Arquivo do mês: dezembro 2024

Contexto

A verdade de uma fala estará sempre na dependência do contexto onde foi dita. Sem isso não há como avaliar seu sentido, pois muitas vezes ela pode querer dizer exatamente o oposto do que está enunciado. Não quero com isso invalidar frases racistas, misóginas e homofóbicas, mas afirmo que é essencial que cada fala seja analisada em seu contexto para, só depois disso, fazermos um juízo. Como diria meu amigo Max, sem o contexto em nossas falas não somos mais que máquinas que falam, criaturas cujas palavras carecem de alma e simbolismo. Sem a linguagem nossas palavras viram meros símbolos operacionais, que apenas nos permitem comunicar como abelhas sinalizando o lugar das flores. Quer um exemplo?

– Quer tomar um sorvete?
– Capaz.

Digam: ela aceitou ou não? Quem é do Rio Grande do Sul sabe que não há como saber. Nosso falar sempre vai depender do contexto, o que inclui a entoação, o olhar e o jeito de dizer. Para formar um juízo sobre uma afirmação qualquer é fundamental saber onde ela está inserida. Vou dar como exemplo uma antiga fala do meu pai, sobre a qual escrevi um texto há mais de dez anos, na qual ele discorria sobre um técnico de futebol. Dizia ele:

– Ele é um excelente técnico, mas pesa contra ele o fato de ser negro.

Então? Essa fala é racista? Seria se o contexto fosse “negros não sabem comandar jogadores e não entendem de tática”. Todavia, o que meu pai estava dizendo era o oposto disso: sua intenção era afirmar que as críticas seriam sempre mais pesadas devido à sua cor. “O fato de ser negro vai fazer com que sofra preconceitos, e seu brilhantismo será eclipsado pela visão racista e retrógrada de parte da sociedade” Como eu sei a verdadeira interpretação? Pelo contexto, por estar presente e por conhecer a fundo o interlocutor. Portanto, uma frase que poderia ser interpretada como racista se fosse recortada e retirada de sua fala era, em verdade, uma crítica à falta de oportunidades para técnicos negros e uma queixa às injustiças com o trabalho das pessoas negras que ocupam estes cargos.

Espero ter sido claro…. (opss!)

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Benedito

Um dos personagens que mais admiro no campo do conhecimento humano é o judeu holandês Baruch Espinoza. Não por acaso, eu o acho parecido com meu pai; alguns aspectos de suas vidas são semelhantes, em especial a coragem de enfrentar as opiniões majoritárias e manter-se firme em suas convicções, como fez o jovem Baruch. Foi esta postura que o levou a ser excomungado aos 23 anos pelas autoridades judaicas de sua cidade. Sua excomunhão vexatória e humilhante foi realizada através dos rituais judaicos, com todos os requintes de maldade que recaem sobre estas cerimônias:

“E que Adonai apague o seu nome sob os céus, e que Adonai o afaste, para sua desgraça, de todas as tribos de Israel, com todas as maldições do firmamento escritas no Livro desta Lei. E vós, os dedicados a Adonai, que Deus vos conserve todos vivos. Advertindo que ninguém lhe pode falar, pela boca nem por escrito, nem lhe conceder nenhum favor, nem debaixo do mesmo teto estar com ele, nem a uma distância de menos de quatro côvados, nem ler papel algum feito ou escrito por ele.” Este texto foi originalmente escrito em português, pois que a família de Baruch era de portugueses fugidos da inquisição ibérica que recebeu asilo nos Países Baixos.

O crime de Baruch Espinoza (que assinou seus trabalhos com o nome latino Benedito) foram seus escritos, os postulados a respeito de Deus contidos em seu livro “Ética”. Nesta publicação o jovem Espinoza defende que Deus é o mecanismo imanente da natureza, e que com ela se confunde. Além disso, agrega que a Bíblia é uma obra metafórico-alegórica, que não exige uma leitura baseada na razão e que, por ser uma criação simbólica, não pode ser a justa expressão da verdade sobre Deus. Seu axioma mais famoso foi “Deus, sive Natura” (Deus, ou a Natureza) que traduzia sua visão teológica monista. Para o jovem Baruch, Deus era a causa de todo o universo perceptível, sendo a Natureza tão somente as formas e atributos de Deus. Para ele, a “substância” é a única realidade que existe e é a causa de si mesma. Sustentou sua perspectiva teológica mesmo com as ameaças de excomunhão (na verdade, o Chérem, equivalente judaico da excomunhão católica) que acabaram se efetivando em 27 de julho de 1656. Despido, humilhado e sem família, refugiou-se no sótão de uma bondosa senhora que o abrigou até sua morte em 1677, provavelmente por silicose ou tuberculose, com apenas 44 anos. Neste seu período de ostracismo e isolamento trabalhou como polidor de lentes, recusando todas as ofertas de trabalho acadêmico. Hegel dizia ser ele o divisor de águas da filosofia: “Ou você é espinozista, ou não é filósofo”, enquanto Deleuze afirmava que Espinoza era o “príncipe da filosofia”. Einstein adotou o monismo de Espinoza quando perguntado se acreditava em Deus.

