Arquivo do mês: fevereiro 2020

Emoções Compartilhadas

Amamentação e Cama Compartilhada

Todos haverão de concordar que um tempo de cama compartilhada auxilia tanto a mãe na tarefa de amamentar quanto tranquiliza o bebê – para quem sua mãe e “o mundo” são a mesma coisa. Concordamos também que, em nome da autonomia da criança, esta proximidade de corpos deve ser abandonada em algum ponto da infância. O problema é estabelecer este ponto de corte, esta castração simbólica do poder da criança sobre o corpo da mãe, pois que a nossa própria maturação enquanto sujeitos dependerá desse afastamento.

Eu já fui bem radical sobre esse tema logo após me graduar. Achava justo que esse corte fosse o mais precoce para auxiliar na autonomia e independência das crianças. Também acreditava que a amamentação devia ser interrompida num ponto determinado, por volta dos dois anos, pelas mesmas razões. Pensava, com honestidade, que era função social do médico educar as mulheres a fazer esta separação da forma mais rápida, olhando para o desmame e a colocação no berço como a retirada de um band-aid emocional, uma muleta que devia ser abandonada.

O tempo foi me deixando mais maleável, sem dúvida. Hoje prefiro acreditar que, com raríssimas exceções, mães e bebê acabam encontrando um consenso sobre amamentação e cama compartilhada. Chega um determinado momento em que os dois se “olham estranho”, lançam um sorriso que preenche o espaço entre ambos e percebem que aquela relação, com tamanha proximidade, não cabe mais para eles. Assim se dá um desenlace amigável e ambos passam para uma nova fase da sua relação.

Percebi também que muito do que eu dizia sobre o tema era uma composição complexa entre racionalizações e conteúdos psíquicos inconfessos e inconscientes. Para mim é inegável que a cama compartilhada e a amamentação são movimentos eróticos entre os personagens da “cena primária”, nos quais os homens são fatalmente excluídos. Muito das teorias sobre o tema são produzidas sob essa pressão patriarcal. Para os homens, as emoções ativadas diante dessa cena são angustiantes e conflituosas, mesmo quando existe a alegria esfuziante e genuíno afeto envolvido nesse encontro. No meu caso, era óbvio o quanto a manutenção dessa ligação parecia embaraçosa, mas levou muito tempo para perceber o quanto havia de preconceito e bloqueios pessoais envolvidos.

A medicina, como representante e mantenedora dos valores patriarcais, sempre terá uma postura conservadora, tanto na expropriação do parto – desde sua entrada na atenção – quanto no afastamento das mães de suas crias, exatamente porque este afeto denuncia e desafia os poderes patriarcais estabelecidos.

Manter essa união “mãebebê” sob máxima proteção e cuidado deveria ser a tarefa mais sagrada de todos os cuidadores, pois que os efeitos desse contato harmonioso perduram por toda a existência, fortalecendo a saúde física e mental dos sujeitos. Infelizmente, nossos próprios medos e fragilidades impedem que este encontro seja o mais suave e tranquilo possível.

Nossa missão enquanto profissionais do parto e da puericultura deve ser a proteção da fisiologia e do contato, fugindo sempre que possível da artificialidade e do afastamento. Para isso é preciso que cada cuidador se permita encantar com a magia de uma mãe amamentando seu filho e repousando ao seu lado com total segurança e liberdade.

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Bate boca

A ação do Zé de Abreu foi mesmo exagerada, mas foi reativa. Ele escreveu como quem “bate boca” na rua, baixando o nível, atacando a pessoa mais do que as ideias. Porém, em sua defesa, creio que não há como esperar a mesma civilidade do torturado e do torturador. São pontos diferentes no espectro do debate. O governo atual nos ataca – as minorias em especial – todos os dias, com desrespeito e violência; alguma reação destemperada tinha que surgir, mais cedo ou mais tarde.

Eu também cobro coerência da esquerda, dos negros, das mulheres e dos pobres, mas são eles que estão sendo espancados e mortos pela necropolítica dos fascistas. É natural que as respostas mais indignadas surjam de quem mais sofre, e a classe artística nunca foi tão humilhada quanto agora.

Não basta ter vagina mesmo para exigir ser respeitada. Joice, Bia, Zambelli, Winter e tantas outras bolsonaristas que o digam. Qual a novidade? O mesmo se pode dizer sobre um deputado negro que ataca a comunidade negra. Ele é Capitão do Mato mesmo, pois essa figura representa o negro que combatia ao lado dos opressores escravagistas para manter seus irmãos de cor em cativeiro. A imagem é dura, mas correta. Não basta também ser “homem de cor” para ser digno; é preciso ser consciente e encarar a realidade do genocídio negro no país como uma emergência. É necessário abandonar a farda neoliberal que coisifica seres humanos e os submete aos interesses econômicos da elite financeira branca e lutar pelos seus iguais. Estamos em um momento de crise humanitária. Ficar calado é submeter-se.

