Arquivo da tag: materialismo

Culpa e Responsabilidade

Parto de uma premissa que entende que a responsabilidade pelas escolhas no terreno dos direitos reprodutivos e sexuais, no que diz respeito a parto e nascimento, certamente é das mulheres. Quem não se responsabiliza pelo que escolhe não têm autonomia; aqueles que assim agem não passam de crianças grandes, para quem jamais pode ser dada qualquer tarefa que exija comprometimento. Portanto, é importante pontuar a arrogância de algumas mulheres que acham possível mudar a essência de seus parceiros – ou de seus médicos – usando apenas a ferramenta da sedução. Dizendo isso, assevero que criticar esta postura ainda muito disseminada na sociedade não é “culpar as mulheres” por questões sobre as quais não possuem qualquer controle. Trata-se tão somente de fazer as mulheres serem donas de seu destino, garantindo a elas o protagonismo e a responsabilidade que está a ele associada. Há que se entender as diferenças entre “culpa” e “responsabilidade” para evitar conflitos desnecessários.

Aliás, esse maniqueísmo também precisa acabar. As pessoas podem ser vítimas e culpadas ao mesmo tempo. Um sujeito que é assaltado porque deixou o seu dinheiro saindo para fora do bolso traseiro é vítima de um assalto e ao mesmo tempo culpado pela falta de cuidado com o que possui. Mulheres vítimas de vivência obstétrica da mesma forma. Podem ser vítimas de ações abusivas, mas culpadas pela ingenuidade de suas escolhas ou pela sua …. arrogância. Não são situações excludentes, em hipótese alguma.

Prefiro tratar da responsabilidade das mulheres de serem protagonistas de suas escolhas. Sim, no Brasil a maioria das mulheres não pode escolher os médicos ou serviços de assistência ao parto, e esta é uma questão que está relacionada às dificuldades do nosso sistema de saúde. Todavia, o que eu proponho aqui é algo mais simples: aquelas mulheres que podem fazer escolhas não devem ser vítimas da ilusão auto infligida de que serão capazes de mudar a essência dos seus cirurgiões através da pura sedução, para que eles – por elas “transformados” – atuem contra suas próprias tendências e preferências. Isso está em paralelo com o exemplo de mulheres que acreditam ter a capacidade de mudar a essência de seus parceiros – muitos deles violentos, abusivos e alcoolistas – através dos recursos do afeto. Isso é uma arrogância que testemunhei durante décadas entre as mulheres que procuravam assistência no setor privado de assistência ao parto.

Além disso, o discurso de que as “mulheres são vítimas, não tem agência, não podem escolher nada” já cansou. Quem se coloca como vítima eterna e imutável jamais assume o protagonismo; agente e vítima são posições antípodas. O fato de ser vítima não determina a paralisia e não retira a responsabilidade da reação!!! Só as mulheres poderão transformar o parto; esperar que médicos se humanizem (de novo, pela sedução idealista de algumas mulheres) é arrogância. Médicos jamais vão modificar sua postura em relação ao parto e nascimento sem que ocorra uma pressão intensa da parte de quem se sente prejudicado. Apenas a luta organizada protagonizada pelas próprias mulheres poderá – através da luta e do confronto – mudar esta realidade. Portanto, não se trata de estabelecer culpas – que são via de regra inúteis – mas de responsabilizar as mulheres pelas escolhas que precisam ser feitas. Enquanto os médicos forem os únicos responsáveis só a eles será garantido o protagonismo. Nenhuma conquista ocorre sem luta e essa luta não pode ser alienada a ninguém.

Esse tipo de postura arraigada na cultura propõe a existência de dois grupos em disputa: os bons (as mulheres) e os maus (os homens). Portanto, se os homens são os culpados da violência no parto a responsabilidade de transformar o mundo seria… deles?

Não seria preciso falar sobre o fato de que hoje, no Brasil e no mundo, a maioria dos obstetras “maldosos e cruéis” que cometem violências contra mulheres são, adivinhem… mulheres. Mas para além disso, essa perspectiva baseada na culpa explica o atraso em qualquer conquista civilizatória na direção da equidade. Enquanto as mulheres acreditarem que a mudança da sociedade partirá dos homens (e a mudança do parto partirá dos médicos) ficaremos esperando que uma ilusória iluminação recaia sobre suas cabeças e, a partir disso, eles decidam fazer algo que jamais ocorreu na história do planeta. Ou seja: nenhum grupo abriu mão do seu poder pela transformação interna; todos foram forçados pelos conflitos e pela pressão que vem de fora.

