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Queixa

“Um amor assim delicado
Nenhum homem daria
Talvez tenha sido pecado
Apostar na alegria”

A música “Queixa” de Caetano Veloso foi lançada em 1982 no álbum “Cores e Nomes”. Ela me cativou desde sempre, porque fala de uma questão universal, afeita a cada um de nós: o desamor, a subversão da paixão, que “quando torna-se mágoa é o avesso de um sentimento; oceano sem água”. Muitas vezes ouvi diferentes histórias sobre as razões pelas quais Caetano compôs essa música, tão dolorida e ressentida. Todavia, pouco importa: ele a fez para todos nós, para cada dor de amor pela qual já passamos, pois, de uma maneira ou de outra, esses sentimentos a todos nós pertencem e a eles tivemos acesso.

Entretanto, não é sobre o sentido último da música e sua poesia que eu me detive estes anos todos, mas sobre esta específica estrofe, que retirei da Internet. A razão para a minha curiosidade é que eu acredito que a letra de “Queixa” poderia, neste ponto preciso, oferecer uma interpretação dúbia, e eu sempre me diverti mentalmente explorando essa dualidade.

Sim, a música pode ser cantada como “Um amor assim delicado, nenhum homem daria”. Tenho certeza que assim Caetano pensou ao escrevê-la, até porque faz sentido na estrutura lírica da canção. Ele estava magoado, sentindo-se traído, ressentido e com raiva. Estava dizendo à sua amada que o amor que lhe ofertou nenhum outro homem seria capaz de lhe oferecer. Claro, faz sentido. Por outro lado, existe uma forma homofônica de cantá-la, mas diversa na escrita, que pode transformar completamente a ideia que a estrofe nos apresenta. Na minha cabeça eu cantava assim:

“Um amor assim delicado, nem um homem daria”

Eu adorava pensar que Caetano desejava dizer que “a delicadeza deste amor era tão grande que sequer um homem seria capaz de oferecê-lo”. Ou seja: (só) os homens seriam capazes de garantir a necessária delicadeza ao amor, mais do que as próprias mulheres. Um amor “delicado” seria um atributo de homens, e “um amor tão delicado” somente um homem seria capaz de entregar a uma mulher. Por certo que esta é uma interpretação bem pessoal, baseada em algo que – quase certamente – Caetano jamais pensou ou desejou colocar na música. Porém, eu pensei muito sobre este tema, e acho que de uma forma pode fazer sentido.

Vejam… o amor é um tema feminino. Para a humanidade as mulheres são as guardiãs do amor, algo que a elas pertence. Os homens, por certo, bebem dessa fonte, mas o amor é uma criação feminina, surgida da relação primitiva entre um bebê e sua mãe. Tamanha é a altricialidade (dependência do outro) dos bebês em relação a quem lhes cuida, pela saída prematura do claustro materno, que se produziu de forma espelhar um sentimento único de amor dessa mãe em direção ao seu rebento. Nesse momento na história do universo formou-se a fissura aberrante da ordem cósmica, falha colossal na tessitura da biologia. O amor surgiu da profundidade desses sentimentos inesperados e bizarros, e por esta razão Freud nos ensinou que “se o amor existe, este é o sentimento de uma mulher por seu filho, sendo todos os outros amores dele derivados”. Desta maneira, partiu das mulheres a criação do amor, mas graciosamente o ensinaram à humanidade, inclusive aos homens.

Por esta perspectiva, para o homem o amor não é natural; ele é um aprendizado bem mais complexo. É preciso que uma mãe (função) lhe conte essa história, com todos os detalhes do seu enredo amoroso. Esse ensinamento vai ocorrer desde os primeiros instantes em que a criança escuta os sons do mundo e reconhece seus brilhos e nuances. Portanto, para que um homem ame, é necessário que se torne delicado e pelo seu esforço torne do avesso o que dele se espera. Para isso, fragiliza-se, coloca-se de joelhos e à mercê daquela que o subjuga. Baseado nessa interpretação, eu escutei a música de Caetano como um elogio ao esforço do masculino de tornar-se delicado, frágil e inseguro para, só assim, ter acesso à energia hipnotizante do amor.