Baruch Espinoza morreu aos 44 anos, vítima de suas verdades. Foi sacrificado no altar das conveniências, atacado por desagradar às autoridades, chamado de “ateu”, humilhado publicamente, rechaçado e desprezado em seu tempo. Manteve altiva sua postura, guardando fidelidade às suas ideias e oferecendo aos seus detratores e inimigos o perdão. Soube honrar seu curto tempo de vida oferecendo ao mundo suas ideias, deixando a paixão pela filosofia como um legado a influenciar muitos que o seguiram. Isto é, provavelmente, o que Hahnemann queria dizer quando falou que o maior propósito de restaurar a saúde seria a possibilidade de “atingir os altos fins de uma existência“. O mundo está repleto de Beneditos de muitas nacionalidades, muitos deles jamais conheceremos. Todavia, mesmo aparentemente solitários e insignificantes, seu exemplo de vida poderá ser a semente a germinar em um bravo coração.

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Desespero

É possível entender as razões pelas quais as pessoas estão idolatrando Luigi Mangione, o garoto americano que eliminou o chefão da empresa de saúde privada UnitedHealthcare , Brian Thompson. Também é claro que essa idolatria é aumentada pelo fato de do rapaz ser atlético, bonito, inteligente e (supostamente) de esquerda. Ele assume a posição de um “anti-herói cultural” do nosso tempo, um “vingador” que tomou para si as dores de milhões de americanos que se sentem traídos por estas empresas sanguessugas. É possível entender também que tudo isso é decorrência da raiva acumulada da sociedade americana pelos personagens à frente de tais empresas; as piadas, os memes e os gracejos que se seguiram a este ato tresloucado fazem parte desse contexto, mesmo que seja inadequado fazer festa pela morte de uma pessoa, seja ela quem for. Um sujeito que lidera um conglomerado de empresas assistência médica nos Estados Unidos que, para gerar lucro aos seus acionistas, diminui o quanto pode suas despesas negando sistematicamente atendimentos e coberturas para pessoas doentes, só poderia ter uma imagem péssima diante da população. Esse é o mesmo tratamento historicamente dado aos sujeitos que vêm cortar sua luz por falta de pagamento ou a para os condutores da “carrocinha” que pegava cachorros de rua. São posições ingratas, malvistas e estigmatizadas, sobre as quais recai o preconceito e a hostilidade do povo.

Por outro lado, esse fato demonstra de forma dramático um fato sobre o qual me debruço há 30 anos. Quando eu visitava os Estados Unidos para participar dos encontros do CIMS – Coalition for Improving Maternity Services – (Coalizão para Melhoria dos Serviços de Maternidade) muitas vezes descrevi para uma plateia de ativistas do parto o nosso sistema universal de assistência à saúde – o SUS. Era impressionante perceber o brilho no olho das ativistas dos Estados Unidos quando eu explicava coisas simples, como a atenção gratuita nas emergências, cirurgias cardíacas complexas, transplantes, medicamentos e – em especial – a atenção ao parto, oferecidos de forma “gratuita” para a nossa população, e até para os visitantes. Coloquei aspas no “gratuito” porque bem sabemos que o sistema no Brasil é pré-pago: tudo que você recebe como atendimento à saúde foi previamente pago através do desconto no seu salário, para garantir dignidade na atenção à doença e aos ciclos da vida.

Uma pesquisa realizada pelo Marist Institute for Public Opinion a pedido da emissora NPR, rádio pública norte-americana, indica que a grande maioria, 83% dos cidadãos daquele país, considera a atenção à saúde um direito essencial básico, e que deveria ser de acesso universal a toda população. O estudo também perguntou se esse direito deveria ser garantido pelo Estado e uma expressiva maioria de dois terços dos entrevistados responderam afirmativamente. Ou seja: a imensa maioria do povo americano deseja uma saúde universal, com amplo acesso para toda a população, mas isso não ocorre porque os governos americanos – de qualquer partido – são controlados pelas empresas de seguro médico que lucram com a exploração da doença. O lobby feito por estas corporações é violento e se expressa através dos financiamentos de campanha, a exemplo do que ocorre com o controle dos sionistas sobre o parlamento.  Não por outra razão, médicos ganham milhões em subsídios da do AIPAC, da indústria farmacêutica e das empresas de assistência médica privada.