Assim, a perspectiva de culpar os homens ou culpar os médicos – cujas atitudes são basicamente reflexos da sociedade onde estão inseridos, no tempo e no espaço – além de equivocada e injusta não produz nada, não faz nada, não ajuda nada e não transforma nada da realidade contemporânea. Quem acha que o problema da violência obstétrica recai exclusivamente sobre os médicos eu convido a passear pela seção de comentários de qualquer notícia de parto nos periódicos nacionais. Ali poderão testemunhar o quanto as mulheres aplaudem cesarianas, condenam partos humanizados, adoram episiotomias e exaltam os abusos de tecnologia. Com isso fica claro que os médicos, em verdade, se adaptam aos valores sociais vigentes em sua época, se dobram ao imperativo tecnológico e se rendem à demanda tecnocrática. Além do mais, afirmar o que “as mulheres querem” é arriscado; muitas vezes (acredito que na maioria) elas desejam até o oposto do que nós, humanistas, defendemos.

Acreditar que os homens são os culpados por todas as mazelas do mundo é tão ingênuo quanto dizer que o problema da violência obstétrica é culpa dos médicos. Além de fulanizar e criar um fosso sexista onde “os homens são maus e as mulheres vítimas doces e inocentes” esta perspectiva não enxerga a complexidade dos direitos reprodutivos e sexuais e cai na sedução de criar uma dualidade que separa “os bons e os maus”, sendo os maus (que surpresa!!) os médicos, os homens, os brancos etc. enquanto as mulheres são nobres, justas, doces e inocentes. A realidade material mostra que não é assim que o mundo funciona.

Eu, pessoalmente, cansei dessa perspectiva que se baseia no apontar de dedos. Não apenas porque ela é falsa, mas porque perdemos tempo em organizar a mobilização necessária para pressionar o sistema de saúde para as mudanças na atenção ao parto. Atacar os médicos, acreditando que eles são o problema central, é uma espécie de bolsonarismo, um recurso característico da extrema direita, pois aposta nas acusações de ordem moral (médicos egoístas, maldosos, cruéis, orgulhosos, malandros, canalhas, etc.) sem perceber que o problema é sistêmico e estrutural, onde médicos e pacientes são peças de um gigantesco quebra-cabeças e prisioneiros de um jogo no qual são manipulados por interesses alheios.

Eu não aguento mais esse tipo de debate. Não existe chance de mudança através do idealismo. a solução e o avanço para uma maternidade mais justa, humana, respeitosa e segura apenas surgirá pelo caminho do materialismo, pelos confrontos e pela conscientização das massas sobre os direitos reprodutivos e sexuais. Culpar os homens, tratando-os como inimigos é a rota mais segura para o fracasso, e foi isso que vimos até hoje.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Crenças e Materialismo

Richard Dawkins se notabilizou no ataque às religiões contemporâneas, em especial o neopentecostalismo capitalista predatório surgido nos Estados Unidos e exportado para o Brasil e o mundo. Entretanto, seu ataque às denominações religiosas acabou extrapolando, sendo usado para desacreditar o pensamento religioso e às próprias tradições, acreditando que as normativas dos livros “sagrados” induzem ao anticientificismo e mesmo às guerras, num suco de idealismo que agride frontalmente a ciência social e o materialismo dialético. Importante notar que nos mesmos textos que estimulam o ser humano ao conflito e à intolerância nas páginas do Corão ou da Bíblia existem passagens que estimulam a paz e a tolerância. Estes livros foram escritos de forma a ser possível colocar qualquer interesse humano em suas linhas e retirar de volta a concordância. Desta forma, é fácil entender que não são as religiões que induzem aos conflitos, mas a fome, os embates geopolíticos, a ganância ou o expansionismo, necessidades humanas que usam as religiões como “cola” para agrupar prosélitos em nome das distintas identidades.

