecologia e obstetrícia da Febrasgo no início deste milênio recolhi essa pérola, que tentava explicar o índice abusivo de cesarianas no nosso país. Dizia ele, com ares de inequívoca sapiência, que o problema do excesso das cesarianas no Bra­sil estava relacionado com a miscigenação entre negros e europeus, pois criava as condições para uma desproporção céfalo-pélvica. Sendo os negros menores e mais “estreitos”, acabavam por obstaculizar o nascimento de indivíduos com ge­nes europeus, maiores e mais largos. Olhei para o colega sem acreditar na serie­dade da sua tese racista e disse-lhe: “Mostre-me seus dados! Estarei pronto para acreditar nisso se o senhor me apresentar de onde saiu essa afirmação”. Ele, ob­viamente, nunca me enviou nenhuma informação sobre isso.

Comecei então a procurar em outras áreas do conhecimento as respostas que a medicina não me apresentava, principalmente na história, na psicanálise e na an­tropologia. Passado algum tempo, caiu-me nas mãos um dos artigos mais eston­teantes sobre a obstetrícia contemporânea que eu já havia colocado meus olhos: Obstetrical Training as a Rite of Passage, de Robbie Elizabeth Davis-Floyd. Rob­bie é uma antropóloga americana e ativista do nascimento, que escreveu vários livros e artigos sobre o parto humano através de uma visão antropológica. Encon­trei esse artigo “por acidente”, ao vasculhar as referências bibliográficas do livro Obstetric Myths and Research Realities, da educadora perinatal Henci Goer. Os capítulos finais desse precioso livro são todos dedicados ao modelo que Robbie descreveu sobre as motivações para os procedimentos repetitivos e ritualísticos da prática médica contemporânea.

Foi uma descoberta reveladora e violenta. Ali, pela primeira vez, encontrei o signi­ficado da ritualística médica, tecnocracia e rituais de passagem. A leitura desse artigo — e posteriormente de todos os livros publicados pela Dra. Robbie — fez com que o meu entendimento sobre a obstetrícia desse uma guinada fabulosa, levando de roldão toda a minha vida.

Coincidentemente, poucos meses depois da leitura deste artigo, chegou na minha cidade o filme “Matrix”. Seduzido pela expectativa de um filme de aventuras e fic­ção científica, acabei sendo surpreendido por uma instigante e estonteante metá­fora para a compreensão do mundo contemporâneo, que produziu um profundo choque no meu entendimento sobre a realidade circundante. A partir de então, fiquei tão impactado com essa coincidência que comecei a traduzir o mundo em que eu estava inserido através da metáfora poderosa dos irmãos Wachowski.

Quando saí do filme, em 1999, estava acompanhado dos meus fiéis escudeiros, Lucas e Bebel. Só me permito ir ao cinema assim escoltado, porque depois de qualquer sessão se forma um debate acalorado sobre o filme, regado a Coca Light e suco de laranja. Sempre assim, mesmo que o filme seja insuportavelmente ruim. Dessa vez, não foi diferente. Saí da sessão com a nítida sensação de que havia visto mais do que um filme. Havia assistido algo que tinha a ver com a minha vida, e uma maneira específica de enxergar o mundo. Ainda emocionado, encarei meu filho Lucas e, com o dedo apontando ameaçadoramente contra seu peito, disparei:

— Lucas, não permita que seus olhos o enganem. O mundo é feito de ilusões, e a maior delas é a de que elas são obra apenas de nossa imaginação. A ilusão é a face oculta da realidade. Olhe para o simbolismo abrangente contido nesse filme. Não permita que os efeitos especiais ofusquem sua compreensão da verdade, verdade esta que se esconde por detrás do meramente manifesto aos sentidos mais grosseiros. Existe algo de Matrix aqui, nesta cafeteria. Existe algo de Matrix na sociedade em que vivemos, assim como dentro de você. Os meandros do seu inconsciente escondem porções que seriam violentas até mesmo para a sua inte­gridade. Tem certeza de que é realmente Coca-Cola o que você está bebendo?

Lucas me encarava com atenção, e certamente levou a sério o que eu estava di­zendo. Olhou para o meu dedo em seu peito e sorriu. Seu sorriso me dizia que também acreditava em uma forma outra de ver a realidade, apesar da sedução apresentada pela experiência cotidiana dos sentidos. Bebel sacou na hora. Olhou para o suco de laranja e fez cara de nojo. Voltou-se para mim, com a face ainda contorcida, e disse:

— Vou devolver esse suco, “paps”; está cheio de “bits e bytes”!

A possibilidade de analogias infinitas e criativas com o mundo que nos rodeia me pareceu fascinante desde o princípio. Entendi que o mundo, assim como em Ma­trix, é sustentado por uma arquitetura invisível, criada por nós mesmos, para nos fixar ao core system da sociedade, e consolidar os valores fundamentais sobre os quais nossa vida social se assenta. Somos tão somente seres guiados por forças incorpóreas e poderosas sem que nos apercebamos disso. Agimos socialmente tal qual marionetes, sustentadas por finos arames invisíveis ao olho desarmado. Ime­diatamente, inseri a obstetrícia contemporânea nesse cenário, e sobre essa ideia tracei os inevitáveis paralelos com o trabalho de Robbie E. Davis-Floyd, que incri­velmente não assistira Matrix.

“O que quer a Matrix?”, perguntaria em “A Pílula Vermelha” o articulista Read Mer­cer Schuchardt. “Ela quer manter a nós, humanos, escravizados pelas nossas ilu­sões, a principal das quais é a de que tecnologia não nos escraviza, e sim nos liberta.”

Percebi a existência de uma ultraestrutura que governa o atendimento às mulhe­res gestantes e que pretende conformá-las com o mundo como foi construído, para que obedeçam ao sistema sem contestá-lo. A gestação, com sua natural fra­gilidade, é o momento ideal para determinar a posição específica da mulher na sociedade, assim como ensiná-la (doutriná-la) sobre a forma como seu filho deve ser inserido na mesma. Apesar da presença de absurdos incontestes, equívocos inaceitáveis e crenças insustentáveis, a fé no sistema, e nos seus condutores, deve persistir. Olivier Clerc, pensador francês contemporâneo, alinha de forma muito curiosa a forma da medicina atual lidar com a realidade e suas interpreta­ções, pareando-a com a religião e considerando-a a sucedânea desta no imaginá­rio social, no qual a “verdade” pode ser buscada através dos “clérigos modernos”, que parecem ter trocado a batina pelo jaleco. Diz-se de Santo Agostinho, padre dos padres, a frase “Credo quia absurdum” (creio por ser absurdo), e nisso colo­cava a força de sua fé. Parece que dos médicos solicita-se o mesmo tipo de vin­culação poderosa e pré-racional a um modelo religioso e mítico, porque essa liga­ção é fundamental para a manutenção do sistema.

No que tange à obstetrícia e ao nascimento humano, hoje em dia o sistema mito­lógico, etiocêntrico, iatrocêntrico e hospitalocêntrico da medicina ocidental nos pede que acreditemos que as mulheres são incompetentes para gerar e parir seus filhos, mesmo que nos demonstrem diuturnamente sua capacidade e talento. A epidemia de cesarianas e, modernamente, as terapias de reposição hormonal, a ideologia da ablação menstrual e a proliferação de clínicas de fertilização artificial são demonstrações claras de uma visão específica da sociedade sobre o feminino e a mulher. Essas manifestações e fenômenos sociais ganham sentido contempo­raneamente porque nos levam diretamente ao âmago do sistema de valores de nossa sociedade, que se ergue em nome do patriarcado e do capitalismo, através de um modelo cartesiano de percepção da realidade. No sistema patriarcal, não há lugar para mulheres poderosas e livres. Elas devem acreditar — como os ha­bitantes da Matrix — que o lugar onde estão (o sistema de valores que as consi­dera subcidadãs) é o melhor para elas. Esse modelo é o cimento básico que nos une. Temos medo de perder o controle sobre tudo o que construímos enquanto humanidade. Uma sociedade baseada na igualdade nos amedronta.

Em um mundo que dissemina a inferioridade básica das mulheres, é necessário que elas mesmas sejam convencidas dessa realidade, assim como é necessário que o pobre se convença de que sua pobreza é obra do destino ou de sua etnia, para que o mesmo não confronte o sistema distribuidor de riquezas. Toda a cons­trução da obstetrícia contemporânea se assenta sobre a crença básica da defecti­vidade essencial das mulheres porque, baseada nesse modelo, a medicina obsté­trica poderia construir as ferramentas e tecnologias adequadas para consertar esta “máquina”, agora entendida como equivocada e defeituosa, como bem nos revelou Robbie Davis-Floyd. Mas essa visão sobre o parto não se estabelece em um vácuo conceitual. Outros acontecimentos exclusivamente femininos como a menstruação — chamada por alguns de “sangria inútil” — e a menopausa são exemplos claros de eventos fisiológicos tratados pela ciência médica como patolo­gias. Minha pergunta aos colegas na época era: que evento fisiológico masculino merece um tratamento pela medicina contemporânea?

Recebia apenas sorrisos como respostas. A verdade é que o homem não neces­sita ser tratado em sua normalidade funcional, porque ele é o espelho de Deus. Ele traz consigo a perfeição Divina in essentia. O contrário acontece com a mu­lher. Culpada, entre outros crimes, pelo “pecado original”, foi punida pelo Senhor com a pena dos partos dolorosos e do sangramento mensal. Mulheres são a falha, o desajuste e o equívoco da criação. Henci Goer, educadora perinatal americana e ativista do CIMS – Coalizão para a Melhoria dos Serviços de Maternidade fala que a medicina trata como disfuncional tudo aquilo que foge ao padrão. O parto foge dos padrões da normalidade porque não ocorre nos homens.

Levando mais adiante nossa ideia, mais do que acreditar na sua defectividade, faz-se mister que as próprias mulheres disseminem essa crença. Iniciando esse processo, é fundamental que elas sejam doutrinadas desde o berço com a ideia de que uma mulher tem uma incompetência básica inata, que faz com que qual­quer uma de suas decisões tenha que passar, em última instância, pela ordem do masculino. O parto, momento apical da feminilidade, é o momento ideal para que essas crenças sejam reforçadas e disseminadas. Ali podemos encontrar todos os valores sociais profundos encenados de forma sutil, mas poderosa. A natural abertura sensorial determinada pelo evento nos propicia a possibilidade de instruir as mulheres e seus filhos nas posições específicas que desejamos que ocupem na estrutura social. Por essa razão, o estudo da simbologia representada no nas­cimento nos leva ao cerne dos valores mais profundos que estruturam nossa civili­zação.

Olhar para esse cenário de fora da Matrix é angustiante. Uma tortura. Em Matrix, diante da verdade revelada a Neo por Morpheus, este inicialmente negou. Depois vomitou. Desperto do sono tecnocrático, não queria acreditar no que via. Não su­portou a confrontação da imagem que nutria da humanidade com a dura realidade que seu libertador lhe apresentou. Teve náusea, fruto da impotência diante de um sistema muito maior do que ele próprio. Sentiu-se fraco e desesperançado.

As pessoas que se defrontam com essa nova forma de encarar a realidade na medicina (assim como em outras áreas do conhecimento) acabam sofrendo o mesmo processo pelo qual Neo (de “novo”, mas também um anagrama de “one”, o “um”, ou mesmo “éon”, energia emanada de um ser supremo) passou ao ser res­gatado da fantasia da Matrix. Dor, sofrimento, negação, angústia, tristeza, re­morso, vergonha. Descobrem também que é necessário passar por um ritual de despojamento das falsas certezas e do orgulho rastejante para, assim renovadas, serem verdadeiramente leais com sua própria existência. Lembram que nosso he­rói fica nu ao ser desplugado? Parece mesmo a nudez de São Francisco de Assis no filme Irmão Sol, Irmã Lua, quando este abre mão de seus valores — dinheiro, roupas, crenças — para adentrar uma vida de desapego aos valores mundanos.

Não existem orgulhosos no céu.

A leitura do artigo de Robbie, que se transformou em um maravilhoso capítulo do seu livro Birth as an American Rite of Passage, me deu a exata dimensão de mi­nha arrogância e da minha estupidez, mas ao mesmo tempo me deu a esperança de que apenas através do reconhecimento de nossas próprias fragilidades é que podemos nos fortalecer. “Toda a vitória se ergue dos escombros de uma derrota”, como sempre me dizia Max. Toda relação pessoal se instaura sobre um fracasso egoico. Toda esperança se cria quando reconhecemos nossas fraquezas. Neo percebeu sua vocação libertária ao se defrontar com sua infinita pequenez e insig­nificância, mas para isso foi necessário despertar no “campo de cultivo”, as plan­tações em que a humanidade era usada como “energia barata” pelas máquinas.

Matrix está aí fora, criando nas mulheres a ideia de que, se elas se submeterem aos ditames que “sempre existiram” e que “incontestavelmente são os verdadei­ros” (em outras palavras, a “realidade expressa”, o roteiro que se aplica sobre as marcas do real), elas estarão seguras para todo o sempre. A Matrix quer fazer acreditar que sem as máquinas (tecnologia/masculino/instituição) nenhuma mulher pode arcar com suas aptidões biológicas. A Matrix não admite que o poder seja repartido ou que a fraternidade seja um modelo factível de relação entre as pes­soas. A Matrix nos diz que a estrutura básica deste mundo não pode ser mudada, sob pena de que esse mesmo mundo venha a ruir.

Ao acordar no mundo real, Neo foi avisado por Morpheus de que a dor que sentia nos olhos se devia ao fato de que nunca anteriormente havia enxergado. Ao ne­garmos a oportunidade de vislumbrar a dura realidade de um sistema de crenças centrado no poder dos que dominam a tecnologia, sucedânea contemporânea da religião, ficamos também cegos às verdades outras que surgem da própria experi­ência feminina com o nascimento. Disse-lhe também que pessoas mais velhas — e talvez aqui “velho” não esteja necessariamente ligado à idade cronológica — dificilmente eram libertadas da Matrix, porque o resultado era invariavelmente ruim.

Algumas crenças ficam tão impregnadas que não esvaecem jamais. Neo, em Ma­trix, escondia seus programas piratas em um livro que retirou da estante. Nesse livro, além de vários discos, havia um maço de notas, mostrando um aspecto mer­cantilista do personagem; era, provavelmente, o combustível para que ele pu­desse subsistir na Matrix. O nome desse livro é Simulacra and Simulation, de Jean Baudrillard. Nele Baudrillard apresenta as teses fundamentais do pós-moder­nismo. A ideia básica é de que o mundo real não mais existe, permanecendo entre nós apenas o seu simulacro. Após a criação da linguagem, o “mundo real” deixou de ser possível, como nos ensinou Lacan, sobrevivendo apenas a sua versão, construída por nós. O parto real não mais existe, apenas a variante que criamos dele, construída pela medicina ocidental contemporânea.

Remontando-nos a outro filme, O Sentido da Vida, no capítulo “O Milagre do Nas­cimento”, os comediantes ingleses do Monty Python nos mostram uma cena de nascimento hospitalar contemporâneo, em que aparece como estrela principal não a mulher parindo, mas a máquina que faz “ping”. Indagados pela angustiada paci­ente do que se tratava tal máquina, explicam, orgulhosos, que essa tecnologia era a que “poderia dizer se o bebê ainda estava vivo”. No caso, era a tecnologia quem ditava as percepções maternas, como na famosa imagem apresentada por Robbie em uma de suas palestras, na qual uma mulher observa o monitor fetal acredi­tando que os batimentos cardíacos que ela escuta são verdadeiramente produzi­dos pela máquina, e não pelo seu bebê. A verdade subjugada pela sua interpreta­ção.

O Dr. Marsden Wagner, da OMS e ativista da humanização do nascimento (que para a minha trajetória funcionou como Morpheus para Neo), costuma contar a história de que, falando para médicos em grandes audiências, solicitava: “Ergam o braço quem dentre vocês já acompanhou um parto domiciliar”. A reação era inva­riavelmente a mesma: em uma plateia de 400 médicos, nenhuma mão se erguia. Aqui aparece a face pós-moderna mais dolorosa da medicina: perdemos total­mente o contato com a realidade do nascimento. Perdemos seu odor, seu clima, sua temperatura e gosto. Nós, médicos, só conhecemos a sua representação, seu simulacro, sua imagem refletida na parede da tecnocracia. Continuando o raciocí­nio do articulista Dino Felluga, no seu artigo Matrix: Paradigma do Pós-Moder­nismo ou pretensão intelectual?, “fizemos um roteiro tão assemelhado com a ver­dade que aquele se justapôs a esta. Hoje em dia, a realidade é que se desfaz por entre as linhas riscadas do mapa”. Mentimos o parto, falseando a natureza.

Minha mais agradável fantasia é imaginar The Farm, no Tennessee, a comuni­dade pós-hippie onde trabalha e mora a parteira Ina May Gaskin, como a Zion de verdade, onde o nascimento pode ser tratado despido das múltiplas capas que o aprisionam no mundo tecnológico. Nesse “laboratório” de afeto e sexualidade apli­cada ao nascimento, já ocorreram mais de 2000 nascimentos desde os anos 70, e a taxa de intervenção é baixíssima (índice de cesarianas de 1,4%), com resultados maternos e neonatais superiores aos melhores centros tecnológicos do mundo. Por que a obstetrícia contemporânea desvia seu olhar desse tipo de realidade? Por mais que continuemos em uma realidade artificial criada pela cultura, como disse Morpheus, “um mundo que foi colocado em frente aos seus olhos para cegá-lo da verdade”, o mundo real continua existindo como “farpa na sua mente que o faz enlouquecer”, demonstrando, através da inquietude, da indignação surda e da inconformidade, a possibilidade de questionar as ideologias dominantes. A sexua­lidade viva que emana de uma mulher parindo, ou a ideia de uma “Xanadu” pós-moderna, em que o parto poderia ser vivido como um processo de empodera­mento feminino e em estado de graça, funcionam como as mais doloridas farpas com que convivo.

Por outro lado, quais as estratégias de mudança no modelo vigente? Como con­vencer os médicos a modificar suas condutas, direcionando-os para uma postura profissional embasada em evidências e centrada nas necessidades de suas paci­entes? Além disso, como se comporta um sistema que se ergue sobre um modelo cartesiano, positivista, capitalista e patriarcal e que coloca um profissional, invaria­velmente mal pago e pressionado por resultados, como seu “ponta de lança”? Tentemos fazer esse médico mudar sua conduta profissional, mostrando que suas atitudes médicas, mesmo que aceitas por seus pares, arriscam a vida de suas pa­cientes e bebês, e ele lhe dirá que, no atual contexto médico e jurídico, apenas os que defendem o parto humanizado e a medicina baseada em evidências é que são condenados.

A realidade do dia a dia nos demonstra que os médicos são também vítimas desse paradigma, criado por todos nós. Nesse modelo, baseado no medo ances­tral da confrontação com o desconhecido, somos levados a criar sistemas de crenças e rituais que nos oferecem a ilusória ideia de controle sobre a natureza. Sobre essas crenças, passamos um fino verniz de intelecto, para que elas fiquem justificadas perante nossa visão racionalista, como nos fala Olivier Clerk. Médicos confrontados com o nascimento humano sentem medo porque esse evento foge ao seu controle, tal qual a erupção de um vulcão desobedece nossas vontades. A forma ritualística de realizar procedimentos obstétricos padronizados produz um senso de ordem cultural que se impõe sobre o caos da natureza, o que nos produz alívio, assim nos falava Robbie Davis-Floyd em Birth as an American Rite of Pas­sage.

Nosso sistema de saúde é completamente aderido à Matrix. Somos governados por um modelo de crenças tecnológico, naquilo que se chama modernamente de “infotecnocracia”, que é a “ideologia que coloca em posição de poder aqueles que controlam a tecnologia e a informação” conforme a definição do antropólogo ame­ricano Peter Reynolds. Ela se comporta como o “sistema operacional” da Matrix contemporânea ocidental. Basta olhar ao redor e perceber isso no nosso quotidi­ano. Mesmo que a biblioteca Cochrane e a OMS despejem toneladas de informa­ção a respeito da forma segura — e barata — de tratar as mulheres, grávidas e puérperas, continuamos atrelados ao sistema mitológico em que fomos inseridos, porque o modelo obedece às premissas básicas desse sistema de crenças. É o que chamaríamos de “mapa” ou “roteiro” do parto, o que Baudrillard chama de “segunda ordem da simulação”, em que o simulacro mascara a realidade. O parto tecnocrático como o conhecemos é uma alegoria do que é em verdade, e só a confrontação com o fenômeno na natureza é que poderia nos livrar do engodo da simulação.

Muitos anos depois, Madalena me ofereceria essa confrontação, permitindo-me a possibilidade de ver outra realidade. Usando a metáfora de Marsden Wagner em Fish Can’t See Water, a experiência com o parto desmedicalizado, fora do con­texto da tecnocracia, seria o salto para além da superfície do oceano, que permiti­ria ao peixe perceber a água em que esteve sempre envolvido. “Fora da infotecnocracia não há salvação”, diz o apologista da tecnologia aplicada ao nascimento humano (e que, obviamente, lucra com ela). Não conseguimos, a não ser com uma quantidade enorme de esforço e sofrimento, nos desvencilhar disso, porque os que se atrevem a sair da Matrix tecnocrática são vistos como he­réticos e perigosos. Em grego, “hairetikós” significa “aquele que escolhe”. Ter a possibilidade libertária de escolher nos torna hereges e, portanto, suscetíveis de perseguições. Curioso, apesar de trágico, é perceber que frequentemente, como Cristo ou Neo, os hereges são apedrejados exatamente por aqueles a quem ten­tam libertar!

“Tudo se resume a escolhas”, disse Neo ao Arquiteto. Escolher. Decidir seu des­tino. Fazer caminhos com suas próprias pernas. Nada mais revolucionário, peri­goso e… herético. Apenas para citar uma ritualística ainda firmemente incorporada à prática médica, temos a episiotomia rotineira realizada nos hospitais de nosso país. Nessa ques­tão específica, o bem-estar ou segurança da paciente não é o fator que mais se considera ao se traçarem protocolos. Se fosse assim, bastaria ler artigos, estudar prós e contras, e tudo se resolveria. Convenientemente, não faríamos uma cirurgia mutilatória que nunca conseguiu provar sua validade como procedimento de ro­tina. Dessa forma, a episiotomia seria realizada de forma ética e em um número muito reduzido de casos.

Não é o que acontece. Diante das evidências contra a sua realização de rotina, que se acumulam há mais de duas décadas, é muito difícil entender porque essa cirurgia é feita em até 95% dos partos no meu país, quando deveria ser feita em menos de 10%. Sem uma explicação de caráter médico, e não caindo na ingênua armadilha do “hábito”, é fundamental entender em que espaço de discussão — técnico, sociológico, psicológico, antropológico — ela pode ser inserida. Robbie, mais uma vez, mostrou-nos o caminho para a compreensão dos rituais que se de­senvolvem nos ambientes hospitalares em se tratando do nascimento humano. Existem inúmeros fatores que nos impulsionam a realizar procedimentos médicos: o mais poderoso de todos é a ritualística. É importante salientar que os procedi­mentos ritualísticos podem ser (e frequentemente o são) ao mesmo tempo simbó­licos e operacionais. Isso quer dizer que o fato de uma episiotomia ter uma expli­cação médica (mesmo que falsa) como proteger a vagina de lacerações e fragi­lidades do assoalho pélvico — não impede que ela seja realizada com um pode­roso conteúdo simbólico.

Fazemos episiotomias ritualisticamente. Também vestimos branco, usamos um jargão hermético, fazemos tricotomias e enteroclismas de forma ritual. O ritual existe no comportamento humano para conformar a realidade a um padrão racio­nal e fenomenológico previamente reconhecido. Realizamos isso no nosso dia a dia, e fazemos isso desde que o mundo é mundo, e desde que temos medo do caótico e do incerto. Essa é a razão básica pela qual lançamos mão de rituais sempre que nos deparamos com a incerteza dos fenômenos naturais. Todos estes são fenômenos dominados por uma instância superior à nossa cons­ciência, mesmo que, nos dias atuais, já tenhamos desvendado alguns segredos que estavam escondidos da nossa razão. Ainda vemos a natureza com medo e assombro. Mesmo assim, a essência desses acontecimentos continua submersa em um oceano de mistérios. Para fugir do pânico que nos assola ao olhar para a face lívida do desconhecido, criamos rituais, que tentam fazer com que esses eventos se ajustem aos nossos padrões de compreensão racional. Assim sendo, acreditamos sinceramente que o sacrifício dos carneiros poderia satisfazer a sede de vingança das tormentas e pensamos que rezar uma “Ave Maria” exatas 75 ve­zes vai fazer nosso time fazer um gol nos últimos cinco minutos da partida.

Da mesma maneira com que afugentamos nosso medo através do recurso da ritu­alística, aplicamos esse fingimento (inconsciente) na nossa arte de curar. Quando falamos de episiotomia, e da complexa ritualística hospitalar, é impossível não entender esses eventos como algo que faça parte de uma grande engrenagem, que visa a perpetuar um sistema de crenças e impedir que outras formas de com­preensão sejam estimuladas. Como visto acima, episiotomias, enemas, afasta­mento da família, roupas de CO, etc. são procedimentos que visam a nos trazer a ilusória sensação de controle sobre os fenômenos da natureza, e a ritualística aplicada tem a intenção de colocar em posição de destaque os profissionais que detêm o poder da técnica e da informação. Essas condutas automáticas e irrefleti­das ilusoriamente parecem modificar o rumo caótico (porque fora do nosso con­trole) do nascimento. Mesmo que as pesquisas demonstrem que não existe liga­ção alguma entre episiotomia e melhora das condições fetais e/ou maternas, a prática médica contemporânea a perpetua de forma ritual, mística, repetitiva e pa­dronizada, e com conteúdo simbólico subjacente. Nada poderia se encaixar me­lhor no conceito de rito.

Parece que a evidência científica, por si só, não produz quase nenhuma modifica­ção importante no nosso comportamento clínico. Esse foi o ponto de partida para a minha inquietude em relação à mitologia e à ritualística em obstetrícia. Percebi claramente que existem fatores muito mais poderosos para o controle dos proce­dimentos médicos do que aquilo que a racionalidade científica nos pode trazer. O ritual é um sistema pré-racional, portanto ligado ao desejo, e por essa razão é tão poderoso e pleno de vigor, mesmo em uma civilização pretensamente “racional”. Por outro lado, é fundamental que tenhamos em mente que os rituais não são es­colhidos aleatoriamente. Sua criação pressupõe a valorização e a perpetuação de valores profundos e ancestrais na nossa cultura.

O médico mantém e reproduz um sistema de valores que o sustenta como figura preponderante na sociedade e que cultiva os valores básicos de uma cultura tec­nocrática, mitológica, consumista, patriarcal e individualista. Médicos também são guardiões de um sistema de crenças que sustenta o mundo em que vivemos. A ritualística envolvida no parto serve aos interesses profundos dos profissionais da medicina, porque cria a ideia de uma necessidade que só pode ser sanada por quem detém um específico saber. Assim empoderados, os médicos tentam de to­das as formas manter uma situação em que se estabeleça a indissolubilidade en­tre o parto e essa tecnologia, por eles dominada. Agem inconscientemente assim, assegurando sua posição e importância social enquanto mantêm o sistema que os sustenta. O parto, que deveria ser um processo de profundo empoderamento fe­minino, acaba se tornando, na maioria das vezes, em um processo de fortaleci­mento dos médicos, das instituições e dos valores tradicionais, mantendo a mulher e o feminino em uma posição inferior e subalterna.