Pior do que achar que agora “todos são fascistas” é não enxergar o fascista quando ele dissemina, fomenta, estimula e aplaude o arbítrio e a tortura; o preconceito e o fanatismo. Faltaram exagerados como Ciro e Zé de Abreu na ascenção de Hitler na Alemanha. Houvesse mais como eles e não teríamos sentido na carne o horror que o nazismo produziu por lá.

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Big Brother

Não sei se há respaldo legal para a aplicação de vigilâncias panópticas em centros obstétricos, onde as grávidas em trabalho de parto desfilariam desnudas diante de câmeras, exibindo-se involuntariamente a um observador à distância. Alguns dizem que este controle já é usado em alguns hospitais.

Entretanto, se isso for fato e houver garantias legais para tal, qual o problema? Qual seria a novidade em invadir desta forma o mundo privativo do nascimento na perspectiva da biomedicina patriarcal?

Posso garantir que, se essa pergunta for feita para 10 médicos obstetras, 9 deles vão olhar o interlocutor com cara de assombro, como a não entender do que se está falando. Para quem não consegue entender que “episiotomia é violência obstétrica“, como exigir que entenda a nudez das pacientes na perspectiva delas mesmas, e não de quem as atende?

Via de regra, a resposta a este questionamento será: “Como assim? De onde tirou essa ideia?“, para logo depois arrematarem: “Vocês enxergam maldade em tudo“…

O corpo das mulheres, ao olhar da medicina, é dessexualizado; um corpo real, tornado des-animado para assim oferecer proteção à atuação dos profissionais. Monitorar grávidas desnudas não parece, aos olhos da medicina, configurar uma invasão da intimidade ou da privacidade.

Entrar em um hospital para parir significa perder sua condição de cidadã e sua autonomia, e abrir mão dessas “frescuras” de intimidade, pudores e privacidade. Estas necessidades, tão humanas e banais, ficam no guichê do hospital, junto com os documentos e a carteirinha da Sulamérica. Assim, não causaria nenhum tipo de surpresa se o “big brother” obstétrico achasse normal, natural e benéfico vigiar corpos-máquinas desnudos fazendo seu trabalho de procriação.

Qual o sentido dos corpos já deserotizados pelo sistema de atenção ao parto reclamarem e questionarem a perda de sua privacidade?

Big Brother is always watching you...

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Cavalo de Troia

Diante do efeito dominó nas casas legislativas do país em acatar a ideia das “cesarianas a pedido”, creio que as instituições de proteção à mulher – em especial aquelas que defendem a humanização do nascimento – precisam olhar para o fenômeno com muito cuidado, toda a delicadeza e a devida responsabilidade que ele demanda.

Apesar da frustração inicial e pela perspectiva de vermos aprofundar o intervencionismo obstétrico em nosso país, creio que nossa ação – da ReHuNa e outras instituições afins – deve ser antropofágica. Quero dizer: comer a realidade que nos foi imposta, digerir a nova condição, ruminar suas circunstâncias e contextos e finalmente incorporar essa nova fase, onde a (ilusória) autonomia das mulheres, determinada pela pressão dos profissionais e instituições, será tomada como guia.

Sabemos do “Cavalo de Troia” que está por trás dessa falsa liberdade de escolha. Simone Diniz explicava há muitos anos sobre a estratégia de “oferecer partos violentos para vender cesarianas“. Pior ainda, agora vemos a própria legislação travestir a opção pela cesariana – que nada mais é que uma “escolha pela dignidade” em contextos de violência obstétrica – como um avanço nos direitos humanos e uma vitória para as reivindicações históricas das mulheres.

Temos plena consciência de que estamos diante de um embuste e um retrocesso, mas é difícil fazer esta informação chegar na ponta da atenção para o conhecimento das gestantes e suas famílias.

Todavia, não há como retroceder. Qualquer movimento para obstaculizar esta medida será levada ao público como retrocesso e como insistência na tutela sobre os corpos femininos. Para a imensa maioria das gestantes, embebidas na cultura do “imperativo tecnológico”, a cesariana representa o futuro, a ciência, o progresso e o fim de suas “dores excruciantes”. Bem sabemos o quanto isso está longe da verdade, mas também temos noção do quanto educar mulheres sobre os benefícios do parto fisiológico é tarefa que dura gerações.

