“Dificil mundo este em que vivemos, onde é mais fácil quebrar um átomo que um preconceito”.
– Albert Einstein –
As lições
mais importantes e impactantes para os profissionais da área da saúde
resistentes às mudanças, também conhecidos como “os tecnocratas
renitentes”, não são aquelas recheadas de evidências, e isso eu descobri
da pior maneira possível, ao tentar convencer colegas que não se dispunham a me
ouvir. Essas aulas brilhantes sobre Cochrane, OMS, Ministério da Saúde,
protocolos, etc. produzem efeito apenas para os que percebem que evidências são
relevantes, e para aqueles que, depois de “sensibilizados”, entendem
que seus paradigmas são apenas modelos que competem com outras formas
alternativas. Os tais “paradigmas hegemônicos” estão nessa posição
tanto pela capacidade de responder aos desafios que lhes são oferecidos quanto
pela vinculação com o modelo econômico vigente (no caso o capitalismo). A tecnocracia
cumpria todas essas reivindicações e, por essa razão, oferecia aos médicos as
melhores respostas para os seus questionamentos. A humanização do nascimento
veio problematizar a visão positivista da obstetrícia contemporânea ao incluir
a questão do sujeito que gesta, junto com as específicas necessidades afetivas
e psicológicas que traz para a cena de nascimento. Para estas questões a
tecnocracia se oferece falha e deficiente e, assim, instala-se a crise.
Desta
forma, oferecer aos profissionais da saúde evidências científicas mostra-se
inútil sem que antes seja oferecida a eles a necessidade de calcar suas ações
em provas contundentes de aplicação benéfica para o binômio mãebebê. Entretanto, a forma de
sensibilizar profissionais para a “fraternidade instrumentalizada”
(no dizer de Max) não é pela via cognitiva, e sim pelos canais emocionais e
afetivos. As ações de caráter analítico e racional se assentam sobre uma
plataforma sólida de intuição e sentimento, para só depois poderem ser traduzidas.
Podem observar: a mudança paradigmática dos profissionais que abraçam a causa
da Humanização do Nascimento está forte e explicitamente marcada por fenômenos
de ordem emocional. Assim sendo, a ferramenta mais fundamental para oferecer
uma alternativa ao modelo hegemônico não é (em primeira instância) oferecer
provas e evidências de boas práticas. Antes é preciso que os profissionais que
tratam do rito de passagem que chamamos “nascimento”, sintam a necessidade de mudar, de pensar fora da estreita caixa cartesiana,
para só então aventurarem-se no mundo complexo, desconhecido e, por vezes,
inóspito, do humanismo aplicado ao nascimento.
A
abordagem, portanto, deve ser sistêmica e abrangente. Mais do que a razão, é
preciso tocar corações E mentes ao mesmo tempo. Faz-se necessário abandonar
a postura limitante da academia que insiste num biologicismo anacrônico como
forma única de entender o fenômeno humano.
Minha
entrada na humanização do nascimento se deu muito antes de compreender o
significado e a importância das evidências científicas na condução da
assistência ao parto. Tal mudança paradigmática se deu pela participação
presencial no nascimento dos meus filhos. Os cheiros, as imagens, os silêncios
entremeados com as guturalidades erotizadas de um nascimento me abriram um
portal sensorial violento, que me permitiram adentrar no espaço
afetivo-emocional do evento. Este lugar do “parto para além dos
sentidos” somente muito tempo depois foi preenchido por uma explicação
racional e científica. Eu tenho certeza que a arrogância cientificista nega tal
caminho, mas afirmo que até mesmo as análises mais racionais e matemáticas se
ancoram em fatos e lembranças caracteristicamente emocionais e primitivas.
Einstein mesmo dizia que a imaginação era muito mais importante para o seu
trabalho do que o conhecimento, que apenas seguia àquela. Disse o mestre:
“A imaginação é mais importante que
o conhecimento. O conhecimento é limitado; a imaginação envolve o mundo“.
Cientistas criativos são essencialmente poetas das leis naturais e seus
experimentos são os versos que escrevem com as letras da natureza. Imaginar que
a razão seja a principal motivadora de nossas ações é negar a avassaladora
força dos nossos sentimentos e desejos. Como diria Max, “a racionalidade nada mais é do que um verniz
tênue e translúcido que se aplica sobre uma capa grossa de mitos irracionais,
os quais envolvem um núcleo pulsante de medos ancestrais“. Para mudar
atitudes anacrônicas, muito mais do que lustrar o verniz aparente de nossa
tímida racionalidade, é fundamental entender as origens emocionais e profundas
de nossas condutas recalcitrantes.