A mulher, relegada a uma posição de passividade e alienação, acaba sofrendo mais tarde, muitas vezes de forma obscura e inconsciente, o resultado dessas in­terferências, através de múltiplas formas: depressões pós-parto, morbidade au­mentada pelas ritualísticas excessivas (doenças, mortes, limitações), mágoas di­fusas, dificuldades na sexualidade, etc. Além disso, enquanto entendermos o con­trole da tecnologia como o zênite do proceder médico, estaremos hipervalorizando no profissional detentor desse poder/saber apenas uma qualidade específica, co­locando em um patamar secundário aquilo que é a alma do ofício médico, qual seja, o contato e o vínculo com os pacientes. Insistentemente, escutamos o atabaque da mídia insuflando em todos nós, habi­tantes da Matrix, a importância do uso de tecnologia aplicada à saúde. As notícias seguem sempre um mesmo roteiro previsível, em que as “novas tecnologias” no combate aos males são sempre as grandes heroínas, mesmo que o impacto des­sas descobertas no grande cenário da saúde mundial seja normalmente pífio. As­sim, ocorreu com a monitorização eletrônica fetal, as ultrassonografias e mesmo a própria internação hospitalar, que nunca comprovou ser superior ao parto domici­liar para as pacientes de baixo risco. Apesar de todas as confirmações científicas dessas realidades, o uso sem limite da tecnologia continua associado à questão da segurança.

“Segurança é a máscara que encobre uma verdade que subjaz: a questão do po­der”, já nos alertava Robbie Davis-Floyd. Enquanto não aplicarmos nosso criti­cismo mais intenso para modificar a forma como enxergamos o nascimento, va­mos continuar a observar o parto de uma criança como algo “feito” pelas institui­ções e corporações, e em seu próprio benefício, em vez de vermos o nascimento humano na graça e magnitude que ele contém. Continuaremos acreditando que a tecnologia desmedida pode propiciar segurança, quando ocorre exatamente o contrário. Hoje em dia, não existe muita dúvida a respeito da necessidade de cui­dados com o nascimento, e poucos se aventuram a defender a completa desas­sistência ao parto. Entretanto, a tecnologia aplicada ao parto apresenta resultados positivos até determinado ponto; a partir daí, o acréscimo de tecnologia faz ape­nas crescerem estratosfericamente os custos e aumentar a morbi-mortalidade materna e neonatal, segundo inúmeros estudos, incluindo aí o da Dra Daphne Rattner. Isso acontece tipicamente com os Estados Unidos, que aplicam esse mo­delo tecnocrático à saúde como nenhum outro país e amargam péssimos resulta­dos de saúde perinatal.

Em uma visão pessimista, misturando George Orwell com Jean Baudrillard, em um futuro possível as mulheres já não parirão seus filhos: eles serão produzidos nas chocadeiras imensas da Matrix. Lá se configurará o apogeu das tecnologias de separação, cortando definitivamente a ligação visceral de mães e filhos, já apregoada por alguns arautos dos novos tempos. Será a “Quarta Ordem do Si­mulacro” de Baudrillard, em que a simulação se torna absolutamente despregada da realidade, não guardando com ela nenhuma relação residual. A pergunta que não queria calar em minhas angustiantes divagações — como Neo, magnetizado pela palavra “Matrix” na tela do seu computador — era: por que é preciso “consertar” mulheres que estão tendo seus filhos? Seriam estes proce­dimentos ritualísticos, realizados pelos médicos nos centros obstétricos, uma es­pécie de batismo, atitudes carregadas de simbolismo que visam a conformar os indivíduos a uma determinada função social? Serei eu um “tecnobispo” a batizar todas as mulheres para adentrarem o mundo da maternidade?”

Depois de algum tempo praticando a obstetrícia, compreendi que jamais realizara qualquer dos inúmeros procedimentos ritualísticos hospitalares também chamados de “rotinas”, por serem comprovadamente necessários, ou porque acreditava nos seus benefícios. Jamais havia embasado essas condutas em evidências claras de sua adequação. Agia tal qual um autômato, governado externamente por um sis­tema invisível, e por isso mesmo muito maior e poderoso. Esse comportamento estereotipado e previsível não era sequer culpa do meu pobre professor de obste­trícia. Ele também estava adormecido, aquecido e nutrido pelo sangue que vinha do coração da Matrix, e só repetira para mim o que lhe fora ensinado. Estava à mercê do sistema, e seus músculos estavam atrofiados demais para que pudesse se movimentar. Eu agia daquela forma, afastando, invadindo, cortando, costu­rando e separando, porque assim a Matrix me dizia para agir; era levado a acre­ditar que as mulheres jamais poderiam parir (ou adentrar a maturidade social) sem que um homem (ou alguém representando o patriarcado) a autorizasse, através das “marcas” no corpo e na alma, estabelecendo um triste paralelo com o simbo­lismo da clitoridectomia, em outra cultura igualmente patriarcal e violenta.

Em Matrix, o filme, estamos todos representados em muitos dos personagens, basta decidir em que parte do filme. Podemos ser o alienado, que nada desconfia das forças poderosas que nos fazem acreditar na tecnologia como uma deusa to­tipotencial, que “enfim vai nos redimir” da nossa impureza e imperfeição. Podemos ser como as pessoas que vão para o trabalho e sentem que existe al­guma coisa estranha no ar, mas não sabem o quê, porque não pararam para pen­sar suficientemente no fato de existirem hospitais com 80% de cesarianas ou que os 5% mais ricos da população do país detêm 50% da sua riqueza. Podemos ser também como o Neo “pobre-coitado”, que vomita, chora, sofre ao ver como o mundo (interno e externo) não é exatamente como pensava ou fanta­siava. Somos muito mais imperfeitos e incompletos do que nossa infinita condes­cendência nos permite enxergar.

Por outro lado, podemos ser o Neo que percebeu que esse mundo feio é o único de verdade que temos, e que é na realidade dolorosa — e só ali — que as modifi­cações podem se processar. Esse Neo que enfrenta os inimigos — internos e ex­ternos — e que percebeu que a luta contra a opressão e a injustiça é o único des­tino daqueles que tiveram a oportunidade de enxergar mais além. Mais cedo ou mais tarde, a vida dentro da Matrix se torna insuportável, pois é da natureza hu­mana o destino de expandir-se. Liberdade é a nossa meta última. Um mundo em que prevaleça a dignidade, o respeito, a cidadania e em que as mulheres sejam vistas com igualdade, princi­palmente no momento mágico e sublime de terem seus filhos é nosso objetivo maior, e para isso qualquer sofrimento vale a pena.

Até mesmo a injustiça.

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Memórias do Homem de Vidro – 06

Exames e Vexames

Nadine sempre se vestia com elegância sóbria. Apesar de ser uma mulher linda e chamar a atenção pela beleza, nunca a vi usando uma roupa provocante. “Ele­gância é contenção”, dizia Max, provavelmente repetindo algum guru da moda. Ela sabia das coisas. Tinha consciência de que sua postura comedida era parte inte­grante do seu especial charme. Maximilian chamava isso de “nobreza sexy”. Quando ela atendeu ao telefone celular para falar com uma paciente, veio-me à mente uma cena em flashback, em que estávamos os três, almoçando no refeitó­rio do hospital durante a residência. Max estava ao meu lado e balançava a ca­beça acompanhando o ritmo de uma música, enquanto eu fazia um dos meus dis­cursos enfadonhos. Foi quando, repentinamente, Max me cutucou de forma insis­tente. Diante da obstinação de Max, eu me virei em sua direção, e ele, com os olhos arregalados, apontava com o queixo em direção à Nadine, sentada à nossa frente. Ainda sem entender, olhei para minha colega que, sentada de lado, con­versava distraidamente com uma colega. Não entendi o que falavam, mas prendi meu olhar nos seus belos olhos azuis. Novamente voltei-me para Max, que com a mão apontava para o próprio peito.

Foi quando entendi do que se tratava. Ele tentava me mostrar que Nadine estava com o último botão da blusa inadvertidamente desabotoado. Max queria dividir comigo um desses raros momentos de arrebatamento estético, em que o acaso produz a beleza. A borda de renda branca do sutiã de Nadine aparecia para nós como um presente da deusa Álea, a preferida de Max. Álea, da mitologia própria de Max, é a deusa das coisas circunstanciais, imprevisíveis e aleatórias. Pois a divindade nos brindara, naquele almoço, com um presente magnífico. Os contor­nos perfeitos, emoldurados pela renda alva, nos mostravam que, muitas vezes, a beleza se esconde em um átimo, em um instante, na fissura de um momento, em um piscar de olhos.

Nadine parou sua conversa e percebeu nosso olhar. Imediatamente levou a mão ao peito e, percebendo o botão inadvertidamente aberto, apressou-se a fechar a blusa, mas não se conteve em nos lançar um sorriso, entre envergonhado e crí­tico. “Seus tarados”, disse ela. Max soltou uma sonora gargalhada, enquanto eu, vítima inocente da trama, ficava vermelho como um pimentão. Essa lembrança voltou à minha cabeça enquanto Nadine falava ao telefone. Ela continuava linda como há 15 anos. Por que continuava sozinha? Fixei-me em suas mãos, onde o telefone celular mostrava o contraste marcante entre a médica e a mulher. Enquanto ela vestia um indefectível tailleur de linho azul, seu telefone ce­lular tinha um adesivo da Minnie, como a dizer que, por mais que ela aparentasse uma austera sobriedade, ainda lhe restava feminilidade suficiente para agir como uma adolescente.

Nosso reencontro fora combinado por mim e por havia alguns dias. Encontramo-nos na formatura de sua filha, que concluíra, como nós, o curso de medicina. Max perguntou-me onde Nadine estava trabalhando, e eu lhe respondi que ela traba­lhava no hospital da universidade, na emergência obstétrica, e que seria maravi­lhoso se pudéssemos fazer-lhe uma visita. Formáramos um trio inseparável de residentes, e Nadine sempre funcionou para nós como uma mistura de colega e musa inspiradora. Ele concordou na hora e alguns poucos telefonemas foram ne­cessários para que nosso encontro fosse combinado. Assim foi feito. Em uma tarde de outono, lá estávamos nós três de novo, mais de 15 anos passados do nosso período de residência. As caras mais velhas, algumas rugas a mais e — no meu caso — alguns cabelos a menos na cabeça. Max mantinha seu penteado desgrenhado e comprido, e Nadine agora portava a sensualidade superior das mulheres maduras.

Ela ainda estava ao telefone e pude escutar um fragmento da sua conversa:

— Nesse período da gestação, ele é muito pequeno, e frequentemente não é per­cebido naquele emaranhado de riscos e pontos. Uma ultrassonografia requer apa­relhos calibrados e profissionais experientes para interpretar as imagens. A au­sência de uma estrutura não significa necessariamente um problema. Muitas vari­áveis podem estar atuando. Imagens borradas, estruturas adjacentes complicando a visão e a própria inexperiência do examinador. Calma, minha flor. Tente ficar tranquila. Eu sei que é difícil, mas é importante.

Max me sussurrou que a conversa de Nadine só poderia ser relativa a problemas com ecografias no início da gravidez.

— Já vi esse filme — disse ele. — “Querida, encolhi o embrião”. Você já viu, Ric?

Certamente que muitas vezes, pensei eu. As ecografias tornaram-se uma febre no mundo tecnológico. Depois da derrocada dos raios-X como método diagnóstico na gravidez, as ecografias assumiram no imaginário popular, assim como nos círcu­los médicos, o papel do “exame que ajuda muito e não causa nenhum problema”.

Max odiava essa ideia.

— Ric — continuou Max —, a biblioteca Cochrane deixa muito claro que não existe nenhuma vantagem no uso rotineiro de ecografias nas gestações de baixo risco. Além disso, quantos problemas advindos de interpretações equivocadas, de falsos positivos e de erros humanos ainda teremos de suportar antes que essa prática cara e de efeitos pouco conhecidos seja efetivamente questionada?

Max tinha razão. Esperei Nadine terminar a conversa e falei para ela algo que me viera à cabeça. Uma lembrança sobre a questão de ultrassonografias e exames complementares.

— Posso lhe contar uma história? — perguntei eu. Nadine apenas sorriu e revirou seus belos olhos. Ela nunca me confessara abertamente, mas gostava de escutar minhas histórias, principalmente as divertidas. Sei disso porque alguns amigos em comum às vezes me diziam: “Nadine me contou uma história muito engraçada, e disse que aconteceu com você. É verdade?”

Aprumei-me no banco do bar e limpei a voz com um pigarro.

*   *   *

Uma vez, muitos anos atrás, quando eu trabalhava em um hospital militar, recebi no ambulatório uma paciente proveniente do interior. Vinha com a face típica das pacientes interioranas que vêm ao “doutor da capital”. Tinha por volta de 50 anos; menopáusica, três filhos de parto normal. Trazia a tiracolo o marido, a cunhada, uma malinha surrada e a indefectível sacolinha com radiografias e exames varia­dos. Vestia um semblante preocupado e cumprimentou-me sem sorrir. O marido igualmente me estendeu a mão sem nada dizer. A cunhada, coitadinha, parecia uma mudinha. Ajudou a paciente a sentar-se na cadeira e colocou-se de pé, imó­vel, no canto da pequena sala de entrevistas. Seus olhinhos estalados e sua posi­ção de estátua me fizeram sorrir, imaginando ser ela um colorido abajur. Final­mente, a sisuda senhora falou:

— Vim aqui para me operar, doutor.

A sentença já vinha com uma indelével marca de determinação. O marido me olhou firme, mostrando convicção e propósito. Ela estava querendo dizer: “Não adianta vir com papo de que não tem vaga. Vim do interior com meu marido e só saio daqui se for atendida”.

Pacientes morrem de medo de que sejam desconsiderados ou desrespeitados. Ficam sempre entre a cruz e a espada. Por um lado, pensam que, caso se com­portem “bem”, respeitando o doutor e mostrando submissão às suas ordens, po­derão receber um tratamento digno como recompensa. Por outro lado, depen­dendo do paciente e das circunstâncias, a tática é a da truculência. “Quero ver quem vai me mandar embora daqui antes de falar com o doutor” é uma frase típica dos corredores de hospitais públicos. Submissão ou porrada? Qual funciona? Normalmente, os pacientes chegam na arena de combate sondando o terreno. Têm um semblante desconfiado. Ficam testando o doutor, avaliando qual a melhor estratégia a seguir. Uma consulta médica é, acima de tudo, um encontro entre pessoas. Esse encontro sempre será tenso, quanto mais quando a saúde for a questão em jogo. Pacientes querem ser bem tratados, e que seus desejos (muitas vezes absurdos) sejam atendidos. Como conseguir isso? Eu, como bom aspirante a humanista, entendi a ansiedade e a angústia pela qual eles estavam passando e resolvi não “pegar pesado”. Médicos não são ensinados a receber ordens de pacientes. Maximilian costumava me dizer que “médicos não obedecem às leis; eles as criam”. A tentação naquele momento seria dizer: “Só operarei se eu achar que você deve ser operado. Seus papéis de nada valem aqui. Sou o responsável pela indicação da cirurgia, já que serei eu o provável ci­rurgião”.

Essa frase está ao mesmo tempo certa e errada. Certa por mostrar que a respon­sabilidade pelo resultado de uma cirurgia não pode ser transferida para quem a indicou, e deve ser de quem efetivamente a realizará. Por outro lado, está errada porque é um “tapa na cara”, uma falta de sensibilidade com as peculiaridades do momento; um choque prematuro de forças, uma “pororoca extemporânea”. Falar isso seria fechar um monte de portas. Fiquei com coceira na língua, mas apenas sorri em resposta. Ela me olhava firme. Queria ver minha reação. Eu podia ver o que significava sua vinda de tão longe, a espera na rodoviária, a escolha da cunhada como “doula”, a distância dos filhos menores, as fantasias de morte que rondam os que serão operados. Tudo isso em turbilhão. Na minha frente.

— Ok — disse eu. — Vamos ver seus exames. Quem a encaminhou para cá?

Peguei os exames e examinei-os com atenção enquanto ela me falava de um doutor desconhecido do interior do estado. Sua voz transmitia a tensão em que se encontravam todos. Exames normais, hemogramas, VSG, KTTP, plaquetas, raio-X de tórax, etc… O último exame foi, claro, a ecografia.

Quando a peguei na mão, vi, pelo tipo de impressão do exame, que fora realizada em um aparelho mais antigo ainda que o velho aparelho que tínhamos no hospital. Mostrava um cisto ovariano de 14 cm de diâmetro na sua maior extensão. Conve­nhamos, um belo cisto. Deve ser um adenoma mucinoso ovariano. Benigno, bem provável. Por outro lado, pode ser um adenocarcinoma de ovário, muito mais raro, mas na sua idade seria possível. A cirurgia, afinal, se justificava pelos achados ecográficos. Fiquei aliviado. Detesto quando frustro as pessoas nas suas expectativas. Como convencer as pessoas mais simples de que não operar é bem melhor? Muitas ve­zes, diante de uma negativa em operar, fiquei com certeza de que as pessoas achavam que eu estava com preguiça, ou simplesmente queria alguma compen­sação financeira “por fora”. Já escutei familiares de pacientes humildes, calçando chinelos de dedo, me dizendo (após receberem a notícia de que uma cirurgia não era necessária) que “se o problema é dinheiro, doutor, a gente dá um jeito”. Eu ficava com um nó na garganta. Olhei para a paciente e disse:

— Seus exames mostram um grande cisto. Acho que uma cirurgia seria necessá­ria, porque é importante sabermos que tipo de cisto é esse.

Eles pareceram aliviados.

— A senhora vai internar hoje mesmo, mas antes eu preciso fazer um exame clí­nico para saber mais detalhes do tum… digo, do cisto.

Aprendi nos primeiros anos como “aprendiz de feiticeiro” a nunca dizer “tumor” na frente de um paciente, mesmo que seja uma verruga. Nem mesmo se pudesse completar com “benigno”. Isso assusta demais as pessoas, e elas às vezes ficam aterrorizadas. Conheci muita gente do interior que jamais fala a palavra “câncer”; sempre diz “aquela doença”. Pedi que ela se erguesse e me acompanhasse à sala de exames. Era uma mulher alta e magra. Uma italiana fosfórica, em uma interpretação homeopática. Pergun­tei ao marido se ela havia emagrecido nos últimos tempos e ele foi enfático:

— Sim, doutor. Ela secou. Desde que descobriu esse problema, não come direito. Sente muitas dores na barriga. Tem uma bola que sobe e desce que quase vem à garganta. Pode ser o tal do cisto que aparece?

Expliquei que achava pouco provável, mas que o exame ginecológico me daria algumas informações extras.

Deitada na mesa de exames, a paciente parecia ainda mais esquálida. Melhor, pensei eu, assim fica fácil palpar o cisto. A cunhada estava junto na sala, como uma perfeita doula. Fiz o exame bidigital. Colo ok; vagina sem problemas. Abdô­men encovado. Girei a cabeça e olhei o ultrassom sobre a mesa. Não referia em qual anexo o cisto se encontrava, se no ovário esquerdo ou direito. Hmmm, onde está o danado? Mexi, revirei, apertei a barriga da pobre senhora.

Frustração. Nada. Não consegui palpar o cisto. Mas com 14 centímetros (bem mais de meio palmo), ele deveria ser visível no abdômen, quanto mais ser atingido pelo exame de toque. Pedi que se vestisse logo após ter examinado as mamas, que estavam normais. Voltamos à sala e eu expliquei à família que estava com dúvidas e que seria necessário fazer outra avaliação ecográfica.

— Outra? — exclamou ela, fazendo uma cara de decepção.

— Ela não gosta de ficar sem mi… sem fazer xixi. Diz que o exame é chato por causa disso — falou pela primeira vez a cunhada-abajur.

Reafirmei a necessidade do exame e ela concordou. Encaminhei-a à sala de eco­grafias e falei com meu colega Jefferson. Expliquei que não encontrara um cisto de 14 centímetros que estava descrito na ecografia que acompanhava a paciente. Ele me devolveu um sorriso e um xacomigo. Voltei para a minha sala deixando o trio aguardando o ultrassom. Fiquei pensando se minhas mãos eram incapazes de “ver” as coisas escondidas no lúgubre e es­curo interior das pelves. Estava também decepcionado.

Por volta de uma hora depois, o doutor Jefferson me liga e pede que venha até a sua sala.

— Ric. Olha só que enorme cisto você deixou de apalpar! — disse ele com um sorriso triunfante. — E lhe digo mais, não tem 14 centímetros de diâmetro: tem 17, absolutamente repletos de líquido. Impressionante!

Putz.. Olhando para baixo pude ver a minha própria cara estatelada no chão. Como posso ser tão incompetente? Como não percebi um enorme cisto desses? Burro, burro…

— Bem — disse eu. — Só me resta operar então. Vou solicitar a sala cirúrgica, e pedir que…

— Calma lá, meu jovem doutor — continuou meu colega. — Olhe bem para o cisto. Tente senti-lo aqui na ecografia. Apalpe-o, acaricie-o.

Passei os dedos pelo filme ecográfico. Isso apenas aumentava minha vergonha.

— Meu caro e apressado doutor — continuou Jefferson —, estou lhe mos­trando um enorme cisto de 17 centímetros de diâmetro, mas que não existe mais.

Minha face ficou ainda mais patética. Cirurgia astral? Magia? Olhei de novo o filme e vi o nome da minha paciente escrito nele, ao lado da data. Eu estava vendo o cisto, as medidas, as dimensões, as paredes, o nome correto de minha paciente e a data de hoje.

— Meu amigo, o nome desse cisto é “Vésica”. Já foram apresentados um ao ou­tro?

Meu mundo caiu. Desabei. Captei a mensagem, meu caríssimo guru radioultras­sônico. É por isso que ele disse que o cisto não mais existia. Meu Deus, como não percebi antes?

Vésica é o nome “chique” da bexiga. O médico do interior deixou minha paciente com a bexiga cheia para fazer o exame, o que é a conduta padrão em uma ultrassonografia, mas não se deu conta de que o “enorme cisto” que a paciente possuía nada mais era que uma bexiga cheia de urina! E por isso meu jocoso colega afir­mara que ele “não mais existia”. Foi esvaziado na toalete, logo após o exame. Olhei para cara do Jefferson e caí na gargalhada. Tudo estava explicado. Ele me deu um abraço e disse:

Na próxima vez, confie mais no seu taco. Quando você fez o exame, ela estava com a bexiga vazia e realmente tem um abdômen absolutamente normal. Quando eu fiz a ecografia aqui, fiquei intrigado com a ausência de lesão ovariana, mas, comparando com a realizada no interior, pude perceber qual foi a confusão do co­lega de lá. Incrível, não é?

Agora vinha a pior parte. Explicar para a paciente que ela não tinha nada cirúrgico, e que toda a angústia, o medo, a tensão, a viagem, a distância da família e o so­frimento físico, espiritual e emocional que passara foram ocasionados por um equívoco. Nunca houve nenhum cisto, e não seria necessário operar. Para minha surpresa, eles receberam minhas explicações com satisfação, nem sequer tocaram na ideia de culpar o ecografista do interior. Ela mesma me disse: “Vai ver que ele estava muito cansado e não percebeu direito, não é?”

Ok…Final feliz para uma história de um exame. Mas nunca mais me esqueci das possíveis angústias que os exames podem produzir. Quem sabe até um verda­deiro tumor poderia se criar pela força imagética de uma paciente impressionável. Quem pode afirmar que não? Não existem exames “não invasivos”; existem os que invadem menos, mas todos os exames, e seus possíveis resultados, podem produzir profundos estragos emo­cionais e levar um médico menos atento a realizar outro procedimento desneces­sário e até mesmo abrir o abdômen de uma paciente sem necessidade. Qualquer semelhança com as histórias de “embriões escondidos” não é mera coincidência.

*   *   *

Nadine me olhou com aquela cara de quem não engoliu tudo, mas que preferia ficar quieta a discutir com dois brigões empedernidos. Max, por sua vez, limitou-se a dizer Patu Saleh, erguendo o indicador para o alto, o que foi confundido pelo garçom com o pedido de outra cerveja. Ele não se importou com a confusão.

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Memórias do Homem de Vidro – 05

O Grito da Glamour Girl

Meu velho carro driblava os obstáculos como um verdadeiro craque do asfalto, mas as circunstâncias do caminho me obrigaram a diminuir a marcha. Mulheres agoniadas aguardavam seus filhos fazendo fila tripla em frente à escola, enquanto escutavam música nos automóveis. O fluxo, que já era lento, aproximava-se da estagnação. Minha impaciência me fez contrair o cenho, mas percebi que a exci­tação do reencontro com os colegas era mais perturbadora do que as agruras de um trânsito caótico. Quinze anos já se haviam passado. Quanta vida, quantas histórias haveria para contar. Como estaria Nadine? Sabia, por amigos em co­mum, que ela trabalhava no mesmo hospital em que fizemos residência. Sabia também que estava só, em uma solteirice que poucos compreendiam. Maximilian acabara de formar sua filha mais velha, e na cerimônia de formatura é que havía­mos nos encontrado pela última vez. Com Max, também tive poucos encontros nos últimos anos, mas é difícil para uma figura ímpar como ele passar desperce­bido. Quem não me falava dele por ele me perguntava.

O tráfego morosamente se refez próximo ao velho colégio marista. Os poucos agentes de trânsito não conseguiam dar conta da balbúrdia de carros, motocicle­tas e escolares movendo-se em todas as direções. Pisei no acelerador para ven­cer a inércia quando um espaço se abriu entre meu carro e o micro-ônibus que se encontrava à frente. Subitamente, quando a rotação do motor começava a au­mentar, uma criança surgiu correndo, cruzando inadvertidamente à frente do meu carro. Reflexamente, tirei o pé do acelerador e pisei no pedal do freio, produzindo um guinchar de pneus e um baque, que projetou meu corpo à frente. Ao ver a imagem do menino passando perigosamente na minha frente, gritei: “Ei, moleque! Preste atenção! Olhe quando atravessa!” Ainda tive tempo de olhar a criança transpor a rua e alcançar a calçada oposta. De lá, na companhia dos colegas, lan­çou seu olhar para mim, entre assustado e envergonhado.

Meu grito irrefletido me trouxe à memória uma cena, que brotou das minhas lem­branças da época logo após a formatura na faculdade de medicina. Aconteceu poucos meses antes do “incidente” na sala de emergência. Eu ainda era um resi­dente tecnocrata, inseguro e imaturo, tentando imitar da melhor maneira possível as atitudes e posturas de meus professores. É uma história do tempo em que eu, Max e Nadine éramos colegas de residência no hospital-escola onde por alguns anos trabalhamos juntos. É também a história de um grito, tão irrefletido como o que eu acabara de dar, mas muito mais profundo e significativo, e que de alguma maneira modificou minha forma de entender o intrincado mecanismo de senti­mentos e emoções que brotam quando trabalhamos na cumplicidade do nasci­mento humano.

Na nossa época de residência, havia um médico contratado do departamento de obstetrícia que era recém-descasado.