Assim, não se trata de uma questão “moral”, onde um bando de gananciosos especuladores capitalistas lucram com a desgraça alheia; isso seria por demais ingênuo. A questão muito mais profunda do que eleger culpados e sair eliminando-os com ações heroicas. O problema central é a incapacidade da democracia liberal em transformar as legítimas aspirações populares em ações de governo. Isso ocorre porque, apesar da aparência de liberdade, o modelo capitalista deixa os governos atrelados aos poderosos interesses do mercado, dos conglomerados financeiros, dos rentistas e da burguesia. A estes não interessa que o cidadão americano tenha saúde como direito universal, ou que a saúde da população seja uma obrigação do Estado. Para eles a saúde é mais um produto nas prateleiras; compre quem tiver dinheiro.

Por outro lado, apesar de entender a atitude do jovem que fez justiça com as próprias mãos, não é possível aceitar que a solução dos problemas da assistência médica de um país ocorra mediante justiçamentos ou linchamentos. Nada justifica um assassinato e os mandatários destas empresas são apenas a cara bem barbeada de gigantescos impérios econômicos. A atitude do garoto significaria o mesmo que atirar no gerente do supermercado porque os preços aumentaram. A solução de problemas sistêmicos só pode ocorrer por meio de ações sistêmicas, que revolucionem o modo de produção, que acabem com a propriedade privada dos bens de consumo, derrubem o modelo econômico e garantam não apenas saúde, mas moradia, alimentação, segurança e transporte para todos. Somente essas mudanças poderão retirar o cidadão comum da condição de refém de um sistema ineficiente e incapaz de gerar bem-estar para a grande maioria da população.

Se alguma lição podemos tirar da morte brutal de um empresário do ramo da saúde é que a insatisfação da população com um modelo que lucra com a doença está chegando no seu limite. Por isso é preciso que algo seja feito para mudar esta realidade, antes que atitudes desesperadas como essa se repitam. Não haverá seguranças suficientes para proteger pessoas tão odiadas, representantes da falência do capitalismo em oferecer dignidade aos doentes. Entretanto, sair por aí matando empresários como pura expressão de ódio, indignação e desespero jamais será o melhor caminho.

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Império em queda

Hoje assisti um vídeo exaltando os Estados Unidos mediante uma estratégia conhecida: o preço mais baixo de produtos como carros, televisores, aparelhos eletrônicos, etc. comparando o poder de compra do trabalhador de lá com os salários pagos aqui no Brasil. O articulista analisava esses valores como se não houvesse um sistema internacional que privilegia a transferência de riqueza para o centro do Império, tornando os produtos lá mais baratos e o salário dos técnicos mais altos. Reduzia a sua análise ao conhecido “o liberalismo produz bem-estar”. Esquecia que a dolarização é o imposto que o mundo inteiro paga para que o cidadão comum americano tenha um poder de compra maior.

É impressionante a incapacidade da nossa classe média de desenvolver consciência de classe. Continuam achando que estão próximos da burguesia e longe dos assalariados e proletários, quando a realidade é o oposto. Enquanto isso, acreditam que os problemas brasileiros, e de resto de todo o sul global, são os impostos excessivos ou os “maus políticos”, como se nos Estados Unidos não estivessem reunidos os políticos mais corruptos do mundo – basta ver o perdão ao filho do presidente Biden, corrupto condenado e que recebeu um indulto imoral e injusto, mostrando que as pessoas não são julgadas de forma equilibrada. As pessoas aqui ao sul do equador não conseguem ver que o valor pago para um trabalhador da construção civil ou para um atendente do Mac Donald’s tem a ver com o dinheiro que circula no país e a transferência de renda para a centralidade do capitalismo, e não com o sistema político ou o valor baixo dos impostos embutidos nos produtos, como carros, televisores, computadores e lanchas. Isso não é sinal de equilíbrio, mas de opulência.