Longe de
mim, e dos objetivos desse texto, imaginar que a paternidade tenha essa força
transformadora para todos que dela participam. Esse fenômeno é evidentemente
subjetivo em essência. Em nenhum momento eu afirmo que essa experiência poderia
ser reproduzida. Mas vejam bem: alguns hospitais modificaram posturas dos seus
serviços após debate interno sobre evidências, o que não significa que tais
condutas estejam nos corações e mentes
das pessoas que lá trabalham. Tais modificações podem ocorrer por um fenômeno
vertical, por determinação superior, e não por um real convencimento do
cuidador. Estas alterações eu já vi em dezenas de lugares, inclusive em um que
descrevo no meu livro segundo livro “Entre as Orelhas – Histórias de Parto”; o
hospital militar onde trabalhei por alguns anos. Lá a taxa de cesarianas
despencou de 45 para 22% em dois meses depois que criamos um protocolo de
assistência humanizada no hospital, muito simples e conciso. Entretanto, era
uma determinação do serviço que funcionaria enquanto certas pessoas
trabalhassem lá (eu, precisamente). Quando saí nada restou de humanização,
porque meus colegas nunca foram verdadeiramente tocados por esse paradigma.
Outro lugar em que eu trabalhei por pouco tempo foi em um hospital de periferia
de uma capital do nordeste brasileiro. Durante os dias que lá estive alguns
médicos experimentaram posição de cócoras para parir, deixaram de fazer
tricotomias e enemas, pararam de estimular puxos prolongados e esperaram para
cortar o cordão. Que aconteceu depois que dei as costas? Fácil prever…
Alguns
serviços podem, sim, mudar com a abordagem racional, assim como podemos
convencer pessoas de que suas atitudes podem produzir repercussões negativas em
suas vidas, mas a gigantesca maioria não irá proceder dessa maneira. O modelo
de “educação continuada” do MS, em que vários profissionais transitavam pelo
Brasil divulgando o ideário da medicina baseada em evidências obteve resultados
nulos na diminuição de cesarianas, por exemplo, mas acredito que tais
resultados foram insatisfatórios em qualquer parâmetro analisado. A resposta,
na minha modestíssima opinião, tem a ver com a abordagem racionalista adotada,
que não é capaz de mobilizar a plêiade de emoções, sentimentos e vinculações
inconscientes que são as verdadeiras motivadoras das condutas médicas. Nós não
deixamos de realizar episiotomias porque existem evidências em contrário! Fosse
isso verdade ela teria acabado há décadas, bastaria que aprendêssemos na escola
a inutilidade dessa cirurgia quando aplicada de rotina, e isso o sabemos desde
1983! O problema está em sabermos “conscientemente” e não “afetivamente”.
Apenas deixamos de realizar tais intervenções porque (entre outras razões) a
visão de uma vulva dilacerada nos mobiliza negativamente. Ou porque queremos
honrar a experiência de um profissional que nos auxiliou no passado, como
referência profissional. Ou qualquer outro significante do passado que nos
tenha impregnado em nível emocional. Pode ser, em verdade, qualquer migalha ou
fragmento de lembrança que se vincula a esse evento, catalisando afetos
recônditos. Assim sendo, o que em essência nos modifica não está acessível à
cognição. Trabalhar com os médicos apenas no verniz transparente (porém reluzente
e superficial) do consciente nos faz perder a infinita magnitude das
possibilidades. Pode nos oferecer a ilusão fátua de mudança, mas que se desfaz
diante da primeira contrariedade, tal como o calor de uma tarde se desfaz com a
deposição do sol no horizonte. As mudanças ocorrem da terra para o céu; do
coração em direção às mentes. As modificações cognitivas não têm sustentação,
pois não atingem o âmago diretivo do comportamento, que é afetivo e emocional.
Meu temor
é que uma abordagem racionalista (e arrogante) das posturas humanistas leve a
um efeito contrário: um fechamento das mentes. E isso pode acontecer porque
contrapomos um sistema de ideias oferecendo em troca outro, e isso pode
ocasionar um choque que é desnecessário. Uma caravana de missionários da
“verdade obstétrica baseada em evidências” é tudo que não precisamos (e não
digo que é isso que está se formando, mas é como podem nos ver). A abordagem
deve ser pela sedução e pelo redescobrimento da beleza da parturição, e a via
para isso é emocional. Necessitamos ajudar nossos colegas para que despertem
para o lúdico do parto, a beleza escondida nos gemidos e lágrimas e para que
façam despertar o feminino que trazem dentro de si. Apenas depois que tal ação
for realizada é que as evidências farão sentido e serão incorporadas às suas
atitudes. Antes disso teremos apenas ações com corpo, todavia desprovidas de
alma.