Rico, filho de uma família de médicos famosos, tinha sempre o carro da moda, as roupas da moda e — depois da separação — as meninas da moda. Era possuidor de uma postura tipicamente padronizada de atuar em medicina, o que não cau­sava nenhuma estranheza. Era apaixonado pelas novas conquistas tecnológicas incorporadas à gestação e ao nascimento, em especial as ecografias e as analge­sias de parto. Uma vez me disse que eu deveria aprender a manejar adequada­mente o fórceps porque minha geração de obstetras usaria as peridurais de uma forma quase que obrigatória e, dessa forma, o fórceps de alívio seria um instru­mento muito mais importante do que costumava ser. Dizia isso de uma maneira absolutamente honesta, sem perceber o que algum tempo depois eu descobriria ser a equação perversa da tecnocracia. “Criamos o veneno para depois vender o antídoto”, como sempre me repetia Max. Quis o destino zombeteiro que meu co­lega contratado viesse a falecer anos depois de uma complicação anestésica ad­vinda de uma cirurgia plástica estética. Costumava levar suas “namoradas” ao plantão de obstetrícia do hospital para lhes mostrar os partos. Sendo ele um quase quarentão, adorava levar as namoradas de 20, 25 anos para mostrar “como nasciam os bebês”. A corja de invejosos do CO costumava dizer que depois disso ele saía do hospital e demonstrava como eles eram feitos. Pura maledicência.

Em uma dessas visitas, entrou no plantão obstétrico uma dessas “namoradinhas”. Era uma linda jovem, de pouco mais de 20 anos. Tinha olhos verde-água (era tudo o que eu podia ver por detrás da máscara e do gorro). Tinha a pele clara, o que é muito comum por essas bandas de colonização alemã e italiana. O corpo era um elogio à perfeição das formas, e só depois fiquei sabendo que se tratava da Gla­mour Girl recentemente eleita. O decote da roupa cirúrgica era bem generoso de forma que… bem, estou fugindo do assunto.

Naquele dia, eu é que estava incumbido dos nascimentos que chegavam na zona restrita, onde ficavam as salas de parto, e estava atendendo uma gestante nos seus puxos finais. Deitada de costas, amarrada na mesa, olhava para o teto e tentava fazer suas forças da melhor maneira possível. Na sala repleta de estu­dantes e enfermeiras, tratava-se de apenas mais um parto. A mulher suava, ofe­gava. As enfermeiras punham-se atrás dela e gritavam coisas como “força mãezi­nha”, “força comprida”, “assim não, você está fazendo tudo errado”. Banalidades do atendimento institucional. Eu evidentemente em nada ajudava, e o melhor que fazia era não engrossar o coro de gritos da sala. Lá pelo terceiro ou quarto puxo, percebi que um belo exemplar feminino adentrava a sala e postava-se no canto da mesma. Era a convidada de olhos verdes. Voltei-me para ela e disse um “boa noite” seco. Já havia sido comunicado pelo meu su­perior que ela queria assistir a um parto, e que eu procurasse ser gentil com ela. Ok,pensei, gentileza é comigo mesmo.

Lá estava ela. Olhava para os demais presentes na sala com um misto de excita­ção e apreensão. Juntou as mãos ao peito, como que a rezar, e silenciosamente ficou a observar. Tinha o olhar fixo no períneo sangrante da paciente (sim, havia uma episiotomia aberta) e seus belos olhinhos verdes se comprimiram diante da visão do sangue escorrendo. Mas não disse nada, talvez porque tivesse sido avi­sada para não atrapalhar.

Minha paciente continuava seus esforços para expulsar o bebê. Deitada com as pernas presas nas perneiras da mesa ginecológica, sua dificuldade era redobrada, mas eu era ainda um pobre obstetra iniciante. Tinha fé nos postulados que me guiavam; acreditava ser o parto um evento médico, controlado por especialistas, que dominavam a técnica de forma apurada, com o objetivo de salvar as mulheres de uma natureza cruel. “A natureza é uma má obstetra”, já dizia um antigo adágio obstétrico, e assim eu fui doutrinado na escola médica. Por essa razão, minhas pacientes deveriam ficar na posição que mais me facilitava a intervenção, a mani­pulação e, em última análise, o auxílio que eu lhes poderia oferecer. “Mulheres parindo são como equilibristas em uma corda bamba no 40o andar… e você é a rede”, disse-me uma vez um professor de obstetrícia, incorporando nessa frase a violência do conceito de “inevitabilidade do desastre”, tão admirada pelos estu­dantes de medicina. Essa era a base ideológica do ensino obstétrico: “Mulheres não são dignas de confiança”. Santo Agostinho realmente deixou seguidores em todas as áreas da cultura.

Max olhava para meus partos iniciais com a delicadeza silenciosa dos sábios. Preferia não me aborrecer com algo que eu ainda era incapaz de compreender. Entretanto, seu silêncio me inquietava. Parecia querer dizer algo com sua mudez, e eu me irritava cada vez que ele via uma cena como esta e apenas sorria para mim. Um, dois, três… estava quase nascendo. O cabelo negro do nenê contrastava com o rubro sangue que brotava do períneo de sua mãe. Ele parecia esforçar-se, me­xendo sua cabecinha para frente.

— Agora, mãezinha… é sua chance. Ele vai nascer agora. Força, coragem! — gritei.

Mais uma força e…. pronto. Nasceu uma… menina! Antes que a paciente pudesse expressar uma palavra qualquer, de alegria ou alívio, escutei algo que por muitos anos ainda ecoa nos meus ouvidos.

Um grito.

Um grito lancinante. Um grito do fundo, das entranhas, dos porões dos nossos sentimentos. Um berro incontido, impulsivo. Um som profundo, do âmago, da es­curidão das nossas emoções inconfessas. Olho para trás, entre assustado e inici­ando a ficar contrariado.

Era a bela menina de olhos verdes. Trazia as mãos a segurar a cabeça, que pen­dia para frente. Seu corpo se curvara, e apoiava as nádegas na parede atrás. Os joelhos se dobraram. O gorro estava levemente deslocado, mostrando uma bela madeixa de cabelos dourados a lhe cair no rosto. As lindas esmeraldas que trazia nos olhos estavam umedecidas pelas lágrimas que escorriam pela face e molha­vam a máscara cirúrgica. Já não chorava mais; soluçava. Uma enfermeira ajudou-a se erguer, e abraçada a ela continuou a chorar, baixinho. No centro da sala, a mãe, alheia ao que estava acontecendo, já afagava seu filho nos braços. Gritava junto com seu bebê, dizendo “É uma menina, uma menina”. Não havia pai naquele cenário. Certamente eu era o único homem a presenciar aquela cena. Chamei a auxiliar ao meu lado e lhe disse em voz baixa, mas com indisfarçável irritação:

— Por que ainda não tiraram essa menina da sala? Não perceberam que ela não tem preparo emocional para participar de um parto?

A auxiliar então levou a menina, ainda chorosa, para fora da sala de parto. Apalpei o útero para sentir-lhe a firmeza depois da saída da placenta. Parecia firme o sufi­ciente para promover a parada de sangue que brotava da ferida placentária. O bebê já estava no berçário, junto aos neonatologistas, e a mãe mantinha o olhar preso no teto, talvez imaginando como estaria seu filho e revivendo na memória os momentos que cercaram o evento que acabara de ocorrer.

Resolvi trocar minhas luvas antes de iniciar a sutura da episiotomia. Ainda lembro a ritualística para isso, mas não tenho nenhuma saudade desse tempo de obscu­ridão na minha prática. A episiotomia era uma das rotinas irrefletidas, automáticas e sem embasamento que realizávamos cotidianamente, sem que tivéssemos uma discussão sequer sobre a racionalidade do seu uso. Minha conduta era realmente robótica, mas eu era um habitante da Matrix que sequer tinha noção das forças que controlavam minha atitude e minhas condutas. Antes de colocar o novo par de luvas esterilizadas, saí da sala para ver o que estava acontecendo com a garota. Ela já estava recomposta, mas ainda tinha seu rosto vermelho. O contraste do verde dos seus olhos com o vermelho do seu pranto fazia uma combinação de inesquecível beleza. Suspeito que muitas vezes fiz minha mulher chorar apenas para desfrutar desse deleite estético. A bela Glamour Girl olhou-me e, entre soluços, disse:

— Obrigado, doutor, por me deixar participar do parto. Desculpe minha reação. Desculpe o meu grito e as minhas lágrimas. É que… sabe… é que…

— Pode falar… — falei, lançando-lhe um sorriso de pseudobenevolência.

— É que é tão lindo! Uma criança nasceu. É tão maravilhoso; tão fantástico. Um ser humano nasceu. Que coisa linda, linda! É incrível…

Estava sorrindo. Um sorriso infantil. Seus olhinhos verdes brilharam, e pude ver a criança por trás da sensualidade de uma bela mulher.

— Ok, entendi — disse eu. — Fique calma. Não se preocupe, quase ninguém no­tou.

Dei-lhe um abraço, e percebi que ela voltava a chorar. Amadores, pensei eu. Quando veem isso, perdem a compostura. Gritam, se escabelam, choram…

Entretanto, as lágrimas e o grito da bela menina haviam produzido uma modifica­ção que eu ainda não havia avaliado por completo. Eu estava atordoado pela im­pressão sonora, mas muito mais pelo seu significado profundo. Queria saber por­que alguém se deixava impressionar dessa forma por um evento que para mim aparecia tão banal e corriqueiro. O que havia de “especial” e “maravilhoso” que me escapara? O que havia escondido por trás do grito da Glamour Girl?

Voltei para a sala para terminar a minha cirurgia ainda sem entender as razões da minha inquietude. Ainda havia uma episiotomia a ser costurada. Despedi-me da bela loirinha de olhos verdes sem nunca ter podido ver seu rosto, que se manteve sempre escondido atrás da máscara. Dirigi-me para a sala de parto, sem imaginar que algo de muito grave estava acontecendo. Porém, quando novamente entrei na sala, para minha surpresa e atordoamento, havia outra mulher deitada sobre a maca. Não era a mesma que eu havia ajudado a dar à luz. Era outra. Por alguma estranha razão, eu olhava agora para outra pessoa. O grito da Glamour Girl ainda ecoava nos azulejos da sala, entrando nos meus ouvi­dos como uma sirene de alerta. Eu parecia ter acordado para algo através daquele som, e a transformação me aparecia agora diante dos olhos.

Eu havia visto um milagre, um assombro da existência humana, e só agora tinha me apercebido. Como por encanto pude enxergar o que a bela menina dos olhos de esmeralda havia me descrito. A paciente que eu havia atendido dera lugar ao que eu agora estava vendo: um prodígio da vida. Anos de dessensibilização não tinham conseguido apagar completamente a chama que existe em cada um de nós. Ainda restava algo para recuperar.

O ritual de passagem promovido pela escola médica coloca os jovens estudantes dentro de uma escolha complexa e difícil, porém inconsciente. Como todo rito, o ritual de formação dos médicos pressupõe uma passagem, um percurso. Nessa viagem, precisamos primeiramente nos despojar de nossas crenças antigas, as­sim como de nossos valores. É fundamental que assim seja, porque o novo status que conquistaremos no final do processo dispensa a condição antiga. Os estu­dantes iniciantes de medicina, assim como quaisquer indivíduos, não diferenciam o corpo “erotizado” que possuímos do corpo “real” que é seu novo objeto de es­tudo. Continuamos a ver a alma, a história, a dor e o fim quando avaliamos um corpo outrora habitado por vida. Uma das tarefas mais importantes do processo iniciático da medicina é retirar a alma dos corpos, para que, assim destituídos, possam ser mais facilmente entendidos pelos alunos. Essa é uma das mais com­plexas tarefas, porque pressupõe a perda da capacidade de sentir o que o outro sente. Algum nível de isolamento afetivo é quase que obrigatório como meca­nismo de proteção do ego, porém o que se vê é a tentativa de isolar o profissional de toda a dimensão que não seja técnica. Esse processo leva o aluno/iniciado a incapacitar-se para a leitura das emoções e das dificuldades afetivas, levando-o a se enclausurar em um mundo biológico e asséptico. O que infelizmente encontra­mos depois da formatura é um grupo de novos médicos absolutamente aderidos ao modelo que lhes foi passado, negando, até mesmo em si próprios, os aspectos espirituais e transcendentais de suas existências.

Em contrapartida, como fechar os olhos aos eventos plenos de espiritualidade e afeto existentes no nascimento humano? Como lhes negar a essência sexual, viva e pulsante? Como impedir que um evento que conjuga vida, morte e erotismo não altere nossa percepção da vida? “O nascimento humano é uma bofetada no nii­lismo”, me diria Max.

Voltei a olhar para a mulher deitada à minha frente e que mantinha os olhos fixos em algum ponto reconfortante da parede de sua memória. Por alguns minutos, fiquei atônito, pensando no que havia de significado em tudo aquilo. Cheguei bem perto e olhei para ela, quase idêntica à outra, mas muito mais viva e muito mais bela. Ali estava a “impostora”, que algumas mulheres me desvendariam a existência. Era também a “mulher destruída” que Débora me mostrara logo após o nasci­mento de seu primeiro filho. Uma mulher modificada, forjada na chama de suas dores, esculpida pelo cinzel do seu cansaço, que tateia no breu de seus medos os limites a que pretende atingir. Aquela que veio tomar o lugar da “outra”, que morre metaforicamente no parto para deixar nascer uma nova mulher. Que loucura!, pensei eu ainda atordoado.

A bela menina de olhos verde-água tinha razão. A vida se perpetuando, se refa­zendo, se recriando. E eu estava aqui quando tudo aconteceu. Eu estivera no epi­centro do acontecimento mais marcante na vida de várias pessoas, e não havia percebido até então a amplitude daquele instante mágico. Saí de novo da sala, para ver se podia encontrar a garota. Ela já havia partido, e provavelmente já estava contando para alguém o que vira há pouco. Que pena. Eu queria lhe dizer que ela possuía algo que eu estava prestes a perder, mas que algo dentro de mim se recusava a entregar. Eu queria dizer que o seu grito tam­bém existia dentro de mim, mas preso, silencioso e calado. Queria lhe dizer que esse silêncio machucava, doía, mas que eu fora ensinado a não chorar, não me emocionar, não gritar. Queria dizer que o seu grito me ajudou muito, e que ela ja­mais vai poder entender o quanto.

Prometi para mim mesmo que jamais permitiria me petrificar, me anestesiar. Se quisesse poderia gritar, me escabelar, rir, chorar. Não iria me insensibilizar com a beleza da vida ou com o amargor da morte. O grito da bela menina me ensinou que o que de mais humano nós temos não pode ser jogado fora como se fôsse­mos máquinas previsíveis. O belo da vida, assim como os seus mais escuros es­pectros, merecem de nós o sorriso e a lágrima de veneração.

Segui meu caminho em direção ao hospital ainda com a tonalidade dos belos olhos da Glamour Girl a impregnar minhas lembranças. A saudade de Max e Na­dine me fez mais uma vez pisar no acelerador, mas dessa vez com cuidado redo­brado. Faltava pouco para o nosso reencontro.

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Memórias do Homem de Vidro – 04

O Homem de Vidro

O sangue ainda estava no chão, colorindo de vermelho o piso da sala de emer­gência. O ar carregado retinha o cheiro, entre adocicado e acre, que invadia mi­nhas narinas. A lâmina muda jazia nos panos abertos, mas, ainda limpa e relu­zente, espelhava minha estupefação. Os azulejos da parede refletiam minha face atordoada e desconcertada. A força e a dramaticidade dessa cena se repetiriam muitos anos depois, e com a mesma intensidade, na casa de Madalena, mas na­quele exato instante eu era apenas um personagem passivo dos acontecimentos. Quase nada havia entendido do que ocorrera e, no entanto, esse momento mar­cou de forma indelével o resto da minha vida. Uma ferida emocional, ardente e corrosiva, que apenas estava começando a doer. Eu me encontrava na ilusória quietude do núcleo do furacão. Mal sabia aonde essa tormenta iria me levar.

Ainda escutei, vindo da dobra do corredor, o som das rodas mal azeitadas que conduziam a mulher para a sala de observação. A cena caótica escondia um mis­tério, mas ainda era cedo para decifrá-lo. As luzes da sala aumentavam minha confusão. Não escuto há tempo o choro do bebê. Foi levado para longe do cálido olhar de sua mãe, e talvez já esteja recebendo o tratamento de rotina. Olho para o lado, à procura de uma pista. Vejo os estudantes ainda conversando. Vejo risos nas suas faces, enquanto a minha permanece contraída. Por que eu estou me sentindo tão mal? Por que me tortura a impressão de que eu não entendi direito? Por que parece que alguma coisa está faltando? Saio da sala tentando parecer normal. Se eu pudesse pelo menos entender a sequência de eventos… Por que as coisas não saíram como deveriam? Por que parece ter sido tão diferente? Sinto-me irritado, aborrecido, mais pela falta de compreensão do que por qualquer outra coisa. Por quê? Não me havia sido ensinado que um parto em que a mãe e a cri­ança estão bem é o desiderato supremo do bom atendimento obstétrico? Então por qual razão me sinto tão mal?

Em mim a “farpa na mente” doía. Uma inquietude, uma insatisfação. A dukka dos budistas. Mas ainda era muito cedo para entender a metáfora de Matrix. Tento lembrar de tudo o que aconteceu. Talvez se eu pensar em cada fato, cada detalhe, cada movimento, eu descubra a pista que me falta; a coluna que sustenta o meu mal-estar. Caminho de volta à sala dos médicos com a esperança de que com o tempo isso passe. Talvez se eu me concentrar no trabalho, ou na atenção às outras pacientes, eu consiga esquecer o desconforto que sinto.

Ou então, consiga lembrar…

Apelo para a memória. Os eventos do dia não pareciam trazer nada de significa­tivo. Apenas mais um plantão como residente de primeiro ano. O que poderia ter havido? Meu plantão começara da forma usual. Cheguei ao hospital e conversei com os colegas de cara amassada que estavam se despedindo. Tomei meu café no re­feitório do hospital e subi ao centro obstétrico para a passagem de plantão. Nada diferente dos demais dias do ano, a não ser o fato de que o centro obstétrico es­tava vazio. A noite havia sido movimentada, e não havia mais pacientes para atender. Estávamos em um sábado de maio, 1986.

As horas passavam sem que nada ocorresse para modificar a cor do nosso dia. Tentei recordar uma piada. Uma coisa com advogados. Não lembrei, mas me sur­preendi rindo morfeticamente da última que acabaram de me contar. Plantões são assim: a gente se acostuma com os extremos da atividade. O excesso, a falta de leitos, o ritmo frenético de enfermeiras, doutorandos e pacientes. Tensão, agressi­vidade e ansiedade. Ou então o tédio das salas vazias e dos leitos arrumados. Nessas circunstâncias, o que resta a fazer? Histórias, fofocas, bate-papos e gra­cejos. Piadas interminavelmente concatenadas. Ritmos temáticos: o de hoje era o dos advogados. Um amontoado de médicos e aspirantes a tal espremia-se em uma pequena saleta no coração do hospital. No canto da sala gritava um telefone interno, trazendo resultados de exames e pedidos de informações sobre pacien­tes. Na nossa frente, um quadro negro mostrava graficamente a presença das pa­cientes e o progresso dos trabalhos de parto. Hoje o quadro estava vazio. Há quanto tempo eu já estava ali? Tento fazer mentalmente a conta: três, quatro ho­ras? Estaria chovendo? Lembro-me do espanto com que ficava ao ver pessoas com guarda-chuvas pingando na recepção e lembrava que, quando havia chegado ao hospital, o sol brilhava lá fora. Coisas da reclusão. Do outro lado da sala, um cinzeiro repleto repousava debaixo de um cartaz “Proibido Fumar”. Em um hospi­tal, médicos não obedecem às regras; eles as criam. Estão acima delas.

E o cheiro? Um centro obstétrico tem um cheiro. Já vi prisioneiros descrevendo o odor das cadeias. Nos antigos hospitais do século XVII, o cheiro das carnes de­compostas dos pacientes enclausurados podia ser sentido a quilômetros de dis­tância. Quando estudante, trabalhei durante muitos anos em uma enfermaria de doentes renais, e o odor das diálises nunca saiu das minhas narinas. Também já vi amigos descrevendo o cheiro característico de uma cidade. Mas centros obsté­tricos também têm cheiro. Depois de alguns anos dentro de um, você aprende a reconhecê-lo. Uma mistura de líquido amniótico, odores corporais, suor; o hálito carregado pelo jejum imposto às pacientes, o material esterilizado. Um odor ado­cicado. Não é ruim, é peculiar.

Os sons e ruídos também são característicos. Os sussurros, os gemidos, os la­mentos. A emoção pelo nascimento. As lágrimas silenciosas das mulheres, como que envergonhadas por estarem tão felizes. Os gritos da equipe médica condu­zindo os esforços expulsivos das quase-mães. Agora, mãezinha, força comprida! Não pare, não pare!” O telefone tocando. “Não, não nasceu ainda, mas deve ser daqui a pouco. Acredite, está tudo bem. Não, não podemos informar o sexo por telefone; ordens superiores. Ela está sim, mas está ocupada fazendo um parto, ligue mais tarde.”

E quem é o pessoal que trabalha com o nascimento humano nos hospitais univer­sitários? Nossa equipe era normalmente composta de dois R2 (residentes gradua­dos de segundo ano) e dois R1 (residentes de primeiro ano, recém-formados) que naquele dia éramos eu e meu colega. Além disso, tínhamos doutorandos (alunos no estágio de 6º ano) e estudantes de medicina e enfermagem. Muitos desses doutorandos e estudantes não tinham o menor pudor em dizer que não suporta­vam obstetrícia, e que estavam ali apenas para cumprir seu estágio. Outros se esforçavam para trabalhar bem aos olhos dos residentes, porque isso poderia au­xiliá-los quando fosse feita a seleção de novos residentes para o próximo ano. De qualquer maneira, a fauna obstétrica era heterogênea e diversificada.

De quando em vez ouviam-se gritos na recepção. Maridos exaltados exigiam que suas esposas fossem internadas. Explicavam que moravam longe e que não po­diam ficar indo e voltando toda hora. Gritavam, ameaçavam. Ao lado, procurando ficar alheias à agressividade exaltada, suas mulheres gemiam em voz baixa. A equipe esforçava-se para convencê-los de que ainda não era o momento de inter­nar, ou de que o hospital estava lotado. Ninguém aceita explicações nessa hora. O choque era, quase sempre, inevitável. Já presenciei cenas constrangedoras de pugilato na recepção de maternidades, mas a regra era de que as brigas ficavam apenas nas ameaças. A porta de en­trada era o ponto nevrálgico do CO. Ali o sistema era colocado à prova, e os com­batentes de primeira hora eram chamados à luta.

Muitas vezes me imaginei estar em uma espécie de aeroporto aguardando os mi­grantes. Às vezes os voos são muitos e deixam o saguão lotado. Hoje o dia era de calma. Mentalmente cantei uma música de Suely Costa e Cacaso, talvez prenun­ciando que a calma momentânea do hospital guardava um segredo e uma sur­presa.

Quando o mar tem mais seguedos
Não é quando é tempestade
Não é quando ele se agita
Quando o mar ter mais seguedos
É quando é…. calmaria.

O papo na sala de conforto médico continuava solto. Os resultados do futebol eram esmiuçados por experts. As falhas incríveis, as jogadas sensacionais. O juiz que teria errado. A escolha do estágio que ainda não foi feita. A namorada que não entende tantos plantões. O filho pequeno que tem saudades do pai. As dúvi­das quanto ao que fazer quando a residência acabar. E a insegurança, cruel, sor­rateira, dissimulada. O medo de errar. O medo de que percebam como tenho medo. O pânico de não saber, quando me perguntarem. A pesada máscara de um saber absoluto que não se suporta. Medo, muito medo.

Eu estava no primeiro ano da residência em ginecologia e obstetrícia, e Max, como gostava de ser chamado pelos amigos, costumava me dizer que um resi­dente era o mais perigoso dos médicos. Max era sempre exagerado e dramático. Nossa formação médica tem uma continuidade, que nos leva das aulas tipica­mente colegiais da faculdade de medicina, passando pelo estágio antes da gradu­ação, e continuando-se no trabalho como residente logo após a formatura. Para quem observa de fora, não existe uma clara e óbvia diferença entre os doutoran­dos e os médicos residentes. Usam as mesmas roupas, o mesmo linguajar, os mesmos maneirismos; são subalternos em suas equipes e tem a mesma face adolescente. Por essa razão, continuamos a nos sentir como estudantes mesmo depois de formados, ao mesmo tempo que sabemos conscientemente que não mais somos. Isso nos leva a uma prepotência reativa: lutamos contra a nossa in­segurança com a ferramenta da soberba.

Um residente sempre sabe tudo o que lhe perguntam. Não existe no seu discurso uma negativa. Um modelo que se ergue sobre a ideia de assimetria de saberes precisa estabelecer uma prática de dissimulação que reforce tal postura. Uma en­cenação constante e repetitiva de inequívoca superioridade; uma altivez criada pela magia de um conhecimento que imaginamos possuir. Na minha época, eram famosos os residentes “chutadores”: respondiam qualquer questão com certeza inabalável, que a muitos impressionava. Mais tarde, íamos aos livros para confir­mar e descobríamos que tudo não passava de encenação. Nessa época, criei com Maximilian uma prática de contar histórias fictícias sobre a origem das cirurgias, ao modo das contadas em O Século dos Cirurgiões, de Jurgen Thorwald, mas da maneira mais convincente e lógica possível. Dessa forma, por exemplo, a perine­oplastia, que é a plástica perineal realizada para auxiliar na incontinência urinária, foi em verdade criada no século XIX por um professor de cirurgia da universidade de Pádua chamado Giuseppe Perini (daí o nome do ato operatório), que criou a famosa operação de “levantamento da bexiga” porque sua mulher sofria dessa enfermidade após ter dado à luz a nada menos do que 20 filhos e ser obrigada a carregar sua “bexiga caída” em uma espécie de tipoia. Max contava essa história, que eu inventara durante uma cirurgia, com tanta propriedade e seriedade que muitos residentes realmente acreditaram nela. Nossos “causos” ficaram famosos entre os colegas, mas nos criavam alguns constrangimentos quando realmente queríamos falar a sério. Depois de uma resposta pronta e direta a uma pergunta formulada, alguns colegas nos olhavam com desconfiança, sem saber se era ver­dade ou apenas mais uma brincadeira.

E como se expressa um residente? Lembro de frequentar plantões de pronto-so­corro desde os primeiros anos de medicina. Em um deles, quando devia estar no segundo ano do curso, voltei-me para um paciente do setor de queimados e lhe perguntei um detalhe qualquer do seu tratamento. Ele prontamente me respondeu, mas o residente que me acompanhava observou: “Você já está falando como mé­dico. Parabéns!”. Por muitos anos, eu me perguntei o que ele queria dizer com isso, e porque eu mesmo notara algo de diferente na minha forma de falar. So­mente muito tempo depois, percebi que o que diferenciava um comentário normal de uma observação tipicamente médica em um hospital público era um pequeno detalhe chamado “arrogância”. Essa “particularidade” na minha entonação ficou marcada como o início de um discurso médico que eu tentaria modificar no trans­curso da minha vida profissional, tal qual um velho marinheiro que tenta se livrar da tatuagem de uma paixão fracassada de outrora. Confesso que fiz alguns pro­gressos, mas a noção de uma falsa superioridade essencial é como o sotaque do nosso idioma original, do qual nunca conseguimos nos libertar completamente.