Acreditar na capacidade de que ideias religiosas, por mais violentas que sejam (e todas são), possam fazer a humanidade se atirar às guerras é puro idealismo. Vou mais longe: nunca houve, na história da humanidade, uma única guerra iniciada ou determinada exclusivamente por crenças religiosas. Basta ver os milênios de pacífica convivência entre judeus e muçulmanos no oriente médio que só acabaram quando interesses nacionalistas sectários atingiram a região através da invasão sionista. As guerras, todas elas, são motivadas por fatores materiais (recursos, água, comida, controle da terra, mulheres, etc). Não há como um conjunto de ideias mobilizar agressões desse tipo. O que existe é o uso da religião (ou cor da pele, crenças, origem, entre outras) para justificar e agregar combatentes para uma guerra cujos interesses são materiais. Todavia, para quem olha com olhos desavisados, esta adesão nos ilude de que elas são a motivação primordial.

Tomemos as Cruzadas como exemplo que se caracterizaram por grandes massas de europeus cruzando a Europa ajudando a disseminar a peste negra para atacar Jerusalém, cometendo as mais inimagináveis atrocidades na terra de Cristo, com o intuito de libertá-la dos mouros – e tomando uma surra do curdo Salatino, entre outros. Porém, quando vamos analisar a história de forma pormenorizada, não foram em nome de Cristo que tantos cristãos se aventuraram ao oriente, mas para dar conta de interesses geopolíticos claros, onde a religião foi apenas usada para justificar uma guerra estúpida motivada por controle territorial. Para os comerciantes, as Cruzadas eram importantes para encurtar as distâncias entre o Oriente do Ocidente e, assim, aumentar as atividades de comércio de especiarias, principalmente para as cidades portuárias de Gênova e Veneza, no que hoje conhecemos como Itália. Após muitos séculos, o Mar Mediterrâneo passou a ser utilizado como importante veículo de intercâmbio de pessoas e de mercadorias. Ao longo das nove Cruzadas, os objetivos foram se tornando cada vez mais claros, deixando de usar a máscara religiosa e explicitando suas reais motivações comerciais. As conquistas cristãs no Oriente provocaram, além disso, disputas entre os cruzados pelos seus domínios.

Podemos analisar também algo bem mais recente, como a guerra entre protestantes e católicos na Irlanda, que foi assim chamada para esconder que se tratava de um conflito cujo objetivo era libertar a Irlanda (católica) do jugo dos ingleses (protestantes). Sempre foi uma guerra de independência tratada como uma luta religiosa para esconder o evidente colonialismo explorador britânico.

Religião não é um lugar de onde tiramos determinações divinas, mas onde colocamos interesses absolutamente humanos e materiais. Quem entende isso começa a olhar as religiões de forma distinta e mais elevada. As religiões são buscas humanas para o enfrentamento do desconhecido, algo tão natural quando olhar para o firmamento e elaborar teses sobre as estrelas. As crenças humanas – em especial a crença em Deus – são emoções e, portanto, não são passíveis de qualquer análise racional. “Acredito porque sinto; já eu, não creio porque não sinto”. Basicamente as religiões são a linguagem que usamos para expressar estas crenças ou, se quiserem, nossa fé. “A religião é o poço, a fé a água na profundidade”, como dizia Reza Aslan. Religiões são instrumentos para aplacarmos nossa sede. As ideias religiosas, por mais potentes que sejam, são incapazes para mobilizar guerras, mortes e conflitos; a materialidade de nossas necessidades e desejos humanos é quem está à frente dessas iniciativas.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Religião

Sol e Lua

No que se refere ao parto as mulheres são o sol, enquanto seus cuidadores são a lua. Aquelas produzem a energia e a luz feérica do nascimento, enquanto estes refletem com humildade e respeito o brilho que capturam do momento. Qualquer inversão destes papéis significa uma perversão significativa na essência desse evento, um eclipse que desfaz o brilho de um às custas da intromissão do outro.

Por certo que precisamos de propostas para a melhoria da atenção ao parto e a todos os fenômenos relacionados aos ciclos femininos, mas é necessário fugir do idealismo que, tal qual uma sereia sedutora, nos leva a crer em soluções parciais para problemas estruturais. É importante reconhecer que as ideias por si só são estéreis, incapazes de produzir as mudanças que pretendemos. Um exemplo clássico é das episiotomias – cortes vaginais usados para alargar a saída e (pretensamente) para proteger o períneo. Há decadas sabemos o quanto são inúteis e prejudiciais, um fato comprovado por dezenas de estudos, e mesmo assim ela continua sendo usada indiscriminadamente em nosso meio. No Brasil, a episiotomia ainda é a única cirurgia realizada no corpo de uma mulher saudável sem o seu consentimento prévio. Atualmente ela ocorre em cerca de 53,5% nas parturientes brasileiras que fazem parto normal, exatamente porque a mudança nestas atitudes sedimentadas pela cultura médica não se dá pelas ideias – por mais fundamentadas que sejam – mas pela confrontação e pela luta na arena dos poderes instituídos. Precisamos, portanto, de uma perspectiva materialista para o nascimento.