Em Nova York, a média salarial de um engenheiro civil é de 97 mil dólares por ano, enquanto na China comunista é de 108 mil anuais; lembrem que no comunismo chinês os cidadãos também pagam impostos, e não esqueçam que a China se tornou uma nação rica e poderosa apenas nos últimos 30 anos. Além disso, as pessoas que apontam a inexistência de um sistema de saúde universal como o SUS nos Estados Unidos estão corretas. Neste ano de 2024, 500 mil famílias pediram insolvência jurídica pela incapacidade de pagar as contas médicas. Meio milhão de famílias faliram devido ao valor absurdo de suas contas de hospital!! Pessoas morrem por falta de remédios e muitas preferem se arrastar acidentadas até um táxi do que chamar uma ambulância quando ocorre um acidente, pois a viagem com uma ambulância particular pode custar a totalidade do seu salário. Não é por acaso que Brian Thompson, CEO de uma das maiores empresas de saúde do mundo, foi assassinado por um jovem que teve benefícios negados por sua empresa. A companhia UnitedHealthcare, a unidade de seguros do provedor de serviços de saúde UnitedHealth Group, é a maior seguradora dos EUA, mas o cidadão médio americano odeia as empresas que lucram com a saúde, e por isso o suspeito do crime está sendo tratado como herói pelas redes sociais.

De acordo com registros do ano passado, mais de 650 mil pessoas não tinham moradia nos Estados Unidos, morando em barracas, em especial nas ruas das grandes cidades americanas, como Los Angeles. Com o estresse constante pelas guerras infinitas e pela estrutura competitiva da sociedade, a epidemia de opiáceos mata mais de 80 mil pessoas por ano. Enquanto um engenheiro civil nos Estados Unidos pode ganhar 9 mil dólares mensais, milhares de trabalhadores regulares não conseguem ganhar o suficiente para pagar um aluguel e moram em seus carros. No país mais rico do mundo, 400 mil pessoas vivem em seus veículos, muitos deles com contrato de trabalho regular. Essa exaltação do “American way of life” é anacrônica, datada, velha e equivocada. A disparidade de riqueza atingiu seus limites mais altos da história. Com o fim da dolarização que se acelera e deverá ocorrer nos próximos anos, a crise será incontornável e o cenário mais óbvio será a guerra civil – que só não ocorreu ainda porque Trump venceu as eleições.

É triste ver tanta gente tola achando que a solução é cortar impostos e ter menos políticos. Sabem onde não há impostos? Coreia Popular. Sabem onde político trabalha totalmente de graça, sem receber nenhum salário? Em Cuba. Enquanto perdemos tempo debatendo preço de carro, como se isso fosse um indicador de felicidade, esquecemos que 20 mil pessoas morreram assassinadas nos Estados Unidos em 2023. No “Brasil capitalista” houve 45 mil homicídios em 2021, enquanto na China, menos de 7 mil, para uma população de 1 bilhão de habitantes. No Japão menos de 300 pessoas pereceram dessa forma. Que sociedade de opulência, felicidade e valorização de trabalhadores é essa em que tanta gente mata?

E a drogadição? O que dizer da dependência de remédios – em especial os estupefacientes – da sociedade americana? O que dizer de uma sociedade cujos programas na TV tem propaganda de drogas e advogados o dia inteiro? Metanfetamina, crack, cocaína, Fentanil, etc. são problemas de saúde pública gravíssimos. Os Estados Unidos são uma sociedade que tem 4 milhões de usuários de cocaína, e as mortes pelo uso de drogas batem recordes todos os anos. É essa sociedade que desejam mostrar como exemplo? Só porque os carros – que matam 40 mil todos os anos nas estradas americanas – são mais baratos? Isso significa uma sociedade mais equilibrada, mais progressista e onde existe a valorização do trabalho?

O capitalismo e o imperialismo são sistemas moribundos, cadáveres insepultos, mas ainda é possível ver aplausos para um modelo que não consegue resolver suas contradições, como a concentração acelerada de riquezas e a criação de uma legião de miseráveis distribuídos pelo mundo. Há, sem dúvida, valores e virtudes naquele país – como a defesa da liberdade de expressão – mas é um modelo de sociedade que não conseguiu resolver os problemas centrais da economia capitalista, conforme previu Marx ainda no século XIX, e precisa ser substituído por um sistema mais justo e que ofereça qualidade de vida para a maioria da população, e não para uma minoria de capitalistas cada vez mais concentrada.

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Rivalidades

Eu gosto de rivalidades no futebol; em verdade elas são o tempero desse esporte. Costumo dizer que o futebol se tornaria absolutamente desinteressante não fosse pela disputa irracional e apaixonada que se trava dentro e, muito mais, fora do campo. Duvido que, se o futebol fosse tão somente um espetáculo artístico e acrobático, teria qualquer importância social. Não é pelos dribles, os gols, as vitórias e os campeonatos, mas pela disputa e pela identificação que fazemos com as cores do nosso clube. Por isso as brigas de torcida, os xingamentos, as ameaças, a raiva, as ofensas, as lágrimas nas vitórias e o ranger de dentes nas derrotas. É dessa matéria bruta que vive o futebol. Ele tenta se equilibrar entre a racionalidade que o humaniza e a animalidade que o faz pulsar. Porém, onde estas forças conflitantes mais se expressam, e de forma mais evidente, é nos clássicos, nas disputas entre grandes rivalidades, e por esta razão acredito que o futebol é o grande espetáculo esportivo planetário por causa dessas disputas domésticas.