Em um centro obstétrico, temos um dos choques mais evidentes entre cultura e natureza que nossa sociedade pode estabelecer. O momento crítico do nasci­mento é exposto ao julgamento da sociedade, e ali os valores que constituem a matriz do nosso sistema de crenças determinam os rumos que desejamos impri­mir. Nossa sociedade, diante da incerteza que esses eventos produzem, cria me­canismos de defesa para fazer com que eles se adaptem a padrões lógicos de compreensão. O mecanismo básico é o rito. O ser humano, na sua ancestral luta pela sobrevivência, acaba sempre estabelecendo estratégias adaptativas.

Como residente, acabei me acostumando a presenciar a ritualística hospitalar e obstétrica sem questionar suas razões ou me aprofundar em seus significados. Temos um comportamento padronizado e repetitivo. Aprendi a ter um modo de agir ritualístico, automático, irreflexivo nas minhas atitudes médicas, e fazer aquilo que se conforma com o que foi estabelecido pelas figuras mitológicas da nossa formação. Somos doutrinados, construídos e moldados a obedecer a um sistema que se autoperpetua pela repetição sistemática de valores que, primordialmente, são estranhos a nós. A objetualização dos pacientes, sua “coisificação”, a classifi­cação arbitrária em patologias — tudo isso nos é inusitado quando adentramos a faculdade de medicina. Essa é a razão principal do medo dos cadáveres que os estudantes expressam ao ingressar na escola médica. Não existe para eles um “corpo real”, feito de músculos, nervos, ossos e sangue. Os corpos são “natural­mente” dotados de vida, de alma, de erotismo. Essa compreensão lógica da vida acaba sendo derribada durante a formação médica, em que a metáfora principal que explica o funcionamento humano é a máquina, como bem disse Robbie Davis-Floyd, no seu artigo “Obstetric Training as a Rite of Passage”.

Perdemos o status de organismos, assumindo a condição maquinal, cujos técni­cos habilitados são os médicos, que com seu saber científico farão com que essas máquinas funcionem de forma “azeitada”, através da incorporação de tecnologia. Este é o modelo materialista, exógeno, cartesiano e positivista de nossa formação, mas o mais triste é que sequer entendemos isso como um modelo ou paradigma entre outros. Encaramos essa forma de proceder como “a correta”, estabelecendo com esse saber uma postura claramente mística e religiosa. Meras opiniões rece­bem status de dogma; suposições sem nenhum embasamento são vistas pelos estudantes como regras fundamentais para a atenção aos doentes. Nossa forma­ção é caracteristicamente verticalizada, em que o saber se transmite por tradição (o velho professor falando de “seu jeito” de atender e de sua experiência pessoal) da mesma forma como se dá o ensino das funções de cura nas sociedades an­cestrais, mas incrivelmente nos consideramos “cientistas”, enquanto eles são “primitivos”.

A organização hierárquica de um CO também funciona por um sistema de castas. No topo da pirâmide ficavam os professores, que quase nunca eram vistos du­rante os plantões. Funcionavam como uma instância de saber inquestionável, mas na prática inacessíveis. Em segundo lugar os contratados, médicos empregados do hospital para coordenar os plantões obstétricos, que acabavam se tornando os professores “de fato”. Normalmente, não tinham nenhuma afinidade com o ensino e alguns sequer tinham gosto pela obstetrícia. Limitavam-se a determinar condu­tas baseadas no “é assim que eu trato” ou “assim está no protocolo”. Esses médi­cos eram nossa principal referência profissional.

Abaixo dos contratados plantonistas estavam os residentes graduados, de se­gundo ou terceiro anos. Eles tinham mais autonomia. Coordenavam os partos, realizavam cesarianas, indicavam cirurgias no ambulatório, ensinavam residentes de primeiro ano e reproduziam a ritualística que lhes foi ensinada nos anos que passaram na escola médica. Normalmente, incorporavam os maneirismos, as ati­tudes e a postura dos seus professores. Tinham entre eles um assunto repetitivo: “o que vou fazer quando acabar a residência?”.

Eu me encontrava um pouco acima da base da pirâmide de poder médico. Estava há uns poucos meses na residência de ginecologia e obstetrícia do hospital da universidade. Era um “R1”. Os residentes iniciantes não podem acompanhar par­tos sozinhos, muito menos realizar cesarianas ou cirurgias ginecológicas. Fazem as internações obstétricas, atendem no ambulatório, avaliam as pacientes interna­das, prescrevem toneladas de relatórios e obedecem a ordens. Eu era, entretanto, um residente um pouco diferenciado dos demais. Antes de entrar na residência, havia trabalhado em hospitais de periferia como interno plantonista. Durante mui­tos anos, frequentei os mais diversos plantões de emergência e clínicas para pa­gar meus estudos na faculdade de medicina e sustentar a minha família. Fui apre­sentado à obstetrícia nesses plantões da época de estudante, e quando me formei já havia contabilizado mais de uma centena de partos assistidos. Isso era absolu­tamente incomum na minha época, porque a maioria dos meus colegas de obste­trícia se formou tendo visto apenas uma meia dúzia de nascimentos. Como resi­dente de primeiro ano, eu tinha mais experiência em partos do que boa parte dos R2 que deveriam me orientar, o que provocava um certo mal-estar entre eles.

Abaixo dos membros da hierarquia médica estava a enfermagem. Esta se dividia em cores. As enfermeiras tinham a sua cor específica no trajar, assim como as técnicas e as auxiliares. As enfermeiras eram sérias, um pouco prepotentes, e sempre se estabelecia um clima tenso nas conversas com elas. O fato de eu ser casado com uma me deixava mais à vontade, mas eu percebia que havia um “ranço” sempre que médicos e enfermeiras se encontravam para tratar de assun­tos de trabalho. Do ponto de vista do modelo de assistência, muito cedo percebi que a formação das enfermeiras era fundamentalmente a mesma que nós recebí­amos. Tanto elas quanto nós havíamos recebido um ensino fundado na tecnolo­gia, em uma visão cartesiana do paciente. Pouco espaço havia para as questões afetivas e sociais. A ideia (ou a esperança) de que as enfermeiras, por serem mu­lheres, poderiam expressar uma atitude mais feminina em relação ao nascimento logo se desfez nos primeiros contatos com elas. Elas pareciam amarradas na ca­misa-de-força da tecnocracia, que as obrigava a sufocar sua natural feminilidade. Assim também ocorria com as residentes mulheres, que eram frequentemente mais intervencionistas e agressivas nas suas condutas que os seus colegas ho­mens. Ser mulher não lhes garantia uma atitude feminina. Havia algo mais impor­tante que a feminilidade a guiar essas condutas. O que seria?

A quietude do plantão só era quebrada por mais uma gargalhada. Um telefonema de mulher perguntava por alguém que já se fora. Respondi que o plantão havia terminado às oito horas, e que ele havia saído. Desliguei o telefone e fui recrimi­nado de forma zombeteira por meus colegas. “Como você foi dizer isso? Podia ser a namorada ou a mulher dele! Você será o responsável por um divórcio!”. Risadas e comentários maldosos. Nada mais propenso a fofocas e maledicências diversas do que um plantão tedioso. Subitamente a ordem foi desfeita. Uma esbaforida auxiliar de enfermagem aden­trou a sala dos médicos gritando:

— Tem uma paciente que está tendo seu filho na sala de emergência! Por favor, alguém vai lá!

Um silêncio constrangido se formou, deixando gargalhadas congeladas no ar. Por um instante, tudo esperou. Olhei para os lados instintivamente e me dei conta de que naquele momento eu era o mais graduado na sala. Meu colega de residência devia estar avaliando pacientes internados nos andares cirúrgicos, e eu ficara dando cobertura para os partos e avaliações de emergência. Só havia doutoran­dos, estudantes de medicina e eu. Não restava dúvida: essa era uma tarefa que a mim cabia realizar. Ergui-me rapidamente do velho sofá surrado e corri em direção à entrada do cen­tro obstétrico, sem sequer perguntar em qual das duas salas de exames a paci­ente estava. Senti a auxiliar me seguir, mas corri mais do que ela e abri com vigor a porta da primeira sala de exames.

Nada. Nenhuma mulher. Nenhum som. A maca de exames vazia mostrava os len­çóis desgrenhados, mas ninguém estava ali. Dei dois passos para trás e abri a porta da outra sala de urgência, mas a minha surpresa se repetiu. Ninguém. Am­bas as salas estavam vazias.

Olhei para trás e encarei a auxiliar. Seria uma brincadeira? Seria um trote sem graça? Antes que eu pudesse reclamar ou dizer qualquer coisa, ela me avisou:

— Doutor, abra bem a porta da primeira sala. A paciente está lá.

Voltei à primeira sala e abri totalmente a porta de entrada. Foi só então que eu a vi.

Maximilian, muito depois, faria uma interpretação dessa cena. Disse-me que “a paciente precisava ser encontrada onde estava, e não onde você queria que ela estivesse”, numa referência a uma antiga música de Milton Nascimento. Apenas quando abri a porta até o final é que pude enxergar a paciente. Estava acocorada no canto oposto da pequena sala de admissão.

Era uma mulher com mais de 30 anos. Vestia-se de forma muito simples. A pele era escura e os longos cabelos eram presos atrás com um elástico. Olhava para o chão e parecia estar fazendo força. Corri em sua direção e lhe segurei o braço. Com um só movimento, afastei-lhe os joelhos e levantei o surrado vestido de chita. Baixei um pouco minha cabeça e então consegui ver os negros cabelos de um bebê brotando da vulva.

— Minha filha — gritei eu assustado. — Seu bebê vai nascer. Deite!

Meu grito para ela continha um sentido que eu não ainda conseguia perceber. A emergência do momento produzira a irreflexão da minha atitude, fazendo brotar das fissuras abertas do inconsciente um conteúdo ideológico profundo. Minha ex­clamação, e o que se seguiu a ela, foi a encenação de uma luta que se estabele­cia entre dois valores culturais.

Foi então que ela levantou a cabeça e a girou em minha direção. Pude ver-lhe a boca tesa, a face suada e os olhos negros. Ela me olhou, mas de uma forma como eu nunca havia sido encarado. Seu olhar trespassou meu corpo e chocou-se con­tra os azulejos da sala.

Ela me olhou como se eu fosse feito de vidro.

Nada fez. Não se moveu; não me obedeceu. Seu olhar, parado no infinito próximo da parede, parecia querer dizer algo. Mas o quê? Parecia nada escutar, nada en­tender, nada pensar. Para ela foi como se eu não estivesse ali.

Uma enfermeira abriu um pacote com campos esterilizados. Peguei um deles e coloquei próximo à vulva da mulher. Pedi uma luva, mas não havia nenhuma por perto.

Uma nova onda de contração tomou conta do seu corpo. Olhei novamente para a vagina e percebi a cabeça do bebê dilatando ainda mais o períneo. Ordenei que me trouxessem uma tesoura para realizar a obrigatória episiotomia, mas não houve tempo para isso. Ainda tive oportunidade de dizer-lhe: “Não faça força ainda. Espere!”

Inútil. Novamente ela não escutou minhas ordens. Mais uma força e… nasceu.

Minhas mãos despudoradamente nuas tocaram o calor úmido dos negros cabelos do bebê. Senti o visgo dos líquidos quentes molhando-me os dedos. Pela primeira vez, experimentei nas mãos a realidade crua de um nascimento. Essa sensação nova me trouxe um misto de assombro e medo.

Nasceu na contramão, atrapalhando o sábado, pensei. Desceu ao mundo cho­rando o menino, como eu sempre me habituara a ver, acreditando ser esta a única forma de chegar ao nosso convívio. Sua mãe, acocorada à minha frente, reclinou a cabeça para trás e percebi as batidas do seu coração nos vasos do pescoço suado. Estava exausta. As enfermeiras, alunos e doutorandos deixam a sala ainda menor. O cordão umbilical, ainda preso ao útero, é cortado rapidamente, e do cor­redor consigo escutar os gritos do pequeno bebê ao ser levado para a área de neonatologia.

Estava quase terminado. Aguardei mais alguns instantes e tracionei o cordão um­bilical restante, ainda grudado à placenta. A mulher contraiu o rosto e notei que a placenta estava descolando. Mais um esforço, um puxão. Pronto. A placenta ver­melha e carnosa foi expulsa sem dificuldades. Até aquele momento, a paciente permaneceu de cócoras. Negou-se a se movi­mentar. Mantinha as palmas das mãos voltadas para baixo a tocar a laje fria da sala.

— Por que você não veio antes para o hospital? Olhe só o transtorno que você causou! Esse não é o local adequado para se ter um filho. Aqui não temos apare­lhos, nem material adequado. Seu nenê nasceu no chão. Menos mal que consegui colocar um pano estéril, senão ele nasceria na sujeira!

Minhas palavras eram de franca inconformidade. As enfermeiras presentes con­cordaram e continuaram a bombardear a mulher com perguntas e críticas. “Quem está com você? Onde está seu marido? Onde estão seus documentos?” Como uma mulher entra no centro obstétrico e causa tal confusão? Ela nada dizia. Man­tinha-se em silêncio. Estava agora com a cabeça baixa e os olhos fechados.

— Espere mais um pouco. Vou examiná-la para ver quantos pontos vai precisar.

Já calçando um par de luvas, abri os lábios vaginais à procura de lacerações. Imaginei que certamente as encontraria; afinal, não houve tempo para uma episi­otomia, e sem dúvida seriam necessários inúmeros pontos de sutura para con­sertar os cortes erráticos que a natureza determina quando os partos não sofrem intervenções. O exame do períneo reservava mais uma surpresa. Nenhum corte, nenhuma lace­ração. Os lábios vaginais levemente inchados permitiram a passagem do bebê sem nenhum traumatismo. Que estranho!

— Você teve muita sorte — arrematei eu. — Não vai precisar levar pontos.

Levantei-me da posição de joelhos que até então eu me mantinha, e ofereci-lhe minha mão em auxílio. Ela se segurou firmemente em mim e ficou de pé. Uma maca a aguardava para conduzi-la à sala de recuperação pós-parto. Pronto. Es­tava tudo acabado. Deitou-se na maca e olhou mais uma vez para mim. Nada disse, apenas ficou me olhando enquanto as auxiliares a carregavam para fora da sala.

Por que seu olhar parecia me atravessar, sem se fixar em mim? Por que ela nada disse? Por que ela não cooperou com o parto, obedecendo minhas orientações? As lembranças dos eventos do dia não foram de grande utilidade para diminuir a minha angústia. Não foi o sábado que me causou a ansiedade, nem o susto de um atendimento imprevisto. A resposta para as minhas perguntas se encontrava na­quela pequena sala de exames. Algo que ocorrera ali seria a resposta.

Voltei à sala e ela ainda estava suja. Pensei na “sujeira” que um parto desses pode produzir. Sangue, líquido amniótico, campos cirúrgicos manchados de ver­melho vivo. No canto da sala, um borrão verde-escuro me mostrava que o recém-nascido evacuou logo após nascer. Parei para pensar o que verdadeiramente é “sujeira”, mas a compreensão desse conceito só viria à minha cabeça muito tempo depois.

A resposta tinha que estar ali.

Meu pensamento se fixou no olhar da mulher. Ele estava ainda impregnado na minha retina. Por que ela nada me disse? Uma enfermeira passou por mim e co­mentou, enquanto recolhia o material do chão da sala: “Que coisa, não é? Quase que não deu tempo para atender aquela gestante. Já pensou se o senhor não es­tivesse por perto?”

Sorri para ela e me mantive pensativo. E se eu não estivesse por perto para assis­tir esse parto, como seria? E se ela tivesse seu filho sem meu auxílio, o que teria acontecido? Meus olhos pararam em um ponto qualquer da sala e ficaram estáticos. A per­gunta ecoava na minha cabeça.

“Sem minha presença, como seria?”

Comecei lenta e dolorosamente a entender. Olhei para os lados, temendo haver testemunhas dos meus pensamentos. Encontrava-me nu, atirado ao chão do meu Nabucodonosor. Como o renascido Neo, senti-me envergonhado pela súbita nu­dez. A farpa na mente dilacerava. Pensei mais uma vez nos eventos da pequena sala e percebi, aterrorizado, que tudo o que eu fiz desde que entrei naquele local para atender a uma emergência foi atrapalhar uma mulher a ter seu filho.

Tudo.

Todas as minhas atitudes foram prejudiciais ao bom andamento de um parto. A minha ansiedade ao entrar na sala, meus gritos, minha ordem para que deitasse, meus pedidos para que não fizesse força, minha tentativa de abrir uma episioto­mia injustificável e não consentida, minhas reclamações em voz alta, a falta de respeito e carinho com uma mulher que acabava de ser mãe. Perguntas fora de hora, xingamentos. Equívocos, erros, absurdos.

A resposta à pergunta da enfermeira é que, se eu não estivesse por perto, aquela mãe provavelmente teria mais tranquilidade para ter seu filho. A dureza dessa resposta, e a dificuldade em admitir, é que tinham produzido a minha inquietude e a minha ansiedade. Agora produziam a minha vergonha. Mas por que eu agira daquela maneira? Afinal, as pessoas presentes acharam que eu agi corretamente, que fiz o que se espera de um médico. Ninguém ali pa­rece ter percebido o que eu percebi. Como Paulo, na estrada de Damasco, apa­rentemente fui o único a ficar cego com a luz ofuscante dos fatos. Tudo o que eu fiz foi obedecer aos modelos estabelecidos. Estaria eu sendo injusto, duro demais comigo mesmo?

Naquele exato dia eu percebi que algo muito errado existia no meu proceder como obstetra e que eu não poderia admitir que se mantivesse. Entendi que um médico não pode ser um obstáculo ao bom andamento de um evento como o nascimento humano. Tive a noção clara e forte de que eu estava ali muito mais para aprender do que para ensinar algo às mulheres. O olhar daquela mulher havia me ensinado que, a exemplo do que escreveu Frederick Leboyer – médico francês que, com a publicação de “Birth Without Violence” de 1975, foi o deflagrador de uma revolu­ção na forma como recepcionamos os bebês – um médico deve ser imóvel, está­tico e invisível. Deveria ser como que feito de vidro, transparente mas presente, para que sua presença não venha a atrapalhar os ditames sábios da natureza. Minha conduta arrogante e prepotente nada mais era do que a manifestação da minha gigantesca insegurança diante do nascimento. Mesmo entendendo a im­portância de um auxiliar de parto, seja ele médico ou parteira, não poderia jamais esta presença significar o controle do processo. Não nos cabe controlá-lo; apenas auxiliá-lo. Como eu tive a oportunidade de ver na camiseta de uma parteira aus­traliana:

Imagine que você é uma parteira
E está assistindo o parto de alguém
Trabalha bem, sem exibicionismo e espalhafato.
Facilite o que está acontecendo,
Ao invés de pensar o que deveria estar ocorrendo.
Quando este bebê nascer,
Sua mãe certamente lhe dirá:
“Fomos nós duas que fizemos”.
(Lao Tzu – 500 aC)

O nascimento humano conjuga em um só momento os eventos mais temidos das sociedades em todos os tempos: nascimento, sexualidade e morte. Quanto mais temidos eles são, maior será a necessidade de ritualizá-los. Os rituais que aplica­mos ao nascimento nos levam a criar a impressão ilusória de que este está sob nosso controle. Internamos mulheres em hospitais, tiramos-lhes a roupa, raspa­mos seus pelos, lavamos seus intestinos “contaminados”. Depois, elas são colo­cadas em camas onde um monitor invade a privacidade do seu útero, para que escutemos o coração de seus bebês. Rompemos a bolsa de águas, colocamos ocitocina para que a paciente ganhe seu filho dentro do tempo que nós estipula­mos. Diante da dor causada pela solidão, medo e tensão, estabelecemos uma analgesia peridural, que via de regra termina com a aplicação de fórceps ou mesmo uma cesariana, pela dificuldade de essa paciente colaborar com um parto que há muito deixou de ser seu. Somos, entre outras coisas, escravizados ao re­lógio, que na parede diz que o nascimento deve ocorrer dentro de um prazo pré-estipulado de tempo. Elas devem se adaptar ao sistema, e não o contrário. Não há lugar para um tratamento centrado na pessoa, e pouco importam as particularida­des, características e a subjetividade dessa mulher.

O parto deixou de ser um evento das mulheres, sendo sequestrado pela biomedi­cina e encenado através dos rituais hospitalares contemporâneos, mantendo e transmitindo nosso sistema profundo de valores.

Foi Robbie Davis-Floyd quem pela primeira vez mostrou que essas condutas, chamadas de “rotinas”, não eram obra do acaso. Sequer se poderia dizer que são comportamentos determinados pelo hábito ou com base em evidências científicas em favor das gestantes. A multiplicidade de procedimentos médicos declarada­mente agressivos nas maternidades ocidentais nos mostra que isso não é ver­dade, a começar pelas cesarianas descontroladas. Existe um sentido em todas essas atitudes, que ultrapassa o que podemos enxergar. São rituais inconscientes que construímos para enaltecer nossos valores básicos. Erguem-se sobre os pila­res constitutivos da obstetrícia contemporânea: a compreensão cartesiana do mundo, que separa corpo e alma, e a defectividade essencial da mulher. A obste­trícia criou, a partir desse modelo filosófico de compreensão do feminino, a neces­sidade de técnicas e equipamentos que pudessem auxiliar essa mulher no mo­mento de parir, agora entendida como defeituosa e propensa a problemas, assim como Robbie Davis-Floyd descreveu em Birth as an American Rite of Passage.

Minha atitude na sala de exames refletia exatamente essa postura. Inconsciente­mente, eu reproduzi todo o arcabouço teórico que eu absorvera da escola médica e na minha formação pessoal como obstetra. Minhas condutas ao atender a pobre mulher tinham esses valores como norte:

Uma mulher não pode ter seu filho sem ser por mim.
Uma mulher é incompetente para escolher a posição que mais lhe convém para parir.
Uma mulher precisa ter seu períneo cortado para que seu filho possa nascer.
Uma mulher não sabe como conduzir as forças que farão seu bebê entrar nesse mundo.
Mulheres são, em suma, seres inferiores, incapazes e mal feitas.

Seria esse realmente o modelo de mulher que eu tinha? Entendi que eu deveria fazer uma escolha, e a primeira grande lição a ser aprendida seria a humildade. Ou eu modificava minha conduta como profissional, ou deveria escolher outra pro­fissão.

Qualquer das alternativas me traria dor e sofrimento, porque eu sabia o que pode­ria acontecer a um médico que resolvesse descumprir uma ordenação superior. O tratamento seria o mesmo oferecido a um herege e, na verdade, era exatamente no que eu estaria me tornando. A medicina positivista contemporânea comporta-se como a sucedânea da religião no imaginário social, sendo os médicos seus clé­rigos prepostos e controladores. Ela não perdoa aqueles que se afastam de sua linha ideológica, principalmente aqueles que criticam o modelo tecnocrático de compreensão da realidade.

Durante boa parte da minha vida senti claramente a crueldade do tratamento de “herege ameaçador” a mim imposto. Jamais fui perdoado por me desviar do cate­cismo dogmático das convicções médicas contemporâneas, mesmo que o meu proceder estivesse escudado nas mais claras evidências científicas. Por outro lado, minha admiração pelas mulheres e minha paixão pela magia do nascimento me impediam de desistir. Minha decisão estava tomada. Morpheus disse a Neo, na eterna 1999, que “não há caminho de volta, mas, mesmo que houvesse, você voltaria?”

No outro dia, ao sair do plantão, encontrei Maximilian no refeitório do hospital. Corri em sua direção e lhe disse:

— Max! Uma mulher ganhou seu filho na sala de emergência no plantão. De cóco­ras e praticamente sozinha. Lembra que um dia você me falou que…

— Calma, Ric. Eu já sei de tudo. Nadine me contou. Ela pariu de cócoras então? Que tal pareceu? Pois acho que você precisa ler um livro, que talvez abra seus horizontes.

Max abriu sua bolsa estilo hippie e de lá tirou um pequeno livro de capa alaran­jada. O título era Parto de Cócoras – Aprenda a Nascer com os Índios, do obstetra paranaense Moysés Paciornik. Peguei nas mãos o livro amassado e cheio de anotações e mais uma vez encarei Max, que sorria para mim.

— Leia e depois vamos conversar.

Agradeci o empréstimo e girei nos calcanhares em direção à porta de saída. Havia um dia ensolarado esperando por mim, e duas crianças aguardando um pai que retornava diferente para casa. Antes de sair, escutei a risada marota de Max. Vol­tei-me para um aceno de despedida e ainda tive tempo de escutar as palavras do colega.

— Seja bem-vindo, Ric. Patu Saleh!

Num futuro próximo eu escutaria a mesma frase, com palavras semelhantes, bro­tando da tela de um cinema lotado. Lá estaria Morpheus, dizendo ao “predesti­nado” Neo: “Bem-vindo ao mundo real”. Mas ainda era cedo, muito cedo para en­tender os meandros de um sistema de crenças que eu apenas estava iniciando a questionar. O Simulacrum produzido pela “Matrix obstétrica” ainda estava para ser descoberto. Naquela manhã de maio do ano de 1986, iniciei minha jornada de obstetra huma­nista, que mesmo com todas as dores, incompreensões, agressões e dramas, nunca pensei voltar atrás. Àquela pobre gestante, a minha dívida eterna. Seu olhar ainda presente nas mi­nhas lembranças é a marca indelével da força e da dignidade que cada mulher traz consigo no momento de parir.

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Memórias do Homem de Vidro – 03

Barulhos

Casei muito cedo. Cedo demais. Abortei boa parte da minha adolescência. Entre os 20 e os 30 anos, tirei, ao todo, dois meses de férias. Enquanto meus colegas se divertiam em passeios e festas, eu fazia plantões e estágios. No mês de feve­reiro de 1980, trabalhei 25 das 28 noites como plantonista em um pronto-socorro. Queria absorver tudo o que a medicina poderia me mostrar. Fui pai precoce, ado­lescente, menino. Saí da casa paterna com 21 anos para viver uma vida de adulto. Tal atitude tem vantagens e desvantagens. Pude crescer junto com meus filhos, aprender a paternidade enquanto ainda me despia da adolescência. Por outro lado, as responsabilidades precocemente assumidas são fardos pesados, os quais carregamos com paciência, resiliência e, certamente, uma boa dose de humor.

Cuidar de meus filhos pequenos acabou sendo um dos maiores desafios que eu já tive que enfrentar. Não se nasce pai, nem se aprende em livros. A crueza dos tombos e as feridas no orgulho são que nos ensinam a lidar com essa fundamen­tal etapa da vida. Uma vez falei para uma paciente que um dos maiores e mais poderosos processos de transformação individual é a maternidade, mas que a paternidade é igualmente algo de uma força fabulosa. Devo muito do que sou ao fato de que, muito novo, fui obrigado a entender a minha vida de uma forma espe­cial. Ser pai é nunca mais pensar apenas em si mesmo. Ser pai é ter que lidar com desafios diários para levar aos seus filhos os valores que parecem ser os mais verdadeiros e corretos. Entretanto, dos aprendizados possíveis, o mais claro é o de que não existem regras, e que toda a educação é feita de erros.

Na época em que meus filhos eram pequenos, todos os meus amigos tinham mo­delos maravilhosos de como educar uma criança. Desde os aficionados pela dis­ciplina até os apaixonados pela liberdade infantil, sempre que o assunto é educa­ção todos estavam repletos de profundas certezas.