O mesmo ocorre com a ideia – bem estabelecida por estudos multicêntricos ocorridos há várias décadas – de que é essencial para a saúde coletiva interromper o abuso de cesarianas, assim como as centenas de outras intervenções indevidas que ocorrem no ambiente hospitalar do parto, reconhecidamente inúteis e perigosas para o binômio mãe-bebê. Portanto, a agenda – além de positiva – precisa ser propositiva, centrada nas lutas que garantam o protagonismo e que estabeleçam uma relação centrada na liberdade ampla e irrestrita de escolhas, respeitando amplamente os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e suas famílias. Mais importante ainda é entender que essa luta será conduzida pelas mulheres, legítimas condutoras do processo, contando com a valiosa ajuda dos profissionais de vanguarda da obstetrícia e da parteria profissional.

Fora dessa perspectiva resta apenas o que se pode chamar de “reformismo obstétrico”, uma plataforma de propostas que se baseia na perspectiva da solução para os dilemas obstétricos através da simples proliferação de obstetras humanistas – profissionais mutantes e bizarros, centrados na perspectiva de respeito às evidências – que não passam de meia dúzia de ilhotas minúsculas em um oceano gigantesco de profissionais adaptados à obstetrícia contemporânea, que apenas replicam o modelo anacrônico, personalista, intervencionista, misógino e centrado nos valores do capitalismo que caracteriza a assistência ao parto nos grandes centros do ocidente. Imaginar que a reforma estrutural da obstetrícia se dará sobre as mesmas diretrizes intervencionistas de hoje – mantendo os mesmos atores no comando – é uma ilusão que não podemos nos permitir. Como bem dizia Giordano Bruno, “Quanta ingenuidade pedir a quem detém o poder que o mude”.

A ruptura com o reformismo obstétrico – que pretende mudar a fachada para não transformar a estrutura – será a grande tarefa da nova geração de ativistas e cuidadores do nascimento humano.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Causa Operária, Parto, violência obstétrica

Desilusões

Quem, afinal, não está “desencantado” com o horror da vida real?

Creio que o problema que muitos de nós temos com os Movimentos de Humanização ocorre pela ilusão que se cria sobre esse movimento. Profissionais são atacados de forma absolutamente cruel, e fica evidente o quanto as teses que sustentam esse movimento incomodam os representantes da corporação médica. Marsden Wagner, pediatra e epidemiologista americano que dividia seu trabalho entre os Estados Unidos e a Dinamarca, por muito tempo colecionou histórias de médicos perseguidos pelo sistema e pela corporação (tal como ele foi) para organizar um livro que se chamaria “The Vigilante Doctor”. Infelizmente sua morte em 2014 o impediu de lançar este livro onde pretendia mostrar que existe um padrão nestas perseguições, o qual precisa ser entendido para que os médicos dissidentes possam se proteger.

Basicamente, estes ataques não ocorrem porque um profissional cometeu erros, por ter insucessos clínicos ou mesmo na ocorrência de uma negligência grave; muito menos porque suas ações não possuem embasamento em evidências. Fosse assim e os médicos brasileiros com taxas absurdas e indecentes de cesarianas seriam atacados pelos seus Conselhos Profissionais, mas o que ocorre na realidade é que são até protegidos. Quando analisamos os casos que acontecem no mundo inteiro fica claro que o afastamento das evidências científicas não é determinante para a sanha punitiva da corporação e, na visão de Marsden Wagner, o que conta mesmo para a perseguição é o quanto as ideias e a prática destes profissionais desafiam os valores e os poderes da corporação, em especial a ameaça à dominação de determinados setores da atenção médica.