O que é necessário agora é absorver o golpe, aceitar o aumento de cesarianas como um resultado inevitável, cuidar dos feridos e dos mutilados (entre pacientes, médicos e parteiras) e continuar nossa campanha incessante e firme por uma pedagogia verdadeiramente libertária para as mulheres, desde a mais tenra idade.

Para as mulheres que se deixaram seduzir pelo canto mavioso da sereia tecnocrática só podemos dizer:

“Se você deseja uma cesariana para fugir da dor, ou porque está consumida por medos, esta é uma escolha sua. Todavia, se deseja saber o quanto custará esta decisão, e os riscos envolvidos nela, pode nos procurar, pois estaremos sempre aqui para ajudar”.

Leia mais sobre este tema aqui

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Opressões

Grupos historicamente oprimidos, que usam ofensas aos adversários como retórica de combate, nos mostram que não basta mudar o opressor para transformar o sistema opressivo. Sem que os oprimidos compreendam as raízes da opressão eles naturalmente ocupam o lugar de seus antigos algozes.

Jeremy O. “The Roots of Evil”, ed. Barbacoa, pág 135

Jeremy O. é um escritor americano nascido em Boston em 1972, filho de um pastor presbiteriano e uma dona de casa. Desde muito cedo militou nos grupos LGBT tendo sido preso diversas vezes por desordem e resistência à prisão. Durante muitos anos de militância escondeu sua orientação sexual, mas causou certo furor quando em 2002 casou-se com a cantora Gospel Mary Divine, em uma cerimônia restrita e reservada no condado de Nantucket, Massachussets. Chamado de “traidor” por alguns correligionários e de “falsário” por outros, foi a partir dessa ação que conclamou a parcela heterossexual da sociedade a se unir nos esforços pelo fim de qualquer opressão direcionada à comunidade gay. Mora em Nova York e tem dois filhos, Hope e Faith.

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A angústia necessária

Para que um obstetra procure transformar sua prática é essencial que sua forma de conceber a assistência ao nascimento entre em crise. O choque doloroso entre conceitos precisa ser a tônica do processo. Esta transformação a partir do legado da Escola Médica (tecnocrática e intervencionista) em busca de maneiras mais democráticas de atuação jamais ocorre sem angústia …. e dor. Despir-se dos valores duramente adquiridos no período de formação só pode ocorrer através de sacrifício.

Sacro ofício, trabalho sagrado.

Todavia, é preciso que a humanização, a abordagem suave e a garantia da autonomia à mulher ocorram a partir da dor, pois ela é a energia motriz mais efetiva. A partir disso, a promessa de alívio desse sofrimento assegura a coragem necessária para efetuar as mudanças. A transformação sempre ocorrerá nos estratos emocionais e afetivos do sujeito. O arcabouço teórico só chega bem depois, para dar suporte à reconstrução do nosso proceder, agora sob outras bases.

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“Para que a psicanálise seja eficaz, é necessário que quem se analisa reúna as seguintes características: que sofra, que não suporte mais sofrer, que se interrogue sobre as causas de seu sofrimento e que tenha a esperança de que o profissional que vai tratá-lo será capaz de livrá-lo de seu tormento.”

J. D. Nasio, psicanalista (Apud Maury Gutierrez)

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Punch Theory

Macaca-caranguejeira, como as utilizadas no estudo de Juan Carlos Izpisúa, ao lado do filhote

O alongamento do período fértil das mulheres através da intervenção tecnológica (leia sobre as recentes descobertas aqui) é um exemplo clássico do “modelo de punch” (Punch Theory) do antropólogo americano Peter Reynolds eternizado por Robbie em “Birth as an American Rite of Passage”.

O modelo capitalista determina o retardo da gravidez no mundo contemporâneo, fazendo com que a primeira (em geral a única) gestação ocorra perto do fechamento da janela fisiológica de fertilidade, no início da 5a década. Assim, ao invés de questionarmos os mecanismos sociais que retardam a maternidade – em suma o capitalismo em sua expressão social – criamos novos recursos tecnológicos para “consertar” o desequilíbrio criado por um estilo de vida que agride nossa programação paleolítica.

Evidentemente a criação de soluções para gestações após a época naturalmente determinada pelo processo adaptativo produzirá suas próprias consequências – o desaparecimento do suporte das avós jovens sendo apenas a mais óbvia – mas estas serão igualmente abordadas por outras intervenções tecnológicas, e assim sucessivamente.

O progresso científico é sempre enganoso. O que nos oferece é sempre fulgurante, mas o que nos retira fica ofuscado, as vezes por um tempo tal que impede qualquer retorno. Como… smartphones.

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