— Nunca se bate em criança — diz ela. — A agressão é entendida pelos peque­nos como um meio válido de se chegar a um resultado, e isso fatalmente se re­produzirá na sua conduta como adulto. As crianças que apanham hoje serão os agressores do futuro. Se quiser um mundo livre de violência, comece pela sua casa.

— Qual nada — responde a outra. — A criança precisa saber seus limites, e a única linguagem compreensível, em uma determinada etapa da vida, é a da pal­mada. Como explicar com palavras a inadequação de uma atitude a alguém que não entende ainda o seu significado? Prefiro eu mesma colocar os limites nos meus filhos do que ver alguém fazendo isso mais tarde. Lógico que não estamos falando em espancamento, entretanto blá, blá, blá…

Como se posiciona um pobre menino, estudante universitário, imberbe, inseguro, preocupado em passar de ano, diante das divergências profundas entre sistemas que chegam aos nossos ouvidos concernentes à educação dos pequenos? O má­ximo que conseguimos é nos munir do arsenal de valores que recebemos de nos­sos pais e repeti-lo. Mesmo quando equivocado e ultrapassado, muitas vezes é o único modelo que temos.

As palmadas, entretanto, não são o único dilema por que os jovens pais têm que passar. Mamadeiras, bicos, choros fora de hora, educação dos esfíncteres, etc. povoavam minhas angústias de pai de primeira viagem. Acrescente-se a isso a pouca idade, a imaturidade, a falta de dinheiro e o pouco tempo e teremos um caldo de cultura propício a situações que variam do drama à comicidade.

Lembro-me de uma ocasião em que, chegando em casa cedo pela manhã após três dias de plantão em diversos hospitais, encontrei minha mulher na soleira de nossa velha casa. Beijou-me um beijo de café e disse:

— Estou indo para a faculdade. Lucas está dormindo na nossa cama. Tem uma pilha de roupas para serem passadas. Beijo, te amo, tchau.

Assim mesmo. “Beijo, te amo, tchau.” Não tive tempo nem de responder, pois ela estava atrasada para pegar o ônibus. Vida dura de estudante/mãe.

Entro em casa e me deparo com a dura realidade. Lucas não estava mais dor­mindo. Talvez tenha escutado a breve conversa no portão da casa, ou apenas resolveu despertar porque o dia parecia estar destinado a grandes descobertas. A verdade é que seus dois grandes olhos castanhos me encaravam, emoldurados por um sorriso pleno de energia e vigor. O segundo fato apavorante é que a “pilha” de roupas para passar era, na verdade, uma montanha que se erguia da minha cama. Milhares de meias, cuecas, calças de brim, camisas, em uma maçaroca apavorante e incompreensível.

Eu havia passado a noite atendendo partos no hospital de periferia onde me iniciei na obstetrícia. Estava cansado e sonolento. As roupas precisavam ser passadas, e Lucas estava pronto para mais um dia de aventuras. O que poderia piorar esse cenário?

Lembrei… Eu tinha uma prova dentro de dois dias, e em função dos partos na noite anterior não me fora possível ler a matéria. Eu precisava estudar, cuidar do Lucas, passar roupa e dormir, tudo ao mesmo tempo! Aqui estava, tal qual a chuva no filme “Jovem Frankenstein”, algo que poderia piorar um cenário já de­sesperador.

Tive uma ideia, que à primeira vista poderia ser maravilhosamente conciliatória. Resolvi armar a tábua de passar ao lado da cama e abrir meu livro de medicina em uma das pontas, deixando o ferro quente na outra. Assim poderia passar a ferro as camisas e dar uma espiada na matéria — nefrologia. Lucas estava apren­dendo a caminhar, mas passava a maior parte do seu tempo nas tentativas de se erguer. Eu tentaria conversar com ele e distrair a sua atenção.

Foi o que fiz. Mesa armada, ferro de passar repousava à minha esquerda, livro de medicina aberto à minha direita e camisas e calças sendo passadas na minha frente. Parecia funcionar adequadamente. Finalmente eu provaria que, ao contrá­rio do que é maldosamente apregoado pelas feministas, nós, homens, também podemos ser multitarefa.

Tudo funcionou perfeitamente… por 15 minutos.

Eu havia esquecido um fator fundamental. Aquele que sempre põe abaixo os grandes e pequenos projetos da humanidade: o imponderável e circunstancial. A Lei de Murphy, maldosa e sorrateira, conspirando sempre que uma oportunidade lhe é oferecida. Ou, como Maximilian me falaria no futuro, eram “os desígnios se­cretos da Deusa Álea”.

Lucas conversava comigo dando gostosas risadas enquanto eu lia o livro de medi­cina em voz alta, fazendo de conta que lhe contava uma história de aventuras. Pobre criança, nem sabia que estava sendo enganado. Não havia nenhum prín­cipe “glomérulo”, nenhuma princesa “pelve renal” e os “ureteres” não eram escu­deiros com a incumbência de livrar a rainha das pressões dos seus inimigos. Ele ria e rolava. Eu repetia as palavras do livro com um jeito bufo, o que o deixava ainda mais alegre.

Infelizmente a alegria durou pouco. Juro que eu tentei evitar, mas talvez minha atenção com as camisas, minha leitura do livro de medicina e a sonolência sobre­posta tenham causado o estrago. Lucas sorrateiramente engatinhou em direção à mesa de passar. Eu o cuidava com o rabo do olho, enquanto lia uma página do livro. Ele continuava rindo e saracoteando, e resolveu ficar de pé, caindo logo em seguida, o que o deixava ainda mais lindo e desengonçado. Repousei o ferro elé­trico na mesa e fui pegar mais uma camisa para passar, enquanto aproveitava para folhear mais uma página.

Nesse milésimo de segundo é que as coisas acontecem. Bastam apenas frag­mentos de um instante para que tudo ocorra. Lucas ergueu-se sobre os joelhos e apontou seu minúsculo dedinho para o ferro que aguardava repousando na mesa. Já segurando a próxima camisa amassada nas mãos, ainda consegui antever o desastre, mas não a tempo de impedir que a ponta do seu pequenino indicador encontrasse o aparelho.

Foi muito rápido. Fiquei feliz por ter evitado um estrago maior, mas olhei a ponta de seu dedinho vermelho e me senti o pior pai do mundo. Incompetente, irrespon­sável. Lucas abriu seu inesgotável repertório de choros, que variava desde o berro incontido até o choramingar em voz baixa. E agora? Que fazer?

Resolvi desistir de tudo e cuidar do meu filho. Desliguei o agora “maldito” ferro elétrico e fiz da montanha de roupas o meu travesseiro. Olhei de novo para a pon­tinha do dedo e percebi uma pequenina bolha se formando por baixo da pele de seda. Agarrei Lucas nos braços e cochichei no seu ouvido:

— Desculpa, meu velho. Papai estava desatento. Mas agora precisamos os dois dormir, ok? Você para curar seu dedinho, e o papai para se recuperar do plantão, certo?

Lucas continuava choramingando, mas incrivelmente alguns minutos depois ele estava dormindo. Acordava de quando em vez, ao se lembrar do dedinho quei­mado, mas voltava a dormir, como papai mandou. Milagres acontecem.

Não lembro que nota eu tirei na prova, nem o que eu acabei fazendo com a pilha de roupas, mas aprendi algumas belas lições naquela manhã sonolenta. A mais importante é que filhos são sempre prioridade. Se pudesse voltar no tempo, não desperdiçaria nenhum instante de contato com os pequenos, porque tudo isso passa muito, muito rápido.

Lembrei-me de outra história, anterior a essa, ligada aos primeiros meses em que estive lidando com a tenebrosa tarefa de ser pai. Era uma questão relacionada com o sono das crianças. Esse assunto era tratado como um tabu na família da minha mulher: nunca se acordava alguém que estivesse dormindo. Suspeito que minha sogra achasse que uma criança — ou mesmo uma pessoa adulta — assim desperta de “supetão” poderia desfazer o fino laço que prende o corpo à alma flu­tuante, que estaria vagando livremente pelo éter, despregada da matéria. Fosse essa a justificativa ou não, a verdade é que acordar uma criança era visto como uma atitude de extremo desrespeito e grosseria.

Esse era o meu problema. Na época da faculdade, quando eu era jovem (século passado) e tinha muitos cabelos na cabeça, exageradamente sofri com o pro­blema do barulho com as crianças dormindo. Essa história de “silêncio, o nenê acabou de dormir” eu fui obrigado a escutar incontáveis vezes. Vezes demais. Achei que eu nunca poderia conversar com meu filho, ou mesmo escutar a sua voz se formando. Eu ficava terrivelmente bravo porque mal acabava de chegar em casa depois de 48 horas ininterruptas de plantão (às vezes 72) e meu filho Lucas estava dormindo profundamente. Pai ausente, pensava eu. Irresponsável. Se foi para deixar seu filho sem uma figura paterna, melhor seria nem tê-lo feito. Eu ia até sua cama só para olhar para ele e dizer alguma bobagem, tipo “chorou muito hoje?” ou “alguma novidade?” ou mesmo “e aí, meu… se borrando nas fraldas ainda?”. Ele tinha apenas seis meses, e pouco via o miserável progenitor, estu­dante de medicina e trabalhador de cinco diferentes patrões. Pois a história era sempre a mesma: eu chegava perto e sempre tinha uma sogra, uma cunhada ou outro tipo de “bruxa” pra me criticar. Não suportava mais a pressão e a culpa que tentavam me empurrar, apenas por querer participar um pouco da vida do meu pequeno e indefeso filho homem, cercado de mulheres por todos os lados.

“Fala baixo, seu trapalhão. Olha a pobre criança dormindo. Se ele acordar, quero ver você fazer ele dormir de novo.” E eu normalmente tinha que sair de perto, por­que as mulheres acham que só porque pariram são donas da cria e que os ho­mens de nada servem. Somos considerados inúteis. De nós aproveitam apenas o pobre espermatozoide, serelepe girino que, por enquanto, ainda nos confere al­guma importância neste planeta. Pura inveja. Só porque não conseguem fazer xixi de pé ficam nos espezinhando por toda a eternidade!

Pois um dia eu cheguei em casa, vindo de mais um mix de plantões com aulas na faculdade e recebi a mesma crítica injusta de sempre. “Para que caminhar desse jeito? Para que bater o pé assim no chão? Está tirando barro da sola? A criança pobrezinha (pobre, coitada, etc… sempre tem um adjetivo assim para as crianças) acabou de dormir. Dá para fechar essa boca, parar de caminhar e fazer silêncio?”

Dias sem ver meu filho e era assim que me recebiam? Queriam elas fazer de mim um capacho, um pano de chão? Haveria um fim para a arrogância feminina? Pois este era o meu limite. Fiquei uma fera. É hoje que eu faço uma loucura,pensei eu! Fui até o quarto onde o pequeno Lucas estava ressonando. Pobre criança (opsss). Teria que aguentar essa convenção de bruxas, megeras, tias chatas (ele tem nove tias!) e mesmo assim lutar com todas as suas forças para se tornar um homem de verdade. Ele precisava de uma imagem masculina forte, máscula, viril, altaneira. Olhei para os lados à procura de algo, ou alguém, e não vi nada que coubesse nesse conceito. É… vai ter que ser eu mesmo, pensei.

Munido de coragem, falei comigo mesmo, gritando com os meus botões da camisa amassada:

— Agora é que são elas! Elas vão ver como nós somos caras maus, bravos, des­temidos e corajosos!

Tirei os poucos lençóis que cobriam o frágil corpo de poucos meses do meu filho Lucas. Olhei para ele e disse baixinho no seu ouvido:

— Papai vai te levar para um passeio. Fique tranquilo. Aquelas megeras não vão te fazer mal.

Na sala, a mãe dele — bruxa-mor — jogava cartas com as irmãs e a mãe. A con­versa (conversa é modo de dizer; estavam fofocando e falando mal de mim, claro) ia solta, até que uma delas, a primeira que percebeu, soltou um grito.

— O que você pensa estar fazendo, seu louco? — gritou a cunhada, deixando as cartas caírem na mesa.

— Ficou maluco de vez? — vociferou minha mulher.

— Para com isso! Olha que eu chamo os vizinhos! — emendou minha sogra.

Enquanto isso eu sorria, exibindo meu troféu. Lucas continuava dormindo, sem se aperceber do que estava acontecendo.

Eu havia carregado meu filho pelo calcanhar direito e o levei assim suspenso atra­vés do quarto escuro até a sala, onde elas estavam a jogar cartas. Com os braços abertos e a perninha esticada, Lucas continuava dormindo, como um anjo, sem se perturbar, provavelmente sonhando com um mundo de ponta-cabeça, mais ou menos como está o nosso planeta hoje em dia.

— De hoje em diante, quero ver quem é que vai dizer que um simples barulhinho é capaz de acordar esse moleque! — disse eu, exibindo o meu troféu, para uma plateia de mulheres boquiabertas.

— Ok… ok, seu insano. Coloque a criança na cama e deixe-a dormir em paz. Chega de espetáculos — disse minha sogra.

Coloquei meu filho na cama e o cobri novamente. Ele nem se deu conta do pas­seio estranho que dera.

— Muito bem, meu filho. Você foi sensacional. Você é o garotão do papai! — disse eu, em uma conversa de homem para homem que eu nunca mais esqueceria.

Quando voltei para a sala, as mulheres continuavam seu jogo de cartas como se nada tivesse ocorrido. Minha cunhada Heloísa, para quebrar o gelo, me fitou com um sorriso e disse:

— Está cansado, cunhadinho? Estava movimentado o plantão? Quer que faça um cafezinho passado?

Nada como uma demonstração de macheza para deixar as mulheres derretidas.

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Memórias do Homem de Vidro – 02

Pai e Paternidade

A história do ser humano na face da terra é caracterizada por um aprendizado lento. Nossas conquistas nas áreas sociais sempre foram graduais e paulatinas, com gerações inteiras experimentando apenas detalhes como modificações no seu cotidiano quando comparadas com o estilo de viver de seus ancestrais remo­tos. Essas alterações sempre ocorreram em todos os aspectos da sociedade, desde a organização social e política até mesmo (e principalmente) no terreno da ciência e do conhecimento. Durante milênios, nossas tarefas e especificidades sociais foram determinadas rigorosamente pelas aptidões aparentemente mais “naturais” que apresentavam os homens e as mulheres. O legado que nossa ex­tensa experiência como caçadores/coletores nos deixou transmitiu-se por inúme­ras gerações, sendo que a rigidez de seus postulados apenas há alguns anos passou a ser questionada. Assim, nada mais justo que o mundo externo, o mundo das conquistas, das batalhas e do saber racional ficasse sob a responsabilidade do componente masculino, enquanto o mundo interior, da família, da natureza, dos mistérios do inconsciente, coubesse às mulheres. Esse esquema funcionou com razoável equilíbrio até algumas poucas décadas atrás, fazendo com que homens e mulheres convivessem em uma “harmonia forçada”, por ser essa a expectativa clara e única de suas funções sociais. Nesse mundo, a gravidez, o parto e a ma­ternagem existiam apenas como extensão do universo feminino, não sendo possí­vel entender a participação dos homens nele, a não ser como procriado­res/provedores e possuidores de uma descendência.

Lucas, a exemplo das tradições tibetanas, nasceu de um sonho. Um sonho pre­monitório, mas, ao contrário do que se esperaria, esse sonho não foi sonhado por quem o carregava no ventre; foi sonhado pelo seu pai. Em uma escura passagem, um caminhante solitário vê formar-se à sua esquerda uma fonte intensa de luz. Ofuscado pela luminosidade, leva a mão aos olhos, tentando enxergar o que se esconde por detrás. Inútil. Dessa luz brota uma voz, que avisa em tom solene a chegada de um visitante.

— Preparem-se, amigos — diz a voz poderosa. — Lucas está se aproximando para juntar-se a vocês.

Depois disso, do meio do breu da estrada surge a figura de um menino, de mais ou menos 10 anos de idade, que caminha em minha direção. Tem os cabelos loi­ros, lisos e longos e seu passo é firme. A distância entre nós se encurta, mas nosso contato não chega a acontecer porque, assustado, desperto do meu sono. Ligo para a minha namorada e digo que tenho algo muito importante para lhe di­zer. Ela se assusta. Mais tarde lhe conto pessoalmente o sonho, e o nome do me­nino que me foi revelado, e ela diz que seria quase impossível que ele fosse ver­dade. Não seria viável, ou provável, que ela estivesse grávida àquela época do ciclo menstrual. Eu apenas comentei que o sonho fora claro demais para ser des­merecido. Os acontecimentos das próximas semanas mostraram que tanto eu quanto o sonho estávamos certos.

Lucas estava realmente a caminho.

Exatamente 40 semanas após sua última menstruação, ela entrava em trabalho de parto. Rompida a bolsa na madrugada, rumou para o hospital da universidade, o mesmo onde anos mais tarde eu faria a minha formação em obstetrícia e gine­cologia. Suas contrações ainda eram frágeis e irregulares, mas foi mantida no hospital por decisão do contratado de plantão. Eu ainda não tinha a menor noção da iatrogenia relacionada à internação precoce de pacientes em fases iniciais de trabalho de parto. Levaria muitos anos para aprender essa conexão notável entre o psiquismo feminino, seu instinto de proteção à cria, e a sutileza dos mecanismos relacionados à ocitocina, endorfina e adrenalina. Deixo o hospital prometendo voltar mais tarde. Como de costume, eu estava gazeando aulas na faculdade de medicina para fazer um plantão no Pronto-Socorro. Sempre me atraiu a medicina viva, em carne e osso, olhando a face dos pacientes, catando diagnósticos nos sulcos que o sofrimento marcava em seus rostos; por isso, minha opção desde cedo em trabalhar junto aos doentes, priorizando a prática em detrimento da frieza vazia das teorias.

No meio da tarde, meu cunhado me liga dizendo que as dores estavam muito for­tes e que seria melhor eu voltar ao centro obstétrico. Percebi que Lucas estava chegando. Havia aguardado mais de 20 anos por esse reencontro.

As horas se acumulavam, umas sobre as outras. As dores se aproximavam, quase se fundindo. O suor, o rosto contraído, a palidez. O gosto salgado na sua boca. Olhava para ela como que a pedir perdão. Uma súplica. Como posso ajudar, se tenho as mãos atadas? Que posso fazer para minorar sua dor? Eu tenho apenas 22 anos. Como sou estudante de medicina, e apenas por isso, me permitem adentrar o espaço do centro obstétrico. É uma manhã fria de junho de 1982. Es­tamos no meio da Copa do Mundo. Ontem o Brasil aplicou 4 x 0 em um time qual­quer. Nem lembro bem qual é, mas o Zico marcou um gol. A ruptura da bolsa se deu junto com o romper da aurora, e sabia que esse fato era um complicador na forma como os médicos do centro obstétrico entendiam aquele caso específico. A mim só restava esperar, e pedir aos deuses que os médicos responsáveis tives­sem a sabedoria para fazer as melhores escolhas.

A participação paterna no processo de parto e nascimento é um evento raro entre os mamíferos, principalmente quando a paternidade não é uma obviedade. Entre os grupamentos em que a participação genética de determinado parceiro é asse­gurada, essa ligação pai-filho se dará de forma mais intensa, enquanto, nos gru­pamentos mais promíscuos (com paternidade menos confiável), um padrão muito heterogêneo poderá ocorrer, variando do infanticídio, em uma extremidade, até mesmo cuidados ativos e afetivos, na outra. Essa disparidade idiossincrática de atitudes nos demonstra que o estabelecimento da relação entre o pai e seu filho não seria um produto de nossa herança genética, mas ocorreria em razão de as­pectos ecológicos e comportamentais, principalmente relacionados com a distri­buição de comida, o que está de acordo com a atitude de todos os carnívoros so­ciais.

Ela a cada minuto parecia mais fraca. Dezoito horas já haviam se passado desde a ruptura das membranas e a perda do líquido amniótico. Seu humor estava aba­lado. Não mais suportava a conversa das auxiliares, e mesmo a minha presença era apenas tolerada. Eu caminhava ansiosamente de um lado para outro. Repeti­ria essa atitude ansiosa durante as centenas de partos que acompanharia nos anos que se seguiriam. Mas aquele dia era o meu “batismo de fogo”. A paterni­dade entrava na minha vida de forma precoce e inesperada, o que me deixava ainda mais assustado e tenso. Fazia promessas. Imaginava que amanhã estaria rindo com meu filho nos braços. Pensava na magia de ser pai. Ia até o corredor do hospital e pedia colo para minha mãe, que silenciosamente aguardava para parir seu primeiro neto. Tentava criar coragem. Olhava para as residentes e aguardava delas uma palavra, um gesto, uma confirmação. Esperava que meu sofrimento fosse abreviado. Eu estava entregue. Dependia daquela mulher e dependia da­queles médicos. A sensação de dependência, de falta de controle sobre a situa­ção, me fazia menino, pequeno, diminuto. Só o que podia fazer era ter paciência e confiar. Das residentes escutava apenas comentários que não me ajudavam. Zeza continuava completamente absorvida pela intensidade de suas dores, mas para mim, pobre menino, nada parecia acontecer. Até que, ao cair da noite, depois de um exame vaginal, eu escuto a guturalidade de um som: a expressão sonora de uma passagem. Algo ocorrera, e fixei meus olhos no residente. Este me olhou ra­pidamente e disse, enquanto se dirigia à porta da zona restrita:

— A dilatação se completou, podemos ir para a sala de partos.

Bowlby, que foi um dos pioneiros na investigação do apego entre mães e filhos, dizia que o pai não tem nenhuma importância para o recém-nascido, e sua partici­pação se resume em ser uma fonte de recursos econômicos e suporte emocional para a mãe. Apesar dessa posição pessimista quanto ao papel desempenhado pelo pai, vários outros autores demonstraram que o desempenho dos pais em sala de parto tende a ser muito semelhante ao que frequentemente é observado com as mães que acabaram de ter seus filhos. Dessa forma, os mesmos rituais de re­conhecimento e de contato seriam estabelecidos não fossem as expectativas e os papéis sociais fixos encontrados nas sociedades. Livres das constrições e imposi­ções sociais, os homens poderiam estabelecer as mesmas manifestações de apreço, carinho, apego e amor pelas suas crias que suas mulheres apresentam. Esse comportamento de formação de apego é o que se chamaria de “espécie es­pecífico”, e tem sua origem geneticamente determinada, segundo uma das hipóte­ses que existem contemporaneamente, de Wenda Trevathan, antropóloga ameri­cana que escreve sobre as origens do nascimento sob uma perspectiva evolucio­nista darwiniana. Hoje em dia muito se tem estudado a respeito da importância do pai na sala de parto, porque a pressão cultural pela participação ativa dos parcei­ros na hora do nascimento levou os profissionais, e mesmo os hospitais, a se pre­pararem para que a chegada do bebê ocorra preferencialmente com a presença do genitor. O próprio método Lamaze, dos anos 1960, estimulava a presença do pai como orientador, um condutor da paciente diante das agruras do trabalho de parto. O pai entrava no cenário do parto pelas mãos do médico, como seu aju­dante de ordens.

Na atualidade, questiona-se novamente se a presença do pai seria benéfica para o bom andamento do parto ou se ele seria um intruso no cenário essencialmente feminino do nascimento. A verdade é que os comportamentos em sala de parto tendem a ser muito variáveis, desde pais que entram em perfeita sintonia com o processo de nascimento e dessa forma auxiliam a gestante durante todo o desen­rolar do processo até pais que, pela sua intensa ansiedade diante do desconhe­cido, funcionam como “disseminadores de adrenalina”, como afirma o Dr. Michel Odent. Estes últimos funcionam como promotores do círculo vicioso de medo-ten­são-dor descrito por Grantly Dick-Read nos anos 1930, e não foram poucas as vezes em que a saída desses pais nervosos da sala foi a responsável pela mu­dança radical e positiva no resultado de um parto. Entretanto, a experiência de­monstra que, quando bem conduzidos e orientados, os pais são, via de regra, su­porte emocional e afetivo de qualidade para a grávida. Além disso, a experiência viva da paternidade tem a potencialidade de fortalecer os vínculos desse novo pai com o recém-nascido, assim como estreitar os laços amorosos com sua compa­nheira.

Pelo menos agora eu sabia que a espera estava por se findar. O bebê havia atin­gido a parte inferior do canal de parto. Minha insipiência médica me deixava à mercê do que era dito. O que sabia um aluno de terceiro ano da escola médica sobre partos? Quase nada. Sem perguntar se era permitido, invadi a área restrita do centro obstrético, depois de trocar de roupa no vestiário. A presença dos pais na sala de parto no início dos anos 1980 era vista com franca desconfiança. So­mente eram “liberados” aqueles que tivessem solicitado com antecedência para os responsáveis pelo centro. Estar ao lado de sua mulher, filha, amiga ou irmã era uma concessão, nunca um direito. Eu conhecia essa norma, mas, mesmo sem pedir solicitação, adentrei a área de partos e deixei claro que esse direito era meu, e que ninguém poderia me impedir de estar ali.

Eu agora estava todo de verde. Estava igual aos residentes e doutorandos. Tive a sensação (que eu repetiria alguns anos depois) de que havia vestido a roupa do Super-Homem, o todo-poderoso ícone de Seinfeld. Menos charmosa, com menos glamour, mas que produzia os mesmos efeitos. Senti-me participante de uma confraria de homens que decidem sobre a vida e a morte de outros. Há poder maior que esse?

Ela foi colocada deitada de costas sobre a mesa fria. Ainda era cedo para que eu entendesse o quanto essa posição das mulheres ao parir obedecia a uma ordena­ção simbólica oculta e inconsciente, e o quanto era prejudicial tanto para ela quanto para o seu bebê. Naquele dia, porém, eu era apenas mais um pai desem­poderado olhando atônito para uma mulher parindo inserida no modelo tradicional. Eu rezava e esperava o quanto podia; ela se esforçava além do que imaginava ser capaz. Fazia a força mais poderosa que seu corpo permitia. O alarido na sala vi­nha de todos os lados. As enfermeiras, os médicos, todos gritavam, como que querendo exorcizar a angústia que traziam dentro de si. Eu ficava parado, imóvel, assustado em um canto da pequena sala. Não ousava dizer uma palavra, porque temia que ela fosse interpretada como uma interferência, e me determinassem sair. Ela suava, pálida, jogando todas as gotas do seu sangue nos braços e no útero. Os minutos passam, e quanto mais tempo permanecíamos na sala de parto mais a ansiedade dos médicos aumentava. Eu já sabia, desde aquela época, que o relógio dos médicos é mais importante que a subjetividade de uma mulher pa­rindo. Gordas, magras, altas e baixas; ansiosas, tranquilas, aterrorizadas e alheias: todas eram iguais perante a visão homogenizante da obstetrícia. Sua de­mora em parir era sentida como ameaçadora pela equipe, e a angústia do resi­dente começava a aumentar. Sua testa destilava, e ele solicitava à enfermeira que a secasse. Eu observava as atitudes e anotava mentalmente. “Puxa, quando eu me formar, quero ter uma auxiliar só para secar a minha testa”. Brincava em soli­lóquio para afastar o pânico. Será mesmo que tudo está bem?

— Vou precisar de um fórceps — disse o obstetra.

Senti um medo vívido e dolorido pela primeira vez. Gritei em meus pensamentos:

— Lucas! Aguenta aí, meu velho! Eles querem puxar você!