No parto não poderia ser diferente, pois a ação da obstetrícia ocorre em um ponto de choque evidente, um terreno extremamente acidentado. Uma história de milênios de cuidados oferecidos por parteiras e que subitamente foi trocado pela suprema intervenção no século XX, o que demandou a submissão completa das mulheres à ação dos profissionais médicos. Por esta razão, o parto de cócoras, parto vaginal, partos em Casa de Parto, partos domiciliares, a luta pelo protagonismo da mulher, a crítica à episiotomia e à litotomia, etc, são atacados com enorme ferocidade pelo potencial de atingir as bases de dominação da medicina sobre o evento do parto. Nestes casos, as evidências científicas são pouco ou quase nada úteis, pois a inequívoca subjetividade nas avaliações torna fácil esconder erros em cesarianas ao mesmo tempo em que é simples criá-los do nada em partos vaginais ou fora do contexto hospitalar.

Outro conselho importante de Marsden Wagner: para ele é sempre fundamental tomar cuidado com os “médicos “liberais”, aqueles que aceitam os postulados da Medicina Baseada em Evidências e que reconhecem os abusos intervencionistas da obstetrícia contemporânea, pois que estes são os mais perigosos personagens. Aqui se encontra outro ponto em que a prática médica e a política tem muito em comum. Os políticos liberais, com sua postura revisionista e conciliatória, são muitas vezes os que mais atrapalham as verdadeiras mudanças estruturais. Existe mais perigo nas atitudes defendidas por alguns professores – que se escondem atrás de uma posição de respeito às evidências médicas – do que um cesarista convicto. Nesse aspecto, os primeiros são mais perigosos (porque escamoteados) do que os últimos (porque evidentes).

Essa falta de sintonia entre a ciência e a prática ocorre porque esses sujeitos – por viverem em ambiente acadêmico – não conseguem mais esconder as evidências científicas sobre a adequada atenção ao parto e nascimento, mas estão fortemente presos aos velhos paradigmas por laços corporativos, construídos por décadas de camaradagem, companheirismo, dívidas afetivas e compromissos acadêmicos. Não se trata de uma questão racional/científica, mas psíquica/afetiva. Nos julgamentos de profissionais que desafiam o sistema centrado nos médicos, nas doenças e no capitalismo aparece todo o juízo pervertido que trata estes médicos como “adversários” sendo julgados pelo que são (uma ameaça ao sistema) e não por algo que tenham feito. Prevalece a justiça dos inimigos, onde acusação e juízes atuam em parceria para atacar um inimigo em comum. Enxergam os médicos da humanização como adversários a serem esmagados, porque subvertem a lógica de submissão que sempre tiveram em relação aos pacientes e às outras profissões da saúde.

Talvez o pior entrave para os nossos objetivos seja a fantasia – por muitos compartilhada – de que a humanização do parto seria estabelecida no terreno das ideias, através da confrontação de paradigmas, estudos e pesquisas, prevalecendo aquelas propostas que dessem garantias de resultados mais consistentes para a tarefa de oferecer às mulheres mais segurança e satisfação no parto dos seus filhos. Já compartilhei dessa ilusão e sei bem o sabor amargo de perder os sonhos; minha queda foi igualmente dolorida. Por outro lado, sei também a sensação de liberdade que nos toma ao perceber que os sonhos não precisam ser abandonados apenas porque o caminho para segui-los estava equivocado.

A humanização do nascimento se dará no terreno das lutas materiais, e não sob a letra insípida das ideias. A humanização vai ocorrer nas maternidades, nos postos de saúde, nos corredores de hospital, e não nos livros ou na Academia. As ideias serão sempre a carruagem a ser puxada pelo corcel das lutas reais sobre a autonomia dos corpos. As propostas de humanização do nascimento já foram pensadas como uma pedagogia, uma forma de educar mentes que não percebiam a história completa de um parto. Todavia, hoje sabemos que a simples confrontação com estas realidades produz resultados pífios ou ausentes. Com o tempo percebemos que a batalha pelo nascimento digno se dá na confrontação direta, na briga, na pressão, retirando de cena os velhos atores para garantir às mulheres a posse do seu destino.

Para sofrer a dor de uma grande desilusão foi necessário, como primeira e quase inevitável etapa, iludir-se com o poder das ideias. Só depois da queda desta fantasia será possível compreender a materialidade da luta, a conquista pelo enfrentamento, escorado-se no fato de que nenhum poder é oferecido de graça, menos ainda o poder sobre a sexualidade das mulheres.

Que seja bem vinda a desilusão. Que sirva de trampolim para as novas etapas.

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Causa Operária, Parto