Ok, eu sei o quanto disso é puro devaneio, mas acredito que para mim, de forma absolutamente subjetiva, esta música abriu um portal através da vida própria que as músicas desenvolvem, a despeito das intenções e gostos de seu criador. Penso nela como um elogio ao homem que, apesar da brutalidade da qual sempre se sentiu devedor, é capaz de amar de forma aberta, frágil e …. delicada.

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Os Homens e o Cuidado

A primeira grande briga que tive contra o identitarismo na pauta da humanização do nascimento foi quando afirmei que os homens também poderiam atuar como doulas, desde que a gestante assim o quisesse e aceitasse. Por causa dessa simples afirmação, movida por um desejo de equilíbrio entre os gêneros, fui atacado e cancelado sem dó, acusado de “machismo”. Justificavam este cancelamento afirmando que os “homens estavam invadindo um espaço feminino”. Respondi explicando que nos últimos 50 anos tudo o que vi na sociedade foram mulheres invadindo “espaços masculinos” em todas as áreas da atividade humana, desde médicas até juízas de futebol, passando por pilotos de avião e presidentes da República – o que deveria ser saudado por todos. Não seria justo que os homens também pudessem se aventurar na seara do cuidado? A luta contra o essencialismo não deveria ser uma via de duas mãos – ou uma faca de dois “legumes”?

De nada adiantou minha resposta; fui xingado, ofendido e cancelado. “Como ousa?“, diziam algumas mais furiosas. Pois se há algo que me constitui é a ousadia. Não tenho problema algum em regar inimizades em nome da defesa de ideias honestas e sinceras – mesmo correndo o risco de estar errado. Não levo estas coisas para o terreno pessoal, mas já passados quase 20 anos ainda acho que minha proposta continua correta. A tese contrária à minha era de que “as mulheres foram desconsideradas por milênios, impedidas de fazer tarefas reservadas aos homens. Não seria justo que as poucas coisas reservadas a elas – como o cuidado – fossem agora divididas com quem já controlava quase tudo”.

Respeitosamente discordei. Acredito na lei biológica que diz ser o hibridismo uma característica que fortalece as espécies. Da mesma forma, sociedades com diversidade de gênero nas tarefas comuns aprendem com a diferença de perspectivas que homens e mulheres podem oferecer. A paralaxe que se produz aumenta nossa capacidade de entendimento dos fenômenos e auxilia na resolução de dilemas. Uma mulher que atua em áreas outrora dominadas por homens oferece mais qualidade a este trabalho e ao mesmo tempo aprende com esta nova função. Homens que atuam no cuidado – de doentes, crianças, velhos, gestantes – também cooperam com uma maior diversidade de compreensão do trabalho enquanto se nutrem com o aprendizado que recebem em seu labor.

Quando estive na China havia uma propaganda na TV sobre novas iniciativas de saúde governo. Uma delas era a incorporação de obstetras do gênero masculino na atenção pública ao parto. Na propaganda um marido avançava para atacar um médico quando ele se aproximava para examinar sua mulher. Uma enfermeira intervém e explica que ele é um obstetra, e que não teria nada a temer. Para aquela cultura, a ideia de um homem examinando as partes íntimas de uma mulher era tão estranha quanto o era para o ocidente no final do século XIX. Hoje parece estranho e bizarro um “doulo”, mas talvez sejam barreiras que o tempo vai desfazer. Como saber?

Eu sou testemunha direta desse processo. Vivo ao lado de 5 netos que são constantemente cuidados pelos seus pais homens. As tarefas de cuidado na Comuna são divididas de forma muito equânime, excetuando-se a amamentação. Posso constatar a qualidade de amor paterno que os meus netos recebem e o quanto isso é fundamental na formação ética que recebem. Para um velho, como eu, que foi criado em uma divisão sacrossanta de tarefas domésticas esta foi uma grande revelação. Ver a pequena revolução do cuidado foi um grande presente que a vida me deu. Por outro lado, existem resistências muito fortes, como esta da qual fui vítima. A psicanalista Vera Iaconelli, em um recente artigo, fala da dificuldade de garantir aos homens esta posição:

“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.(…) Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”

Para que a sociedade esteja legitimamente no caminho da equidade é fundamental reconhecer esta angústia feminina – e por vezes um rechaço explícito – em relação ao cuidado feito pelos homens com a mesma seriedade que entendemos a relutância destes em assumir a posição de cuidadores, onde será necessário muito mais do que habilidades técnicas e força física – que por milênios foram exaltadas como superiores – mas o desenvolvimento de novas aptidões como paciência, delicadeza, afeto, docilidade, compreensão dos limites, carinho e amor incondicional.

Sim, homens podem ser doulas; mais ainda: podem exercer as funções de cuidado com seus filhos, netos e avós; com os doentes, os acamados, os bebês e todo aquele que necessite da “fraternidade instrumentalizada”. Por mais que a ciência tenha adentrado no âmago das células ela jamais foi capaz de afirmar que o gene do amor se situa apenas no cromossomo X.

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Devaneios juvenis

Eu não passava de 14 anos e tinha uma vida inteira e incerta pela frente. Não sabia exatamente como era o mundo, como se construíam suas tensões e nem como se organizavam seus caminhos.

Sentado no banco do ônibus sentia os tapas estroboscópicos da luz que driblava os prédios e as árvores para encontrar meu rosto de menino. O ar frio matutino arejava meu pensamento colegial, e fazia minhas ideias volitarem por sobre o cabelo desgrenhado.

De súbito um corpo de aproxima do banco onde eu sentava. Não lhe pude ver pois que estava atrás da linha dos meus olhos, mas seu braço se projetou defronte meu rosto para se apoiar na guarda do assento em frente ao meu.

Uma moça. Só o que podia ver era seu braço coberto por uma fina lâmina de tecido branco que se ajustava às suas voltas e reentrâncias. O tecido terminava com uma delicada renda no punho, que cobria parcialmente sua mão pequena. Os dedos esquálidos terminavam em pequenas unhas vivamente coloridas com esmero e cuidado. A pele era morena, o que fazia contraste com a alvura do tecido da blusa, num contraponto instigante. A renda se movia com os solavancos do coletivo, fazendo uma estranha dança sobre a mão pequena e firme. No dedo anular um delicado anel, cuja luz refletida pintava de amarelo minha retina.

Fiquei olhando para aquele fragmento de pessoa, tentando imaginar o que se escondia para detrás do meu campo de visão. Como seria seu rosto, seu corpo, seus lábios e seios? Qual seria sua voz? Que pensamentos carregava em sua mente naquela manhã? Estaria, como eu, indo à escola? Seria mais velha do que eu?

Quanto mais eu brincava mentalmente com essas perguntas mais me fascinava ao olhar aquele braço à minha frente. Entretanto, percebi que este fascínio era muito mais pelo que eu não via do que pelo que se apresentava à minha frente. O que me excitava os sentidos era imaginar para onde corriam as veias que eu via plúmbeas na mão apertada contra respaldar do banco. O não sabido era o mais interessante; o que eu não via era o que mais me atraía.

Repentinamente a mão se desprega do banco e se recolhe, aproximando-se do corpo que eu não via. O chiado da porta se abrindo anunciou a parada. O corpo da moça é ultrapassado por outro vulto e seu braço escapa da minha visão. Quando crio coragem de voltar minha cabeça para trás e já não mais ela está ali. Envolta num emaranhado de corpos com pressa ela sai pela porta sem que eu tivesse a oportunidade de admirar o resto de si.

Com outro chiado e a porta do ônibus novamente se fechou. A moça da blusa de renda se foi sem deixar vestígios, e não ser a ferida viva em minha memória, a sensação inebriante de encantamento que me acompanha há quatro décadas.

Talvez ali, naqueles momentos de pura fantasia durante uma viagem matinal de ônibus, eu tenha me aproximado de forma definitiva do mistério e do encantamento que constituem o feminino. A esta moça a minha dívida por ter me oferecido uma amostra discreta do infinito que uma mulher representa.

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