A participação do pai no parto pode ser vista como um fato inato, geneticamente determinado, mas que não se expressaria na sua plenitude por fatores culturais e sociais. Mas também pode ser visto, alternativamente, como um processo de aprendizado absolutamente cultural. Ambas as formas de compreensão da “pater­nagem” coexistem na discussão contemporânea. De qualquer maneira, a expres­são última desse fenômeno é recentíssima na história da espécie humana. Nunca, em nenhum outro momento da história, o pai teve tanta presença e importância no nascimento de seus filhos como a época em que estamos vivendo. O que se per­cebe pelas últimas pesquisas é que o envolvimento paterno intenso, quando per­mitido, fortalecerá os vínculos futuros de assistência e afeto, tanto em relação ao bebê quanto com a sua mãe. Esse aspecto novo nas relações humanas, conju­gado com as modificações rápidas na sociedade nos aspectos sociais e econômi­cos, tem despertado o interesse de muitos pesquisadores a respeito das tendên­cias comportamentais relacionadas ao papel da paternidade no futuro da humani­dade. Nas palavras de Alice Rossi, “ou providenciamos uma compensação para o pai sob forma de treinamento nos cuidados com o recém-nascido, ou veremos um fortalecimento crescente da força e da importância da formação de apego entre a mãe e seu bebê, em função do fato de que a maternidade agora se estabelece por livre escolha e a figura paterna como fertilizador e provedor se encontra amea­çada”. Duas décadas se passariam antes que Maximillian, meu dileto colega e “mentor espiritual”, me contasse seu sonho pessimista sobre o masculino, mas que se encaixava perfeitamente no comentário acima.

Eu não sabia exatamente o que significava um fórceps, apesar de já ter visto al­guns. No terceiro ano de medicina, mal havíamos estudado bioquímica. Nada de pacientes, muito menos de grávidas. O pouco que eu sabia havia aprendido nos plantões intermináveis do Pronto-Socorro. Duas colheres frias de aço, entrelaça­das formando um “x”. Duas mãos de ferro, a tracionar o pólo cefálico. Eu não tinha noção de morbidade relacionada ao seu uso, mas sabia que ali estava uma deci­são que o obstetra estivera protelando pelos últimos minutos. Olhei mais uma vez para minha mulher. Cansada, frágil, fraca, intensamente bela. Mas também ela sentiu medo. O trovejar das colheres do instrumento de Chamberlain ecoou pela sala. Uma colher repousava na mão do residente, a outra aguardava na mesa.

— Fique em silêncio, não se mova… vou colocar a primeira colher. Vai sentir uma dor diferente, mas se você ficar quieta vai…

— Espera! — disse ela. O som saiu como um sopro por entre seus lábios sem cor. — Eu estou tendo uma nova contração. Deixe-me tentar de novo… por favor, uma última vez.

Em algum momento de nossa jornada na terra, tornou-se adaptativo para os ho­mens tomarem conta de suas fêmeas e filhos. Contrariamente ao que acontece com outras espécies, em que a participação paterna é inexistente ou pouco im­portante, entre os humanos tornou-se fundamental a presença do pai para a segu­rança daquilo que nossa espécie de forma muito específica criou: a família. A altri­cialidade, entendida como a extrema dependência do recém-nascido aos cuidados dos seus genitores, produziu essa aproximação do pai, na medida em que era mais interessante, do ponto de vista do sucesso reprodutivo, cuidar de uma fêmea e sua cria frágil do que tomar conta de diversas fêmeas e correr o risco de perder muitos recém-natos. A conduta adaptativa das espécies sociais, como os prima­tas, necessitava de uma intensa colaboração entre seus participantes. As ativida­des dos agrupamentos começavam a priorizar um comportamento baseado na divisão de alimentos e posteriormente na divisão das tarefas na família. Essa mo­dificação de tremenda importância na história da humanidade é a responsável por modificações na morfologia dos hominídeos, nos ecossistemas ocupados e na crescente dependência que se estabeleceu entre os recém-nascidos de nossa espécie, segundo as palavras do professor da Universidade de Kent, Owen Love­joy, autor da famosa publicação “A Origem do Homem”. Este mesmo autor escla­rece que a criação do núcleo familiar, pela disposição paterna de tomar conta de uma fêmea que lhe asseguraria a paternidade de sua descendência, produziu as condições necessárias para a supremacia da espécie humana, por fortalecer uma estratégia de cooperação e crescimento populacional. Assim, a paternidade, como fortalecedora do núcleo social, está relacionada à construção da humanidade como nós a conhecemos e concebemos. Hoje em dia cada vez mais a importância da interação afetiva (e não mais apenas econômica) é solicitada por parte do pai, e os valores da paternidade emergem em um mundo tão assombrado com as mu­danças vertiginosas nos conceitos até então inquestionáveis sobre o nascer, re­produzir-se e morrer.

A colher na mão do residente resolve voltar para junto de sua irmã sobre a mesa. Ambas em silêncio decidem assistir à última força, a derradeira tentativa. O resi­dente junta as mãos sobre o períneo de Zeza, como que a imaginar que delas surgiria a imantação a tracionar a cabeça de Lucas.

Então, o corte. Inevitável, cruel, cruento. Rasgava-se a carne, para manter intacta a estrutura social. Mantinha-se a ordem: “Só parirás se for através de mim. Pela minha mão sentirás em tua carne a lâmina grave que fere teu corpo. Ficarás mar­cada com a cicatriz eterna de minha presença. Terás teu filho pelas minhas mãos e por obra de minha vontade. Assim batizada, adentras o círculo da maternidade”. Também era muito cedo para me horrorizar com a barbárie das episiotomias in­justificadas.

O que me lembro a partir desse momento é uma coleção de fotos mentais, cola­das sem ordem no mural das lembranças mais cálidas. O choro, o medo, a emo­ção, a ansiedade, o alívio. A força suprema. O ápice da dor. O grito contido e a lágrima que escapa ao controle. As enfermeiras gritando, o médico com a respira­ção suspensa. Meu olhar fixo, e o coração parado.

Então ele aparece. Molhado, cabeçudo, “cabeça de ovo”. Tinha cara de “joelho”, como todo o recém-nascido, mas era incrivelmente lindo. Minha mulher dizendo que não conseguia ver direito, que queria tocar nele. A enfermeira secando sem cuidado; o corte rápido do cordão, privando-o das últimas gotas de seu próprio sangue, guardadas no claustro materno. A luz ofuscante da sala às claras, a pedi­atra chegando. Meu pobre filho sendo levado antes que minha mulher pudesse tocá-lo. Os comentários infelizes da neonatologista; o cansaço de Zeza. O abraço de minha mãe. Tudo se mistura, em uma amálgama de sentimentos, sensações, cheiros, cores e luzes. Mas ali estava ele. Sua primeira batalha havia terminado. E ali estava ela, radiante e gloriosa. Sua principal vitória como mulher tinha aconte­cido.

Olhei para suas feições procurando me enxergar. Na orelha, o mesmo furinho que o pai trouxe de nascença. O sorriso imaginado na contração do rosto mostra tam­bém as mesmas covinhas herdadas. Minha mulher não se importa que eu me jul­gue parecido; pelo contrário, sorri da minha necessidade de produzir uma vincula­ção. Sua ligação com a cria repousa sobre a evidência gritante e avassaladora da sua experiência corporal. Seus músculos doídos, sua sutura perineal, seu can­saço, tudo isso lhe prova. Toda a patrilinearidade da cultura se assenta sobre essa natural desconfiança sobre a linhagem paterna. Nós, homens, não experimenta­mos no corpo nossa descendência. Ela se instala na confiança e no desejo. Para criarmos essa certeza, lhes damos nossos nomes. Criamos neles a marca pa­terna, indelével e perene, para que nunca se apague nossa ligação, e nunca se duvide de nosso sangue.

Fixo-me em seus olhos. Olho atentamente para ele.

Você voltou, amigão.

Alguns anos se passam e a história se repete.

Acordo sobressaltado. Olho para o teto e descubro-me fora de casa. Estava na casa de praia e precisava acordá-la para contar o que havia acontecido.

— Zeza — digo eu. — O sonho… aconteceu de novo.

Ela primeiramente não entende. Olha para mim sem saber o que dizer. Aos pou­cos, sem mesmo precisar perguntar, vai se dando conta do que eu estava di­zendo.

Conto-lhe o sonho, esmiuçando os detalhes. O mesmo lugar, a mesma estrada, o mesmo breu. Novamente a luz se faz à minha esquerda, e de lá brota a voz grave anunciando a chegada de mais um integrante da família.

— Preparem-se. Mais alguém está para chegar. Sua mulher está grávida de novo, e terá um filho que se chamará… Josué.

— Impossível — diz ela. — Impossível mesmo. Desta vez você está errado. Existe uma impossibilidade absoluta.

Fico em silêncio e resolvo esperar. Horas mais tarde, pergunto de sua menstrua­ção e ela, um pouco irritada, me informa que “acabara de ter suas regras”.

Dou de ombros. Eu já sabia. Algumas semanas depois a realidade vem à tona, e a gravidez transformou-se, novamente, de sonho em fato.

O parto veio a acontecer três anos depois do parto de Lucas. Dessa vez, Zeza resolveu esperar em casa até o último instante. Foi a mais sábia decisão que po­deria tomar. Sabendo de antemão do estresse relacionado à hospitalização, pro­positadamente adiou sua entrada no centro obstétrico o mais que pôde. Muitos anos ainda se passariam para que eu percebesse racionalmente o que ela intuiu naquela noite quente de primavera. Ela “sabia”, mesmo que inconscientemente, que a internação hospitalar fora a principal fonte de desequilíbrio no seu parto an­terior. Entendeu que as horas que permaneceu no centro obstétrico foram extre­mamente estressantes e angustiantes, capazes de bloquear a progressão do seu trabalho de parto. Dessa vez, seria diferente.

O telefone tocou e do outro lado da linha a voz era suspirosa, entrecortada e tensa. No hospital-escola onde estava realizando meu último plantão como estu­dante, eu soube do que se tratava mesmo antes da primeira palavra. Zeza estava com contrações vigorosas, mas estivera em casa, fazendo o tempo passar, por várias horas. Esperou para me ligar apenas quando pressentiu que o momento era chegado. Eu a tudo escutei, e lhe disse que viesse ao hospital que eu me en­carregaria de chamar os colegas.

Chegou lá com mais de oito centímetros de dilatação cervical, e minha filha nas­ceu pouco tempo depois.

Minha filha? Mas não era esperado Josué, aquele que derrubara as altas torres de Jericó com suas trombetas, conquistando a terra prometida para o “povo esco­lhido”? O que foi feito do guerreiro hebreu? Afugentou-se com a dureza da em­preitada e ofereceu seu lugar a uma garotinha? Mistérios ainda não resolvidos. As múltiplas interpretações para esse fato ainda são motivo para acalorados debates em família.

Zeza, dessa vez, não teve tempo de ficar ranzinza. Do momento da internação até o parto, não se passaram mais do que duas horas. A sabedoria na parturição tam­bém ocorre com a experiência. Novamente eu estava junto dela, mas não precisei fazer pressão para ser admitido: eu era o doutorando do plantão obstétrico. Na­quela noite/madrugada de dezembro de 1985, o acaso colocou no mesmo plantão do hospital o futuro pai, o pediatra, a obstetra e o tio médico. Todos estavam lá, sem que nunca houvessem combinado. Isabel, que era esperada como Josué, nasceu linda e charmosa. Também nasceu de um sonho, como seu irmão. Igual­mente não foi planejada, mas a recebi como alguém que eu ansiava por reencon­trar. Percebi claramente que eu precisava estar no nascimento de ambos para po­der constatar a força transformadora que o nascimento produz. Para sentir a dor e a angústia de sentir-se sob o controle de algo muito maior. Sabia que este apren­dizado seria fundamental para moldar o médico que eu queria ser. Depois disso, tornei-me um defensor do direito dos pais de assistirem ao nascimento dos seus filhos. Fui obrigado a comprar algumas brigas e criar algumas inimizades, mas percebi que estava tratando de um dos mais elementares direitos do homem: o direito de presenciar o milagre da vida, de assistir a criação da sua imortalidade.

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Memórias do Homem de Vidro – 01

Nascimento em Metamorfose

Deitada no leito, sua face esquálida e suada parece ainda mais branca. Os lençóis revoltos encobrem um corpo inquieto. As sombras dançam na parede, tendo a brisa que entra pela fresta da janela como melodia. O teto, a cama, o lampião — nada parece ser exatamente o que é. A casa simples e rude está em sintonia com os personagens da cena. O olhar da mulher busca avidamente por alguém. Pre­cisa de algo. Seu coração sente a necessidade de ajuda. Nem sabe porquê, mas sua alma reclama uma presença. Sua mão se ergue em direção à porta em cujo batente, encostado, está um menino. Com os olhos arregalados pela falta de luz e pelo medo, o frágil menino lhe estende a mão magra e delicada. Ela espera que uma dor cesse, respira fundo e lhe diz com uma voz fraca, porém firme:

— Chame dona Maria, meu filho. Diga-lhe que chegou a hora. Avise que a bolsa já rompeu e que não demora ele vem. Ah, e avise seu pai também.

O moleque escuta e sai em disparada porta afora. Seu coração pula no peito. Ele é um mensageiro. É Feidípedes em sua maratona. Incorpora a gravidade do mo­mento e coloca o coração nos calcanhares. Está orgulhoso e empolgado com a tarefa. O medo se mistura à excitação. Vira quatro ou cinco esquinas, atravessa algumas ruas sem olhar para o lado e chega à casa de Dona Maria. Seu peito pa­rece pular mais forte do que as batidas que dá na porta da velha casa de madeira. Repete o gesto até escutar movimento na casa. Então, a porta se abre e vê apa­recer o vulto de uma velha senhora, nos seus sessenta e muitos.

“Dona Maria… a bolsa… a minha mãe. As dores…”, balbucia. Com fôlego entre­cortado, repete as palavras que pareceriam sem sentido, não fosse a velha se­nhora uma mulher acostumada à cena. Ela sorri um sorriso quase maroto. Olha enternecida para o menino. Pousa a mão calejada em sua cabeça suada. “Calma, moleque! Respire fundo… Já entendi tudo”, diz ela com o mesmo sorriso ainda no rosto. “Corre, avise seu pai. Mas antes tome um copo d’água. Fique tranquilo, vai dar tudo certo. Arrumo minhas coisas e já vou para sua casa.”

As modificações evidentes no entendimento do parto, oportunizadas pelos últimos séculos e principalmente nas últimas cinco décadas, nos obrigam a um questio­namento profundo e crítico sobre o respeito dos caminhos que estamos trilhando, assim como da responsabilidade que temos ao tratar de um evento de tamanha magnitude como processo de reprodução. A cena acima descrita faz parte do nosso imenso repertório de histórias de parto, mas talvez estejamos perdendo aos poucos a possibilidade de reviver essas narrativas no mundo real, pela absoluta invasão da tecnologia sobre esse cenário até então dominado pela natureza e seus desígnios.

Somos inexoravelmente seres culturais. Nossa história foi marcadamente cultural depois do processo de encefalização ocorrido há dois milhões de anos passados. Depois de termos conquistado a bipedalidade, o crescimento cerebral foi o grande processo adaptativo que nossa espécie teve de enfrentar. A necessidade de cres­cimento de massa encefálica foi consequência de uma maior especialização do nosso cérebro pelas crescentes tarefas incorporadas ao nosso dia a dia. Depois disso, a criação do núcleo familiar foi claramente determinada pela altricialidade do recém-nascido. Nossos filhos nasciam cada vez mais dependentes e frágeis, obrigando, por processos adaptativos, a manutenção desse homem primitivo ao lado dessa mulher. Assim, criamos o protonúcleo cultural: a família. Apesar de não ser exclusividade do ser humano (algumas aves a utilizam), ela é única em seus significados e em sua função. A dependência de outros parceiros para a caça, coleta, segurança, manutenção de alimentos e criação de filhos consagrou nossa tendência gregária. Vivemos, sim, amontoados. Esses fatos, encadeados e soma­dos, foram os responsáveis pela nossa sobrevivência como espécie e, mais do que isso, como o grupo dominante na face da terra. Somos seres que procuram proximidade e somos “contadores de histórias”, como diria Stephen Gould. Nesse contexto, construímos o que entendemos hoje por “cultura”, que é a multiplicidade de histórias e maneiras de entender o cotidiano. Aprendemos a usar ferramentas que fazem ferramentas; aprendemos com os erros dos outros; somos os únicos animais que encaram sua finitude e sabem que estão fadados à morte. Temos a capacidade de simbolizar e de articular sons. Criamos a cultura a partir do cresci­mento de histórias e do significado que a matriz da sociedade deu a elas.

A cultura é necessariamente fundada em pilares muito sólidos. Precisamos de re­gras, leis e regulamentos que permitam que o nosso natural instinto egoístico seja mantido sob controle, para que a sociedade como um todo possa sobreviver. Mas nossa cultura repousa sobre uma matriz invisível, criada por nós mesmo em nome dos valores que erigimos como sendo os mais adequados para a nossa sobrevi­vência. Cada local e cada sociedade têm seus próprios valores, com suas caracte­rísticas próprias, apesar de que assombra muito mais a semelhança entre esses valores do que as eventuais dissonâncias. Não existem sociedades sem tabus, nem sociedades sem controle sobre a reprodução. Isso nos dá conta de um pa­drão universal adotado para o ajuste das sociedades crescentes.

Entretanto, o mudar das circunstâncias obriga a reformulação da matriz. Essa mu­dança sempre é muito lenta e gradual, para não solapar a organização que a muito custo criamos. A tecnologia crescente dos séculos XVII e XVIII, juntamente com o humanismo e o iluminismo, nos fez aos poucos derrocar a religião e a ma­gia como direcionadoras dos nossos sonhos escatológicos, colocando a ciência e a tecnocracia como suas fiéis sucedâneas.

Nesse embate, que perdura até hoje, vimos paulatinamente a ciência conquis­tando espaços até então apenas ocupados pelo misticismo e pelas explicações sobrenaturais e religiosas. A instituição passou a ser mais importante do que a natureza, porque a instituição é obra do homem, enquanto a natureza é obra do divino; foi-nos dada de presente. O que foi construído e modificado passou a ser mais importante e valorizado do que aquilo que nos foi oferecido graciosamente.

Na saúde, não poderia ser diferente. Fomos doutrinados a acreditar que a natu­reza é falha e que apenas através de um aporte tecnológico podemos manter nosso equilíbrio orgânico. As crianças ocidentais são, desde a mais tenra idade, bombardeadas de forma incessante por todo o tipo de drogas; dos antitérmicos e antibióticos, passando pelos neurolépticos e até pelos antidepressivos. Somos (enquanto médicos ou pacientes) doutrinados a acreditar em uma visão exógena de doença, cuja solução só pode ser igualmente exógena. O contraponto a essa visão antropológica da doença é, no mundo ocidental, ocupado pela homeopatia e pela psicanálise, que acreditam estar no próprio ser a origem profunda dos seus males. Entretanto, são elas ainda visões minoritárias e contra-hegemônicas na cultura.

A imagem do menino corredor, buscando o auxílio na experiência de uma mulher mais velha, dotada de saber autoritário em uma era pré-tecnológica, parece aos poucos estar desbotando no mural das nossas recordações. Apesar disso, essa cena fez parte do cenário cultural de gerações. Está em nossa memória coletiva, no nosso inconsciente. Ela está nos filmes, nas histórias, nas lendas, nos contos. Está nos estudos de antropologia e nas canções populares. O universo do nasci­mento confundia-se com o universo do feminino, e a geração de um novo ser no claustro materno inseria-se absoluta e inexoravelmente no mundo das mulheres. Era seu destino, sua sina, sua dívida. Aos homens cabia a contemplação e o en­cantamento. E a inveja recôndita, mascarada e escondida. Durante os milhares de anos em que a humanidade se desenvolveu, esta era a regra básica para o en­tendimento do fenômeno: este é um mistério, um mistério divino. Uma coisa de mulher.

Uma série de eventos, entretanto, rompeu esse vínculo do nascimento com a na­tureza. O surgimento de várias conquistas científicas na área da biologia (como a circulação do sangue, a noção mais exata da anatomia pelas dissecações, os es­tudos de patologia, etc.), aliadas ao molde conceptual e filosófico trazido pelo me­canicismo de Renée Descartes, produziu o caldo cultural necessário para a en­trada do saber médico na obscuridade mágica e úmida do nascimento humano. A tecnologia, enquanto ferramenta, começava a ocupar o lugar outrora ocupado pela intuição e pela experiência.

Os homens, a partir de meados do século XVII, iniciavam na tarefa de atender as gestantes e os partos, deslocando paulatinamente as parteiras, curiosas e “bru­xas”, que durante milênios foram as únicas “cuidadoras de mulheres” no momento de parir. Era a “vingança” daqueles que durante milênios estiveram alijados do milagre. Agora os homens também seriam co-criadores. Era a “couvade” (meca­nismo pelo qual os homens se “apoderam” do nascimento nas culturas primitivas, como os índios brasileiros, por exemplo) se manifestando de forma triunfante. Mais do que os homens, o “masculino” entrava no mundo das mulheres, trazendo com ele as luzes da razão, na tentativa de iluminar o obscuro e até então impene­trável mistério do nascer. O marco inicial dessa revolução poderia ser materiali­zado no primeiro grande instrumento masculino no atendimento ao parto: o fór­ceps. Criado pelos irmãos Chamberlain, na Inglaterra, foi mantido escondido dos olhares de curiosos, por ser uma ferramenta tão importante a ponto de tornar-se alvo da cobiça de concorrentes. A entrada dessa ferramenta fálica na história do nascimento determina um divisor de águas na obstetrícia. Nada mais seria como antes.

Com o correr dos anos cada vez mais tecnológica a obstetrícia foi se tornando. Os homens, antes espectadores atônitos e amedrontados, tornavam-se aos poucos condutores do processo. As mulheres passavam de protagonistas a assistentes passivas, seja como auxiliares dos médicos, seja na pele das próprias parturien­tes. O preço que a ciência cobraria para a sua entrada no cenário do nascimento ficou claramente estabelecido. A partir de então, não seria mais a natureza, com seus mistérios e incertezas, a conduzir o processo: a razão e a ciência assumiriam as rédeas. Com isso, muitas vidas poderiam ser salvas, muitas mulheres deixa­riam de morrer; muitas crianças seriam retiradas heroicamente do seu destino cruel pelas mãos (ou instrumentos) que os homens traziam.

Poucos séculos nos separam da obstetrícia “feminina”, mas podemos constatar, através das informações que nos chegam, a guinada que produzimos no atendi­mento às gestantes. Nos dias de hoje, no mundo ocidental contemporâneo, quase todos os partos são realizados em hospitais, estando as mulheres apartadas do seu ambiente e da sua família. O nascimento deixou de ser um evento cultural para se tornar um acontecimento médico. A intervenção passou a ser a regra. Na classe média das grandes cidades, os índices de cesariana chegam a 90%. Nos partos normais, ocorrência cada vez mais rara nos centros médicos do ocidente, cerca de 90% das pacientes usam medicações potencialmente perigosas para os bebês. A analgesia do parto tornou-se quase uma obrigatoriedade nos centros obstétricos. A intolerância com as práticas não-ortodoxas tem aspectos de perse­guição religiosa. A jornada tecnológica adentrou e apoderou-se do evento do nas­cimento, deslocando a própria mulher do papel de protagonista: os médicos e seus instrumentos tornaram-se os atores principais do parto. Às mulheres cabe a tarefa de transportar os “filhos do mundo”, para que no final do trajeto sejam rece­bidos pelos guardiões da saúde e do bem-estar, em nome da sociedade e das instituições. O apoderamento de um fenômeno humano, como o parto, por uma corporação ainda não foi suficientemente debatido para que entendamos as pro­fundas repercussões de tal mudança para a própria civilização, a cultura e a sa­úde.

Depois de um investimento pesado nas conquistas da ciência, temos o dever de reavaliar nossas posturas e no que em verdade avançamos. A ninguém parece plausível que o fenômeno do nascimento seja relegado à desassistência, mas o preço pago pela supermecanização parece estar cada dia mais alto. Surge na ca­beça de muitas mulheres, bem como de muitos profissionais da área, uma ques­tão: pode um fenômeno tão visceralmente feminino como o nascimento ser con­duzido por pressupostos filosóficos tão absolutamente masculinos? Da resposta a essa questão certamente aparecerão novos posicionamentos, novas visões e uma reavaliação do que realmente conquistamos até agora.

Os resultados negativos do tecnicismo nós os vemos todos os dias: epidemia de cesarianas, mortalidade materna alta, morbidade perinatal alta, incidência au­mentada de prematuridade iatrogênica, insatisfação das usuárias e custos estra­tosféricos. Apesar de, no mundo de hoje, uma grande parcela das crianças ainda nascer pelas mãos das parteiras, no ocidente da atualidade a medicalização cres­cente é uma realidade que nos mostra esses índices alarmantes. Ao lado de ofe­recer segurança para as mulheres no momento de parir, está na hora de garantir­mos a elas aquilo que ancestralmente possuíam e que lhes foi retirado pelo modo de vida contemporâneo: o afeto, a parceria, a feminilidade, o calor, a alegria e a sensação de aconchego que outrora recebiam em seus lares.

Nossa medicina obstétrica iatrocêntrica (centrada na figura do médico), etiocên­trica (centrada na patologia e na doença) e hospitalocêntrica (que entende e privi­legia os hospitais como centros disseminadores de saúde) não consegue oferecer a feminilidade que o parto reclama, pela incapacidade de reconhecer as necessi­dades básicas de uma mulher no momento de parir. É chegada a hora de que es­ses conceitos masculinos aplicados ao nascimento, que há alguns séculos po­voam os nossos dias, sejam revistos.

Para que o parto possa novamente ser uma “coisa de mulher”. Com segurança, com alegria e com afeto.

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Memórias do Homem de Vidro

Orelha – Prefácio – Introdução

Orelha

Ricardo Jones, MD is a physician who is both knowledgeable in evidence based – best practices and honors the wisdom of this sacred and sensitive time in a woman’s, baby’s and family’s life.  It is with this blend of wisdom and knowledge that Dr. Jones is shining a light on our current path of technocratic darkness to a new way of caring for women at this very special time in their lives.

“Memórias do Homem de Vidro”  shows us a model of physicians working in collaboration with midwives, nurses and doulas, supporting women as they reclaim the power and majesty of birth.   His strong yet gentle presence allows babies to enter the world in peace and surrounded by an environment of love and nurturing. In order to create a peaceful world, we must start by how we care for women and their babies at this sensitive and sacred time of bringing a new life into our world.

Dr. Jones in sharing his journey from doctor to healer, will encourage you to begin your own journey.   (Book Title) will have you reflect on your practices and your beliefs surrounding childbearing and transcend what is outdated and develop a new model of caring, that promotes, protects and creates peaceful births and ultimately a more peaceful world.

Debra Pascali-Bonaro, B.Ed, LCCE, CD(DONA) PCD(DONA)

Childbirth Educator, Doula Training and member of the Leadership Council Coalition for Improving Maternity Services, and the Adjunct Faculty for Continuing Education, School of Nursing, State University of New York at Stony Brook, Stony Brook, NY.

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Prefácio

Ricardo Jones é um homem com uma história para contar – uma história que começa com transparência, passa por transformação e flui para integração. Nesse maravilhoso livro, ele conta essa trajetória através das diversas narrativas dos partos que ele assistiu, e das mulheres que o ensinaram a maioria das coisas verdadeiramente importantes sobre o nascimento.

Eu conheci “Ric” – como ele se tornou conhecido no universo cibernético – no Congresso Internacional de Humanização do Nascimento de 2000, em Fortaleza, onde nós – e todos os demais participantes – pudemos presenciar o nascimento de um movimento internacional de resgate do parto e nascimento. Os organizadores do Congresso esperavam ao redor de 600 congressistas, mas no fim do primeiro dia já havia 2000 inscritos. Médicos, enfermeiras-obstetras, enfermeiras, doulas, oficiais do governo, administradores de hospitais e dezenas de parteiras tradicionais se uniram em torno de uma profunda preocupação com as condições do nascimento e cuidado materno na América Latina. A alta taxa de cesarianas no Brasil foi o principal catalisador dessa conscientização geral pela necessidade de uma mudança. No congresso havia uma grande confusão sobre qual seria o real significado de “humanização do parto”. Alguns hospitais, através de seus diretores, se pronunciavam afirmando terem se “humanizado” porque agora permitiam a entrado do pai na sala do parto. Outros médicos, entretanto, insistiam que humanização deveria ser bem mais do que isso. Neste contexto, e na condição de antropóloga ligada à reprodução e ao nascimento, proferi uma palestra com a intenção de esclarecer o que a humanização do parto genuinamente é. Sabendo que a humanização só pode ser compreendida entendendo-se o que ela não é, apresentei três paradigmas internacionais do nascimento: o modelo tecnocrático, o humanístico e o holístico.

Sintetizando, o modelo tecnocrático enfatiza a separação entre corpo e mente, e estabelece a máquina como a mais adequada metáfora para o corpo humano. Esta metáfora privilegia a percepção do paciente como objeto, a alienação do médico de seu cliente e o uso intensivo de intervenções tecnológicas durante o parto. Objetiva melhorar o funcionamento ou corrigir as assim interpretadas disfunções do corpo/máquina da mulher que está parindo. No outro extremo deste espectro de conceitos, o modelo holístico define o corpo como um “campo energético” em constante interação com outros campos de energia, e insiste que intervenções no nível energético e emocional podem ser mais efetivas e muito menos danosas do que as intervenções tecnológicas. Os proponentes da Humanização do Nascimento encontram-se no terreno intermediário dessas duas correntes, definindo o corpo humano como um “organismo” e enfatizando a importância do paciente como sujeito relacional. Estes profissionais supervalorizam a conexão e o afeto entre médico e paciente como elementos essenciais de qualquer tipo de cuidado médico, incluindo-se aí o nascimento. Os Humanistas fazem, sim, intervenções tecnológicas, mas tentam minimizar seus efeitos potencialmente alienantes com amor, tato, carinho e compaixão, mantendo sempre uma atitude de respeito pela individualidade, desejos, vontades e escolhas de seus pacientes. (Para uma descrição e análise completas desses paradigmas ver: Davis-Floyd and St. John 1998; Davis-Floyd 2001).

OS MODELOS TECNOCRÁTICO, HOLÍSTICO E HUMANÍSTICO EM MEDICINA:

O Modelo Tecnocrático de Medicina

  1. Separação mente/corpo;
  2. O corpo é visto como uma máquina;
  3. O paciente como um objeto;
  4. Alienação entre médico e paciente;
  5. Diagnose e tratamento de fora para dentro (curando doenças, reparando disfunções);
  6. Organização hierárquica e padronização de atendimento;
  7. Autoridade e responsabilidade inerentes ao médico, não ao paciente;
  8. Supervalorização da ciência e da tecnologia;
  9. Intervenção agressiva com ênfase em resultado a curto-prazo;
  10. A morte é encarada como uma derrota;
  11. Um sistema dirigido pelo lucro;
  12. Intolerância com outras modalidades;

Princípio básico subjacente: separação;
Tipo de pensamento: unimodal, cerebral esquerdo, linear.

O Modelo Humanístico (Biopsicosocial) de Medicina

  1. Mente e corpo como uma unidade;
  2. O corpo como organismo;
  3. O paciente como sujeito relacional;
  4. Conexão e afetividade entre profissional e paciente;
  5. Diagnóstico e tratamento de fora para dentro e de dentro para fora;
  6. Equilíbrio entre as necessidades da instituição e as do indivíduo;
  7. Informação, tomada de decisões e responsabilidade compartilhadas entre profissional e cliente;
  8. Ciência e tecnologia contrabalançadas com humanismo;
  9. Focalização na prevenção das doenças;
  10. Morte como um resultado aceitável;
  11. Cuidado compassivo;
  12. Mente aberta diante de paradigmas alternativos de tratamento.

Princípio Básico Subjacente: Equilíbrio e Conexão
Tipo de pensamento: Bimodal

O Modelo Holístico de Medicina

  1. Corpo, mente e espírito como uma unidade;
  2. O corpo é um sistema de energia ligado com outros sistemas de energia;
  3. Cura a pessoa “inteira”, no contexto de sua vida como um todo;
  4. Médico e paciente como uma unidade essencial;
  5. Diagnose e cura de dentro pra fora;
  6. Estrutura organizacional em rede, que facilita a individualização do atendimento;
  7. Autoridade e responsabilidade inerentes a cada indivíduo;
  8. A ciência e a tecnologia são colocadas a serviço do indivíduo;
  9. Uma focalização que objetiva criar e manter a saúde a longo-prazo;
  10. A morte é encarada como uma etapa de um processo;
  11. A cura é o foco principal;
  12. Admite várias modalidades da cura;

Princípio básico subjacente: conexão e integração

Tipo de pensamento: multimodal, cerebral-direito e fluído.

 O Espectro Médico

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Modelo tecnocrático >>>><<<< Modelo humanizado >>>><<<< Modelo Holístico

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Essa tabela foi retirada do livro “From Doctor to Healer: The transformative Journey” de Robbie Davis-Floyd e Gloria St.Jonh. New Brunswick NJ: Rutgers University Press, 1998.

Ao me virar para sair do pódio, quando do término de minha palestra no Congresso de Fortaleza, dei de frente com um grupo de jovens e entusiasmados obstetras que desejavam me conhecer. Diziam eles serem médicos de muitas cidades do Brasil, esforçando-se, à sua maneira, para realizar um trabalho verdadeiramente humanizado, ou até mesmo holístico. Grande parte deles sofria pelo fato de serem os únicos profissionais tentando trabalhar de uma forma diferenciada em suas comunidades. Isolados e escassos, foram aos poucos se encontrando uns aos outros e criaram uma rede nacional – a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – que eles abreviaram como REHUNA. Eles pretendiam que essa rede e sua organização se tornassem parte integrante de um grande movimento de humanização da assistência à saúde no país.

Ric era um membro entusiasta desse pequeno grupo.

Em Fortaleza nosso encontro foi breve mas, 10 meses depois, em uma conferência no Rio de Janeiro, ele me ajudou como tradutor e como “professor” sobre a realidade do nascimento no Brasil. Lá, e em outras conferências que se seguiram, tive a oportunidade de ouvir suas palestras e conhecê-lo melhor. Acabei desenvolvendo uma profunda admiração pela sua jornada transformativa, afastando-se da obstetrícia intervencionista e tecnocrática e se aproximando cada vez mais de uma abordagem verdadeiramente holística. Eu fiquei surpresa ao saber que ele atendia em um consultório de ginecologia e obstetrícia, prestava assistência como voluntário em uma clínica homeopática para a população pobre de sua cidade e realizava partos em hospitais e nas casas das suas pacientes, utilizando uma abordagem multidisciplinar e atuando em equipe.  Sua equipe consiste de um obstetra (o próprio Ric), uma enfermeira obstetra (Zeza, que é a sua esposa) e uma doula (Cristina). Muito simples e muito eficaz. Juntos eles assistem partos nas casas das pacientes e, se uma transferência para o hospital se mostra indispensável, Ric como médico fará qualquer tipo de intervenção necessária. Eu pude perceber que esse modelo simples utilizado pela equipe de Ric agregava um valor que as parteiras do meu país, os Estados Unidos, emprestam muita importância, e que denominam de “continuidade de cuidado”. Percebi na arquitetura simplificada e eficiente que adota no atendimento às gestantes de sua cidade um exemplo claro de “modelo que funciona”, e o convidei a participar do meu novo projeto de livro que se chamará “Models That Work”, que congregará experiências transculturais de sucesso na abordagem ao nascimento no mundo inteiro.

Eu fiquei igualmente impressionada pela percepção que Ric tem de seu papel na assistência aos partos. Ele considera o trabalho de parto e o parto como sendo um processo por essência da mulher. Desta forma, ele tende a ficar “fora do caminho” para permitir que a doula e a enfermeira obstetra trabalhem para apoiar a mãe enquanto o processo se desenrola. Ele está lá para auxiliar com sua experiência e conhecimento, caso se faça necessário. Entretanto, gosta de brincar dizendo que sua principal função durante o trabalho de parto é como fotógrafo. Se a mãe escolhe ter um parto hospitalar ele estará lá para dar suporte junto com a enfermeira obstetra e a doula, intervindo, se necessário, com suas habilidades técnicas; o mesmo ocorrerá se a preferência for um parto domiciliar, desde que cumpridas as rígidas regras para assistência ao parto fora do hospital. A principal diferença entre obstetras como Ric e os mais tradicionais e tecnocráticos não é relacionada às habilidades, mas sim às ideologias que determinam sua prática e que estabelecem um atendimento mais baseado em evidências científicas atualizadas. Por seu profundo estudo destas evidências Ric sabe quando as intervenções são verdadeiramente indispensáveis para salvar vidas e quando essas mesmas intervenções vão apenas interferir negativamente no processo do parto e criar complicações. Suas pacientes que utilizaram ocitocina, fórceps, ou mesmo uma cesariana podem ter certeza que essas intervenções foram necessárias e apropriadas. Muitos médicos têm medo do que pode acontecer se apenas deixarem o parto fluir naturalmente, e são treinados para intervir a todo o momento para prevenir um possível desastre. Quando eles intervêem desnecessariamente essas intervenções freqüentemente causam problemas, que acabarão sendo resolvidos, ou não, com mais intervenções. Ao invés de passar por todo esse processo muitos obstetras brasileiros decidem por uma cesariana como primeira escolha, sem maiores reflexões. Poupam desta forma tempo, energia e dinheiro, livrando-se do compromisso mais rapidamente para poder retornar aos seus consultórios e atender seus pacientes privados. Ric teve o mesmo treinamento que eles médicos tiveram, mas durante o seu período de residência teve uma epifania transformadora, a qual ele relata nesse livro. Essa experiência, e as outras que se seguiram, lhe mostrou que o que estava fazendo, como um obstetra tecnocrata, era essencialmente tirar a habilidade e o poder feminino de dar a luz.

Diante desta dura constatação primeiramente ele se viu em choque. Percebeu que sua maneira de conduzir o parto estava equivocada, mas não conseguia encontrar uma alternativa de mudança. Foi então que começou a pesquisar a literatura internacional sobre humanização do parto e a estudar a enorme quantidade de evidências científicas que demonstram os efeitos negativos das intervenções mal aplicadas, assim como os efeitos positivos de uma abordagem não-intervencionista. A partir deste ponto criou o Protocolo de Atendimento Obstétrico Humanizado (PAOH) que estimula as gestantes a andar, manifestar as suas emoções, receber apoio físico e emocional de seus parceiros e da doula, ingerir líquidos durante o trabalho de parto e dar à luz em posições verticalizadas. Além disso, aboliu as intervenções rotineiras não justificadas cientificamente, como enemas, tricotomia, monitorizações eletrônicas, jejum forçado, etc. Ele acompanhou seu trabalho de mais de 15 anos através de estatísticas, realizando relatórios minuciosos de cada parto assistido, e pôde assim ver com clareza o enorme melhoramento nos resultados que essa nova abordagem humanizada estabelecia.

Não importa quão humanizado, quão competente e quão hábil seja, todo obstetra terá, em algum momento de sua carreira, de enfrentar uma morte. Esse momento veio para Ric quando sua cliente e companheira de lutas no terreno do feminino teve uma súbita embolia por líquido amniótico durante um trabalho de parto que até o momento transcorria de forma absolutamente tranqüila. Essa é uma situação que nenhum médico pode prever ou prevenir, e mesmo com todos os esforços de Ric, ambos, mãe e bebê, não resistiram. Sua paciente e amiga veio a falecer de uma infecção adquirida no hospital, quando já estava curada da embolia que a acometeu. Essa tragédia marcou a sua vida desde então, desafiando-o em todos os níveis. Eu também sei o que é ser eternamente marcado pela tragédia – três anos atrás minha filha Peyton morreu em um acidente de carro apenas quatro dias antes do seu 21º aniversário. Um dia Ric e eu estávamos discutindo a importância dessas tragédias gêmeas em nossas vidas, e percebemos que ambas ocorreram no mesmo dia, quase que no mesmo instante. Foi então que percebemos que de alguma forma estávamos ligados no esforço de transcender as tragédias que ameaçam nos destruir, para continuar no nosso esforço de melhorar o atendimento às mães e aos bebês.

Com o tempo, Ric se transformou para mim em um modelo do que pode acontecer com um médico que tem a coragem de pensar fora dos estreitos limites estabelecidos pelo seu treinamento médico e que baseia sua atitude profissional na medicina baseada em evidências científicas e no ato de ouvir e de dar poder às mães durante o parto. Eu já havia escrito um livro sobre o mesmo tipo de transformações que ocorreram nas mentes e nas práticas dos médicos americanos que tiveram a mesma coragem de abrir suas mentes e seus corações. O livro se chama “From Doctor to Healer: The Transformative Journey”.

Esse livro mágico que você está segurando em suas mãos lhe contará as histórias da jornada transformadora de Ric e de seus maravilhosos partos. Aqui você vai poder sentir os resultados magníficos que suas pacientes puderam alcançar por ele estar lá não para controlar, mas para dar apoio e poder a elas. Foi escrito com paixão e amor, e é com paixão e amor que as mulheres que ele atende podem dar à luz no lugar e da maneira de sua preferência. Se todo o obstetra oferecesse às parturientes o mesmo tipo de atendimento que Ric lhes dá não haveria mais necessidade de melhoramentos no atendimento aos nascimentos, ou mesmo de movimentos sociais para criá-los. Mas ainda não é assim que as coisas ocorrem. É minha esperança que este livro ilumine o caminho de muitos outros, para que o sonho de um nascimento essencialmente humanizado e centrado na mulher, que eu e Ric sonhamos, possa se tornar realidade.

Robbie Davis-Floyd

Pesquisadora Sênior, Departamento de Antropologia, Universidade do Texas, Austin.
Professora Associada Adjunta, Case Western Reserve University, Cleveland, Ohio.
Cleveland, Ohio, Fevereiro 2004.

Bio: Robbie Davis-Floyd PhD é uma antropóloga médica especializada na antropologia da reprodução. Como palestrante internacional, ela é autora de mais de 70 artigos e do livro Birth as an American Rite of Passage (1992); co-autora do livro From Doctor to Healer: The Transformative Journey (1998), e de The Anatomy of Ritual (ainda por ser lançado); e co-editora de oito coleções, Techno-Tots (1998); Daughters of Time: The Shifting Identities of Contemporary Midwives (um exemplar triplo especial of Medical Anthropology 20:2-3/4, 2001), and Mainstreaming Midwives: The Politics of Change (ainda por ser lançado). Sua Pesquisa em tendências globais e transformações no cuidado médico, parto, obstetrícia e no trabalho das parteiras é contínuo. Seus projetos atuais abordam mudanças em parteiras e obstetras americanos, mexicanos e brasileiros.

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Prefácio à 3a Edição

Nos últimos anos, a partir do lançamento deste livro, muitos acontecimentos mar­caram a trajetória dos movimentos de humanização do nascimento no Bra­sil e no mundo. Como poderia ser facilmente previsto, os índices de cesariana no nosso País alcançaram o ponto que Maximilian chama de “flipping point”: o momento em que a chance de realizar uma cesariana em um determinado local é a mesma que acertar a face de uma moeda que ficará para cima quando arremessada ao solo. No ano de 2012 as taxas de cesariana atingiram 52% dos nascimentos. Desde que nos erguemos sobre nos­sos membros traseiros para vislumbrar um mundo de possibilidades infi­nitas, o mecanismo complexo do parto foi a nossa mais elabo­rada estratégia. Entretanto, hoje em dia, nascer através de uma grande cirurgia abdominal é mais co­mum do que ter um filho através de um mecanismo fisioló­gico, mecânico, hor­monal e psicológico com mais de cinco milhões de anos de experimentação.

Estaremos, nesse afastamento insidioso de nossa essência humana, caminhando celeremente para uma rota de fracasso, assim como ocorreu em nossa história sempre que desmerecemos as lições que a natureza nos ofereceu?

As transformações no imaginário sempre se processam primeiramente na pa­lavra. É ela quem vai ditar a marcha dos acontecimentos. Assim como ocorreu por oca­sião do surgimento da obstetrícia contem­porânea – onde foi necessária a desvalo­riza­ção sistemática da capacidade feminina de gestar e parir com segurança – o parto imerso na cultura precisava ser depreciado para que sua concor­rente – a ce­sariana – pudesse ser tratada como a “opção prioritária” para o nascimento. As pala­vras acabam desempenhando o papel de arautos de uma nova com­preensão e tradução da realidade. O comportamento tosco das “celebridades” contemporâ­neas apenas desnuda a forma de entender o nas­cimento no mundo atual. Onde antes vicejava a hi­pocrisia – se tudo se mantiver adequado tentaremos o parto normal – e todos sabíamos que a  história terminaria em uma mesa cirúr­gica, hoje existe o cinismo das cesarianas mar­cadas sem qualquer explicação ou justi­ficativa clínica. Mais ainda, produzindo uma reversão completa de valores, tornamos o parto normal uma eventualidade a ser evitada.  Inobstante a imensa quantidade de estudos com­provando os benefícios do parto normal quando comparados à cesa­riana, o parto fisiológico passou a ser entendido como um acidente de per­curso, que pode desviar perigosamente o rumo de um acerto previamente arranjado na forma de gravi­dez→cirurgia→recuperação. Um “acesso de parto” súbito e impre­visível é uma moléstia que pode colocar em risco o percurso “natural” de uma gra­videz, impe­dindo a realiza­ção de uma cesariana que agora se instala na “lógica cyborg”. Neste mundo ciborguificado – fanta­sia ciberné­tica alucinógena de Donna Haraway em “Cyborg Manifesto”- a cesa­riana se impõe como a prótese do parto natu­ral. Mesmo que através de falácias facilmente desmontadas, as cesari­anas são vendidas como a via mais segura, mais simples, mais rápida, mais controlá­vel, me­nos dolorosa, mais ba­rata (no tempo em que se utiliza um leito para parto hos­pitalar se reali­zam cinco ou mais cesarianas) e mais eficiente. Parece ser mesmo o modelo do século XXI. O mecanismo protético que superou o processo natural; ciência superando a natureza.

Resta saber até quando as mulheres se deixarão enganar por um modelo que as mantém afastadas de qualquer decisão, alienadas e dependentes de um poder que as desconsidera. Para além das questões relacionadas à autonomia e à li­ber­dade, esse modelo contemporâneo é responsável por conservar inalteradas as taxas de mortalidade perinatal en­quanto deixa a mortalidade materna acima de qual­quer limite decente ou tole­rável. No dia em que as mulheres perceberem que nessa histó­ria elas são apenas marionetes falantes, manipuladas por interesses outros, e não pelo com­promisso de segurança e qualidade no processo de nasci­mento, talvez te­nhamos uma nova era para o nascimento.

Por outro lado, os anos que nos separam da primeira edição desse livro também foram im­portantes para a solidificação de um movimento internacional de resgate do nas­cimento como evento feminino e fisiológico. Testemunhei o surgimento de inúme­ras organizações nos últimos anos, como a Parto do Princípio (Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa), a ANDO (Associação Nacional de Doulas), os GAPPs (Grupos Apoiados pela Parto do Princípio), a HumPar (Associação Portu­guesa pela Humanização do Parto), o IPU (Instituto Perinatal del Uru­guay) e o IMBCI (International Motherbaby Childbirth Initiative), além da conso­lidação da ReHuNa como a grande organi­zação nacional em prol da humani­zação do nasci­mento. O Núcleo de Parteria Urbana da ReHuNa é um dos novos integrantes dessa rede de organizações que lutam pelo resgate do feminino e pela restituição do protagonismo do nascimento à mulher.

Outro evento especial, a criação da Casa de Parto do Realengo-RJ, foi um marco no estabelecimento de um novo paradigma na assistência ao nasci­mento neste país. Os esforços para a sua manutenção dentro dos moldes de atenção humani­zada são um capítulo fabuloso da mobilização de organizações e profissionais humanistas do Brasil. As agressões sistemáticas contra colegas que apoiam esta iniciativa, por conta de corporações que se sentem ameaça­das, surtiram o efeito contrário: produziram a coesão de profissionais de todo o Brasil (e também do exterior) no auxílio a esta iniciativa, gerando uma avalan­che de apoios, manifesta­ções de adesão e ajuda, tanto explícitas quanto públi­cas. A partir desse episódio fortaleceram-se os grupos de profissionais huma­nistas, criando-se instrumentos de proteção profissional, para garantir amparo àqueles que desejam trabalhar com respeito à fisiologia do parto, restituindo o protagonismo à mulher. O resultado dessa luta foi o incentivo a uma visão integrativa do nascimento e às condutas respaldadas pela medicina base­ada em evidências.

A criação do programa “Rede Cegonha” pelo governo federal, e a participação de pessoas com perfil humanista na elaboração de projetos em nível federal para a saúde da mulher é outro fato que só pode nos encher de esperanças. As teses, outrora “radicais” ou “irreais” propagadas por profissionais ligados à ReHuNa agora são modelos admirados e perseguidos pelos gestores da saúde feminina do Brasil. Aos poucos, o que antes era o so­nho de poucos apaixona­dos tornou-se política oficial do Ministério da Saúde. Mesmo sentindo tristeza diante do descala­bro da assistência fria, autoritária e por ve­zes violenta a que são submetidas mu­lheres no Brasil no momento sublime de trazer vida à luz, é gratificante lembrar-se dos inúmeros obstetras, enfermeiras obstetras, parteiras tradicionais, obstetrizes, doulas, epidemiologistas, pediatras, psicólo­gas, nutricionistas, fisioterapeutas e tantos outros profissionais que dedicam sua vida a oferecer qualidade, afeto e se­gurança no seu trabalho cotidiano com a humanização do parto. Não há como de­sanimar; o trabalho árduo de res­gatar a porção de humanidade que se esvai pela coisificação do nascimento precisa de profissionais apaixonados e firmes.

A verdade é que ainda muito há que fazer. Uma recente pesquisa da FIOCRUZ demonstrou que mais de 27% das parturientes deste país atendidas pelo sistema público, e 17% das mulheres do sistema privado, relatam terem sido submeti­das a algum tipo de violência durante sua estada no hospital. As práticas insti­tucionais violentas são de todos os tipos: verbais, morais e até as físicas. Esta investigação apenas deixa claro que o evento do nascimento ainda carrega os preconceitos, violências e arbitrariedades construídas pelos séculos de visão sexista e diminu­tiva da mulher. Melhorar estas condições para transformar o nascimento num evento positivo é nossa tarefa.

Existem inúmeras formas de estimular a mudança de modelo de assistência ao nascimento através de estratégias complementares e não-excludentes.  Aqui es­tão as minhas sugestões, conforme publiquei no capítulo “Team Work” do livro “Birth Models that Work”, de Robbie Davis-Floyd:

  1. Atuação Governamental: Os governos centrais devem ser os grandes esti­muladores de mudanças sistêmicas e abrangentes. Para isso é fun­da­mental que existam critérios bem definidos para a implementação de polí­ti­cas de humanização. O objetivo dessa proposta é de que não se confunda “humanização do nasci­mento” com uma proposta de cesarianas profiláti­cas, anestesia peri­dural para todas ou outras ações que não favoreçam a resti­tuição do protagonismo do nascimento à mulher. O encaminhamento por parte do governo poderia iniciar com um processo lento e gradual de des­centrali­zação das unidades obstétricas, com o estímulo à criação de Casas de Parto desmedicalizadas, um reconhecimento do parto domiciliar assis­tido e com sistemas de referência ágeis, campanhas nacionais de su­porte ao parto normal e apoio aos médicos e enfermeiras que atuam em concor­dância com os protoco­los de assistência baseados em evidências. Além disso, a humanização do cuidado à saúde de forma global deve ser esti­mulada e financiada, através de modificações arquitetônicas nos centros obstétricos dos hos­pitais (a inclusão de piscinas de parto seria um grande passo) e pelo es­tímulo constante na educação continuada dos profissionais da saúde que atendem nos hospitais públicos.
  1. Atuação do Aparelho Formador: A modificação lenta e gradual de um pa­radigma iatrocêntrico (centrado no médico), etiocêntrico (centrado na patologia) e hospitalocêntrico (centrado no hospital) por um modelo mais moderno e de melhores resultados, como o modelo de parteiras, é uma das ações que pode ser realizada em longo prazo. Não é possível mais admitir que profissionais alta­mente treinados e qualificados para atender as patolo­gias sejam desviados para a atenção ao parto normal, que é um evento fi­siológico. O modelo das parteiras tem uma relação custo/benefício melhor, além de produzir resultados superiores, o que se pode comprovar pela dife­rença entre índices de morbi-mortali­dade de países desenvolvidos da Amé­rica e Europa. Cabe às universi­dades discutir essa realidade e investir na formação de parteiras profis­sionais, afim de lentamente mudarmos para um modelo mais racional e coerente. É igualmente importante criar um currí­culo humanista nas fa­culdades de medicina, enfermagem ou obstetrícia, enfatizando os aspectos relacionais e emocionais do processo terapêutico. Por fim é fundamental uma vinculação vigorosa com a Medicina Baseada em Evidências, exa­ta­mente porque ela é capaz de colocar freios às muitas mitologias in­consis­tentes que vicejam na obstetrícia contemporânea. Os ri­tuais de em­podera­mento de profissionais e instituições que percebemos na atenção à parturi­ente frequentemente servem como potentes desempode­radores das mulhe­res e seus bebês, não oferecendo a proteção que apre­goam, além de acrescentar riscos ao processo.
  1. Atuação do Terceiro Setor (ONGs): Para que estas iniciativas te­nham su­cesso é importante que haja interlocutores eficientes desta nova men­sa­gem. Para isso será necessário fortalecer as organizações não gover­na­mentais que trabalham pela humanização do nascimento, para que sirvam de ponte de ligação entre os desejos das mulheres e as diretrizes gover­namentais. Sem esses “pontos de intensificação” os sinais isolados tornam-se frágeis e débeis, impedindo que as demandas cheguem ao seu ende­reço. O fortalecimento e a unificação destas instituições são vitais para a construção de um novo modelo centrado na mulher. A unificação dos pro­fissionais humanistas do Brasil em torno da ReHuNa é um exemplo mundi­almente reconhecido de organização em prol dos ideais de renovação do modelo obstétrico.
  1. Atuação Educativa: Esse é o capítulo mais fundamental e mais com­plexo. Não existe modificação social profunda que não passe pela alte­ração das pessoas; não ocorrerá humanização do nascimento se não for através das mulheres. As mudanças de cima para baixo têm caráter autoritário, e desta forma os resultados obtidos só poderão ser fugazes e inconstantes. As verdadeiras e profundas alterações vêm na esteira de uma nova consci­ência, e por essa razão são lentas e graduais. Não se alteram valores e mi­tos (como o mito da transcendência tecnológica) através de decretos; eles só podem ser substituído quando uma nova vi­são social estiver apta para completar as lacunas do nosso imaginário. As mulheres são as grandes responsáveis pela alteração do paradigma, e por esta razão o diálogo com os grupos feministas, de mães, de con­sumidoras, etc., assume um caráter vital para o sucesso das iniciativas.
  1. Atuação Individual: No início dos anos 90 eu trabalhava em um pe­queno hospital militar no qual atuavam três obstetras. Eu e meu colega M. éramos vivamente interessados em realizar um trabalho diferenciado, ba­seado nas evidências médicas atualizadas, no apoio ao parto normal e res­peitando o protagonismo das mulheres. O terceiro colega era um interven­cionista con­victo que não aceitava os pressupostos da humani­zação, pois acreditava firmemente na inferioridade biológica da mulher. Um dia eu ob­servei ao meu colega M. que nós dois compúnhamos 66% de todos os atendimentos do centro obstétrico e que uma modificação nos resultados obstétricos da­quele hospital dependia apenas da nossa iniciativa. Na época nossa pe­quena maternidade ostentava a vergo­nhosa cifra de 45% de cesa­rianas. Não podíamos convencer o nosso colega a trabalhar do nosso modo, pois que ele não acreditava nos valo­res que defendíamos. Decidi­mos, então, que nós dois criaríamos um protocolo de trabalho simplificado para diminuir a incidência de cesaria­nas. Ele consistia de quatro pontos:
  1. Toda indicação de cesariana precisava ser discutida com o colega,
  2. Os partos seriam preferencialmente verticais,
  3. As pacientes teriam o direito a um acompanhante de livre escolha,
  4. As condutas seriam baseadas nas evidências científicas atualizadas.

Apenas nós dois utilizamos aquele modelo, enquanto nosso colega con­ti­nuou com seu modelo pessoal de atenção ao parto. Pois com aproxi­mada­mente dois terços dos atendimentos sendo realizados neste proto­colo sim­ples, em dois meses nosso índice de cesarianas pulou de 45% para 22%. Certamente aquela pequena unidade médica militar foi, por poucos meses, a de menor incidência de cesarianas do nosso estado. A que valor chegarí­amos se tivéssemos os três médicos atuando em conjunto? Esta singela iniciativa mostrou o poder das deci­sões individuais (no caso, de uma dupla de médicos) para produzir mo­dificações significativas, mesmo que em pe­quena escala. Infelizmente como esse modelo dependia da iniciativa pes­soal (e não institucional) ela voltou à estaca zero depois da minha saída do hospital. Entretanto, os resultados animadores dessa proposta mostram que iniciativas em pequeno nível são capazes de produzir resultados. Ja­mais podemos negligenciar o poder da iniciativa pessoal, principalmente quando esta é movida pela paixão transformadora. As palavras de Marga­reth Mead continuam sendo um estímulo para aqueles que lutam contra poderes estabelecidos e estruturas monolíticas de poder: “Nunca duvide da capacidade de um pequeno grupo de dedicados cidadãos para mudar os rumos do planeta. Na verdade, eles são a única esperança de que isso possa ocorrer”.

Para finalizar, espero que os anos que se aproximam fortaleçam os movimen­tos de resgate do feminino, aproximando de uma forma definitiva os ativistas que la­butam nas áreas do parto humanizado e da amamentação. O “continuum da hu­manização” deve ser cada vez mais valorizado e respeitado, pois que a própria continuidade da nossa espécie depende da forma como entendemos o processo de reprodução. Desmerecer a complexidade e a delicadeza das forças adaptativas que criaram a estrutura física e psicológica desse ser único e revolucionário cha­mado “homem” pode ser o nosso derradeiro equívoco.

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Introdução

O sol entrava pelo vidro duplo da janela do sótão, fazendo estranhos desenhos geométricos no carpete. No quarto acanhado, distribuí meus poucos pertences sobre a cama. Livros, roupas para o frio, minha câmera fotográfica e meu indefec­tível laptop. Na rua, a neve descoloria a paisagem, enchendo de branca monoto­nia os jardins das casas. Esquilos brincavam subindo e descendo a árvore, cujos galhos espiavam minha janela. As residências sem grades me causavam o incô­modo contraponto visual com as ruas da minha própria cidade, onde vivemos en­clausurados, envoltos em barras e muros, prisioneiros de nossa desigualdade so­cial.

Apesar da tristeza pela passagem por São Paulo, onde tive uma lição de desespe­rança absolutamente desnecessária, acordei aquela manhã em Cleveland com uma maravilhosa sensação de realização. Na noite anterior, telefonei para casa, avisando de minha chegada aos Estados Unidos, e Zeza imediatamente me falou do parto de “nossa” paciente.

— Nasceu o bebê de Pramuda. Foi tudo muito bem.

Não pude conter um suspiro de alívio. Depois abri os braços, em pleno restau­rante, e gritei: “Maravilha!”. Pramuda esperava seu segundo bebê e estava com 40 semanas e cinco dias. Seu primeiro nasceu em casa, já passados cinco anos. Na­quela ocasião, estávamos eu e Zeza tomando conta do trabalho de parto. Havia sido a primeira vez em que Zeza acompanhara um parto domiciliar, e depois do nascimento do pequeno Luis ela me confessou que ficara totalmente encantada. “Nascer em casa é uma outra história”, me dizia ela.

Daquela vez, ela e Cristina deram conta do recado. Ainda emocionada, ela me contou os detalhes principais do parto. Falou do medo, da preocupação, dos cui­dados, da sensação de impotência, das orações, da fé e da paciência. Falou tam­bém dos instantes de emoção incontrolável logo após o nascimento do pequenino.

— Foi o meu rito de passagem — disse ela ao telefone.

Eu tive uma imensa sensação de orgulho e júbilo. Zeza havia cruzado sua fron­teira pessoal e havia também crescido, junto com quem auxiliara. O nascimento humano é realmente uma ferramenta das mais poderosas para o processo de transformação.

Olhei para Robbie e os amigos em torno da mesa e lhes contei a história toda. Acabei me entusiasmando e falei das dificuldades da prática obstétrica humani­zada. A conversa acabou recaindo sobre todos aqueles que, diante de uma grande descoberta, sofreram a dor de carregarem um grande fardo. Estes eram os verdadeiros “super-heróis”, que levavam seu saber através de uma longa jornada e sentiam na própria carne o sofrimento que ele produzia. Outros personagens da história da medicina mereceram nossos comentários, até que chegamos ao meu preferido: o Grande Inácio, de Budapeste.

— Como poderia ser ele culpado de algo? — perguntei eu. — Ele foi um exemplo de mártir pela causa das mulheres. Qual seu erro, se sempre perseguiu os ideais de uma medicina mais humana e mais científica?

— Ele também teve a sua culpa, Ric. Faltou-lhe a temperança, além da necessária serenidade. Acabou vítima de sua própria descoberta. Não a descreveu da melhor forma. Guardou para si a sua indignação e fez do rancor a principal causa para a perda de sua sanidade. Ele deveria ter escrito suas conclusões, desde o princípio. Deveria ter apresentado aos colegas seus documentos, suas provas e estatísticas, mesmo que estes não os considerassem. Bateu de frente contra os poderosos, mas, em vez de seduzi-los lentamente com suas ideias, optou por combatê-los. Pecou pelo silêncio ou pelo modo atabalhoado e agressivo com que expunha seus conceitos.

Robbie foi firme e dura ao me dizer isso. Queria me mostrar que mesmo os gran­des homens podem falhar, se não souberem agir ou não tiverem generosidade suficiente para transmitir seu saber. Estávamos falando de Ignaz Phillip Semmel­weiss, médico húngaro que descobriu a origem contagiosa da febre puerperal no Hospital Geral de Viena, em meados do século XIX. Nunca conseguiu saborear o sucesso de sua descoberta porque, afastado do hospital e tratado como indigno para a função de médico obstetra, voltou para a Hungria, onde morreu vítima de septicemia, a mesma enfermidade que ele tanto tentou combater em suas paci­entes. Em seus últimos anos, estava insano, triste e amargurado, talvez maltra­tado pela culpa de não ter podido auxiliar as mulheres a quem atendeu. Durante décadas, carregou solitariamente, a chave para a salvação de muitas mães re­centes que morriam nos hospitais vítimas de infecções pós-parto. Muitos anos ainda se passariam para que suas conclusões fossem respeitadas e entendidas. Os paralelos com a iatrogenia hospitalar contemporânea sempre me impressiona­ram, assim como o pesado fardo que o levou primeiramente ao ostracismo, depois ao sofrimento e à loucura. É, sem dúvida, meu maior ídolo na obstetrícia, mas Robbie me apontava as falhas humanas que até os gênios carregam.

Flashback

Vejo-me deitado no divã da pequena sala no consultório de minha analista Eliana. Minha análise se iniciou quando da minha opção aberta pela homeopatia e pelas práticas alternativas no parto. Era preciso um suporte, um amparo, uma ajuda para poder atravessar esse caminho árduo que é a troca de um paradigma mé­dico. Sem essa ajuda, minha travessia seria muito mais dolorosa. Sem essa “doula”, é provável que minha caminhada pela medicina fosse muito mais dolo­rosa.

Com os olhos pregados no teto, choro a dor da incompreensão. A agonia maior é a da solidão, a falta de interlocução; a penúria de ouvidos compreensíveis. Falo da minha indignação diante de um modelo absolutamente apartado das verdades científicas e das necessidades das mulheres, movido por uma ideologia essenci­almente misógina. Não conseguia entender porque quase ninguém entendia o que eu tinha para dizer. Eliana sorri para mim e pergunta:

— E o que você escreveu a este respeito? Acha mesmo que ficar gritando aqui essas ideias é suficiente para modificar a realidade? Acha que é correto apontar desvios sem mostrar caminhos?

Fico em silêncio e me obrigo a concordar com sua observação.

Outro flashback

Minhas pálpebras cansadas recebem o brilho ofuscante e colorido da tela do com­putador. Já são mais de 11 horas da noite, e ainda estou no meu consultório, es­crevendo mensagens para as listas de discussão de parto natural. Através das linhas cibernéticas, conto para os meus amigos de longe uma história que me co­moveu muito e que me auxiliou a entender a dinâmica espiritual, afetiva e social do nascimento. Eu me encontrava em Recife, em 2001, como consultor em huma­nização do nascimento para os médicos do CISAM, hospital situado na divisa de Recife com Olinda, que atende um dos principais bolsões de pobreza daquela ca­pital brasileira. No centro obstétrico (CO), acanhado e apinhado de pacientes, foi criada a determinação de permitir a entrada de acompanhantes junto às grávidas, porque se percebia nessa iniciativa mais do que uma maneira de tranquilizá-las: entendia-se como um direito humano inquestionável. Assim, fui levado para lá exatamente porque a direção do hospital era simpática às ideias de humanização no atendimento às gestantes.

Em uma tarde de plantão no hospital, escutei uma cantoria vinda de um dos bo­xes, onde se encontrava uma grávida acompanhada de sua mãe. Voltei minha atenção imediatamente para lá, tentando entender do que se tratava. Era um cân­tico religioso, desses que são cantados em igrejas evangélicas. Imantado pelo som, abro a cortina de plástico que separa o box do corredor e vejo uma mãe con­centrada e de olhos fechados, cantando enquanto segura a mão de sua filha. Esta contrai o rosto a cada contração, imaginando diminuir suas dores de parir. Ao me ver adentrando a intimidade do pequeno espaço, a mãe imediatamente interrompe seu canto. Envergonhada, leva a mão à boca e diz:

— Desculpe doutor. Não queria incomodar. Essa canção é um louvor a Deus e um pedido de proteção para a minha filha. Desculpe atrapalhar; apenas tentava auxi­liar minha pequena, que está sofrendo para ter seu primeiro bebê.

Olho para a menina que está deitada ao lado. Não tinha mais do que 15 anos. Sua face exprimia dor e cansaço, mas parecia colada à mão de sua mãe. Fazia com ela uma união de corpos e almas, resgatando inconscientemente uma das mais antigas tradições da humanidade, qual seja, uma mulher sendo auxiliada por sua própria mãe a parir, e assim manter a humanidade, tarefa da qual todas as mulhe­res são devedoras. A candura e a profunda beleza da cena ficaram impregnadas na minha memória. Constrangido, quase nada pude dizer.

— Desculpe, minha senhora. Por favor, continue a cantar. Eu adoraria acompa­nhá-la, mas não conheço essa música. Sua presença aqui é muito importante para a sua filha. Não interrompa seu canto por minha causa.

Fechei a cortina e saí de perto, esperando que a mãe continuasse seu cantar, e nunca mais esqueci a voz daquela mulher simples e de seu canto melodioso, nem a intimidade verdadeiramente feminina dos dedos entrelaçados de mãe e filha.

Escrevi essa mensagem na lista de discussão com lágrimas nos olhos, porque percebia que pequenas atitudes muitas vezes são fundamentais para auxiliar uma mulher que está passando pelo mais fantástico ritual de passagem que um ser humano pode atravessar. Por outro lado, quantas pessoas estariam habilitadas a compreender o significado transcendental desta cena? Recebo como resposta na lista de discussão a frase:

— Ric. Você tem algumas histórias tão bonitas. Por que não escrever um livro so­bre elas?

Mais um flashback

Estou em um estúdio de televisão de minha cidade. Fui convidado a trazer minha opinião, como ginecologista, sobre o mau humor. Queriam que eu falasse das modificações hormonais da pré-menstruação e as consequentes alterações com­portamentais e psíquicas que as mulheres experimentam nesse período. Ao meu lado e em frente às câmeras, estão escritores, diretores de cinema, psicólogos e publicitários. A conversa acaba se concentrando na dor e sua potencial capaci­dade construtiva. Resolvo extrapolar os limites impostos à minha fala como gine­cólogo e decido discorrer sobre o sofrimento através de outro viés. Trato do mau humor como a “dor da inconformidade”. Tento mostrar que as transformações do pré-mênstruo possuem valor metafórico e simbólico, e que devemos sempre estar atentos a essas mensagens. Continuo minha fala observando que a dor é a mãe de toda a genialidade. Digo que Proust, Nietsche, Dostoievski, Virginia Woolf, en­tre tantos literatos (como Roger Jones, meu irmão e notório ranzinza), eram mal humorados e que a literatura era uma forma de “exorcismo”, capaz de aliviar suas dores. Terminei dizendo que a dor é a professora mais gabaritada do nosso pla­neta e que suas lições devem ser apreendidas em um sentido construtivo, para que através de seus ensinamentos possamos dignificar nossa expiação.

Mal sabia eu quão proféticas eram essas palavras.

*   *   *

A morte trágica de V. por uma infecção causada por varicela zoster em um hospi­tal da minha cidade e os tristes fatos que se sucederam foram o estopim para a minha determinação em escrever. Era fundamental que eu deixasse minhas pala­vras a respeito do nascimento humano e suas consequências médicas, sociais, psicológicas e humanas. Não poderia me permitir incorrer no mesmo erro dos que se calaram em função da dor, da indignação, da tristeza e da injustiça.

Pensei muito nos meus filhos ao escrever este livro porque queria que eles enten­dessem que, mesmo sofrendo, ainda existem suficientes razões para continuar na caminhada e lutar pelos ideais. Eles foram minha mais constante motivação. A eles eu dedico minhas histórias, porque sei que eles serão os que continuarão a construção de uma nova humanidade depois que eu me for.

As histórias deste livro são crônicas escritas nos momentos de tristeza e solidão que passei nos últimos três anos. Fazia uso da palavra escrita como o melhor analgésico para a minha dor. Os piores momentos de desesperança e tristeza os passei grudado a uma tela de computador, trocando mensagens e ideias com os amigos do mundo inteiro. Eles foram o esteio e a mão amiga nas piores horas. Muitas das histórias aqui relatadas foram originalmente escritas em madrugadas solitárias nas listas de discussão das “amigasdoparto”, do “partonatural”, do “par­tonosso” e das “maesempoderadas”.

As crônicas e os textos aqui apresentados não obedecem necessariamente a uma ordem cronológica, e assim podem ser lidos sem uma preocupação rigorosa com continuidade. São basicamente histórias de nascimento. Trazem a visão de um obstetra humanista na sua caminhada transformativa. São também uma ótica masculina sobre um evento visceralmente feminino. Os nomes das pessoas que compõe as histórias relatadas neste livro foram trocados, em sua maioria, para resguardar a intimidade que deve sempre cercar um evento tão significativo e pessoal quanto o parto. Minha sincera intenção ao contar minha história pessoal através dessas narrativas foi traduzir uma ínfima parte do encantamento que o nascimento humano é capaz de produzir no coração de quem se permite sentir.

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Violência

Você achou justa a ação do Hamas em 7 de outubro?

Essa é uma das perguntas mais prevalentes nos últimos tempos, mas serve como régua moral para classificar aqueles que se posicionam sobre o drama da Palestina. Em primeiro lugar, nada é “justificável” numa guerra, mas tudo que nas guerras ocorre precisa ser colocado em contexto. Não podemos nos perder em armadilhas lógicas. Os mais de 75 anos de massacres não poderiam ser interrompidos com abaixo-assinados ou ações nos tribunais, até porque Israel sempre desprezou as decisões da ONU. Além disso, é preciso reconhecer que se não fosse pela violência não haveria sequer a revolução francesa burguesa de 1789, que acabou com quase todas as monarquias europeias; sem a tomada violenta dos revolucionários Franceses e hoje seriam ainda súditos do Rei, e a democracia apenas um sonho e uma utopia. Culpar a violência reativa do Hamas e nada dizer sobre o holocausto palestino continuado é a narrativa racista e supremacista do sionismo.

Sim, acho que o combatentes reunidos da resistência palestina agiram de forma justa, mesmo que eu seja um proponente da paz. Achar que o Hamas é um grupo terrorista – como faz a imprensa burguesa – é jogar o jogo do imperialismo. O Hamas lutou com as armas que eram possíveis. Aliás, a sua ação no 7 de outubro será descrita no futuro como uma das maiores ações de guerra da história moderna. Esta ação, apesar das vítimas produzidas pelo exército fajuto de Israel, era o único caminho possível para a paz, pois a libertação de um povo subjugado há mais de 70 anos jamais se faria com tapinhas nas costas. O próprio Nakba – a expulsão forçada de 750 mil palestinos de suas casas – só aconteceu através de ações de terrorismo e de massacres por parte do nascente estado de Israel, as quais se mantém até hoje. Assim sendo, a resposta Palestina só poderia ser violenta, até porque todas as tentativas pacíficas falharam escandalosamente. Todos os acordos tentados com os sionistas foram descumpridos por Israel, porque jamais houve qualquer interesse na paz ou na criação de dois estados independentes e soberanos. Criticar a reação palestina às sete décadas de assassinatos, abusos, torturas, prisões arbitrárias, limpeza étnica e estupros é aceitar a narrativa do Império e o discurso vitimista do sionismo. O Hamas apenas agiu de acordo com as regras de violência que os próprios sionistas estabeleceram ao roubar as terras palestinas.

Para manter a ocupação de Israel e a brutalidade desumana como sempre foi praticada foi necessário controlar a opinião mundial através do uso da imprensa burguesa. Essa é a razão pela qual os massacres do Nakba só há pouco foram descobertos pelas pessoas do mundo inteiro. Hoje em dia, com a proliferação de smartphones, ficou impossível esconder a realidade do genocídio que está sendo cometido contra as populações oprimidas. Por esta razão, desde o princípio dos massacres Israel procura atingir a imprensa. Eles sabem que é preciso impedir a realidade chegar à todos no planeta. Quando o mundo inteiro puder saber a verdade, o racismo e a essência pútrida do sionismo supremacista acabarão imediatamente. Exterminar o modelo opressor de Israel é uma tarefa de todo o cidadão do mundo. A Palestina somos todos nós. Ao mesmo tempo em que os jornalistas são alvos preferenciais dos genocidas sionistas, canalhas mequetrefes de Hollywood se empenharam para impedir que a jovem e premiada jornalista palestina Bisan Owda concorresse ao Emmy, entre elas Selma Blair e Debra Messing, duas conhecidas sionistas que apoiam o massacre de crianças e a morte indiscriminada de palestinos. Felizmente para a parte saudável do planeta, esses monstros não conseguiram levar adiante seu projeto de silenciamento e It’s Bisan from Gaza and I’m Still Alive, – Aqui é Bisan de Gaza, e ainda estou viva – venceu o Emmy como melhor documentário.

Portanto, essa crítica ao “terrorismo” do Hamas – como se o Estado de Israel não fosse uma entidade ilegal e terrorista por excelência – é tosca e historicamente injusta, além de ser mentirosa, mas apenas sobreviveu por tantos anos porque existe um controle imenso sobre a imprensa internacional. Os mesmos jornais que acusam a Rússia de ser “anti-LGBT”, ter invadido a Ucrânia sem razão, ou que chamam Maduro e Xi Jinping de “ditadores” acusam os guerreiros que lutam pela liberdade da palestina de terroristas, sem mencionar o terror de Estado que é praticado pela potência de ocupação há mais de 7 décadas. Esqueceram de noticiar o que agora é conhecimento oficial: a maior parte das mortes no ataque de 7 de outubro 2023 foram causadas pelos helicópteros israelenses, usando a “Diretiva Aníbal”. E as mortes causadas pelo Hamas – que por certo ocorreram – foram atos de resistência à uma opressão obscena e continuada, violenta e indigna. Agiram a exemplo dos “freedom fighters” da Argélia, da Resistência Francesa, dos Vietcongs, dos russos em Leningrado e dos coreanos na ocupação japonesa e americana. Em verdade, “Terrorismo” é a forma como os opressores chamam aqueles que resistem aos seus abusos, mas eles são os guerreiros da liberdade do seu povo, e usam as ferramentas possíveis para empreender esta luta.

Aqueles que falam das “vidas inocentes” que foram perdidas na ação de resistência do Hamas respondam estas perguntas simples: digam até que ponto aguentariam o abuso dos colonos israelenses, grupos formados pela escumalha da Europa e da América. Depois que seus pais fossem torturados, seus irmãos fossem mortos, sua irmã abusada e seu filho preso, vocês continuariam a pedir “licença” aos invasores? Continuariam a apostar no “amor”? Tentariam, pela milésima vez, uma alternativa pacífica? Ou usariam armas semelhantes àquelas usadas por quem lhes massacra para, pelo menos, manter o que lhes resta de dignidade e para salvar a vida da sua família? Respondam com honestidade: qual seria o limite? Até quando suportariam? Não é aceitável que tenhamos uma postura ingênua sobre as forças materiais e econômicas que produzem os conflitos. Num contexto de agressões e abusos continuados apenas a reação violenta seria capaz de salvar a Palestina. Quem acredita em “legitima defesa” do sujeito precisa aceitar a “legítima defesa do povos”, até porque a própria ONU reconhece o direito de resistência violenta e armada dos povos ocupados!!! A liberdade é uma conquista dos homens, e para isso devem usar as armas que estiverem ao seu alcance.

Hamas e Palestina, neste momento, são a mesma coisa. O Hamas representa o maior, mais armado e mais capacitado grupo de defesa da Palestina. Portanto, defender a Palestina significa dar apoio irrestrito ao Hamas que, pela sua história e pelas próprias eleições realizadas em Gaza, é o legitimo representante das aspirações de liberdade do povo palestino. Qualquer um que tente deslegitimar o Hamas, acusando-os de “oprimir” o povo palestino, estará mentindo.

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Terrorismo

Responda com honestidade: qual a diferença entre um carro bomba arremessado contra um mercado e a explosão de pagers indiscriminadamente em Beirute no Líbano, inclusive atingindo médicos, enfermeiras e crianças? Pois o primeiro era chamado de “terrorismo” há alguns anos, quando se queria acusar os palestinos de ações desesperadas cujo alvo era a população civil. Por outro lado, a explosão de artefatos de comunicação de forma abrangente, atingindo ativistas do Hezbollah – mas também profissionais da saúde e pessoas comuns – agora é chamada pela imprensa ocidental burguesa de “ação de inteligência”. O uso de “dois pesos e duas medidas” para analisar um e outro fato não nos deixa nenhuma dúvida: temos um jornalismo imundo, sionista e imperialista, que tenta cotidianamente mentir, para assim mudar a narrativa em benefício do poder da burguesia. E com todo esse poder concentrado ainda tentam criar a ideia de que o totalitarismo é uma chaga do… socialismo.

Existe totalitarismo maior do que o torniquete de informações aplicado a milhões de pessoas simultaneamente pelas empresas de comunicação no mundo todo? Como podemos entender que a barbárie e o morticínio de milhares de crianças na Palestina não provocaram a devida e necessária indignação no ocidente se não pelo controle midiático aplicado pelo consórcio internacional de telecomunicações? Se é possível comprar toda a imprensa esportiva nacional para se calar sobre a jogatina desenfreada, o roubo escancarado e a falcatrua disseminada das “apostas esportivas“, mais fácil ainda é filtrar o que ocorre no Oriente Médio para tratar os brutais opressores e abusadores sionistas como “vítimas” do ataque palestino, apagando das manchetes os mais de 70 anos de brutal opressão, abuso, fome induzida, encarceramento, assassinatos e limpeza étnica, e criando a falsa ideia de que “tudo começou em 7 de outubro”.

Que existe uma ação genocida intencional na Palestina isso já não é mais passível de debate. Todas as ações de Israel ao longo da história, foram no sentido de boicotar qualquer direito dos palestinos às suas terras e, sempre que possível, “aparar a grama” (mowing the lawn) matando o maior número possível de palestinos nestas iniciativas mortais. Jamais houve qualquer interesse em produzir um acordo, mesmo quando este foi acenado e aceito pelos representantes palestinos. Israel é uma fábrica infinita de mentiras, engodos e falsidades. Misture isso tudo com a total impunidade no plano internacional – pela adesão inconteste do imperialismo aos interesses regionais de Israel – e teremos um país onde a tortura é exaltada, o holocausto palestino celebrado e as bombas caindo sobre o campo de concentração a céu aberto de Gaza um espetáculo aplaudido pelos colonos israelenses dos territórios ocupados – a escumalha fascista do ocidente.

Sem que o mundo tome ações vigorosas de bloqueio total a Israel continuaremos a ver o crescimento vertiginoso dos massacres. Nada para a máquina de morte de Israel, a não ser a força – a única linguagem que os sionistas entendem. Nesta guerra o mundo assistiu estarrecido ao fato de que os alvos israelenses não são apenas os soldados ou batalhões, sequer somente as guarnições ou os longos túneis sob a cidade de Gaza, mas as crianças e mulheres palestinas, pois sabem que elas são as matrizes e cuidadoras dos feridos e dos pequenos, enquanto as crianças representam o futuro da resistência.

O presidente Lula deveria usar do seu prestígio internacional e iniciar uma campanha internacional pela paz, rompendo com Israel e conclamando todas as nações do mundo a se juntem no esforço para um cessar fogo imediato e um bloqueio ao sionismo. Não existirá paz sem bloquear Israel e ameaçar sua integridade através de ações militares e diplomáticas. Se foi possível derrubar o apartheid na África do Sul, por que seria impossível fazer o mesmo com os racistas de Israel?

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Arquivado em Causa Operária, Palestina