Ou seja, a rivalidade é o que dá vida e cor ao futebol, e isso só pode ocorrer quando existem times que disputam com paridade de forças a supremacia em um Estado ou de uma cidade. Desta forma, eu achei ótimo que o Botafogo tenha sido campeão da Libertadores em 2021, pois o antigo clube de “General Severiano” era o único clube grande do Rio de Janeiro que não tinha conquistado esse título. Apesar de ver muitos cariocas bravos e azedos com a vitória do rival, tenho certeza que essa vitória acenderá ainda mais a disputa entre eles, tornando os próprios adversários – que agora estão de cabeça quente – ainda mais interessados em vencê-lo. Tive o mesmo sentimento quando o Galo venceu a Libertadores de 2013, pois até então só o Cruzeiro tinha o título continental. Da mesma forma, fiquei feliz quando o Athlético Paranaense foi campeão nacional em 2001, pois no Estado do Paraná só o Coritiba tinha um título brasileiro até aquela data.

E vou além: até no meu Rio Grande do Sul, apesar de ter secado o Internacional, acho que a conquista das Libertadores por eles fez o meu Grêmio se esforçar mais ainda para conquistar o inédito tricampeonato. Assim, essas vitórias do adversário e rival podem doer quando ocorrem, mas elas são o combustível que alimenta os clubes a superarem suas dificuldades para ultrapassarem o coirmão. O que eu acho lamentável é a disparidade insuperável, quando clubes irmãos se afastam, quando um time enfraquece a ponto de não ser mais competitivo. A gente torce contra nossos adversários domésticos, faz mandinga, debocha e “toca flauta”, mas o fã consciente sabe que os rivais, na verdade, são irmãos e nossa existência como torcedor depende da energia que esta disputa nos proporciona.

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Histórias médicas

Há basicamente três tipos de escritos médicos que eu me acostumei a ler, tanto na literatura em geral quanto na internet. Existem milhões de textos nessas categorias, e não poderia ser diferente. Ao lidar com a vida, a morte e todas as manifestações da libido, não seria possível à medicina deixar de produzir escritos sobre a profusão de emoções que permeiam as consultas e tratamentos, desde os encontros em consultório até as cirurgias sofisticadas e complexas que são correntes na atualidade. Poucos lugares são mais privilegiados para entender o drama da vida humana do que aquele onde se encontram os guardiões da doença e do sofrimento, da redenção e da cura. Não à toa, grandes literatos foram médicos, como Moacyr Scliar, Arthur Conan Doyle, Anton Tchekov, Ferdinand Céline, Oliver Sacks, William Somerset Maugham, François Rabelais, John Keats, etc…

O primeiro tipo de texto que eu reconheço é o escrito técnico, não o trabalho científico academicamente estruturado, mas aquele onde o objetivo é expor um caso clínico, uma história que ocorre ao redor de um diagnóstico e um tratamento, mesmo que envolto por reflexões de ordem filosófica ou ideológica. Nestes, o centro é a patologia, a doença, a enfermidade como um ente que se apossa do sujeito, toma conta dele e, por fim, o faz sucumbir – ou se salvar, normalmente pela ação médica. Nestes casos a patologia é a protagonista, como uma sombra maligna que ameaça o sujeito que, desesperado, se joga nos braços da medicina em busca de salvação.

O segundo tipo tem como foco o paciente. Durante anos me acostumei a ler histórias onde médicos escrevem sobre as curiosidades que os pacientes lhes contam. Por vezes o paciente é tratado como ingênuo, desatento, inculto, que trata suas doenças por nomes curiosos e “errados” e traz à consulta fantasias sobre o funcionamento do corpo. Diz coisas “engraçadas”, como “operar-se da pênis” (o apêndice) ou que teve “febre interna”. A descrição dos clientes é muitas vezes jocosa e, por vezes, desrespeitosa. Por certo que existem também as descrições de dramas, visões pessoais, dilemas terríveis, alegrias esfuziantes e as perspectivas dos doentes sobre a própria doença e a morte. Na área do parto e nascimento são muito frequentes as descrições do parto quem têm como foco as lutas do casal por uma gestação digna, os dilemas da gestação, a busca pelo protagonismo, as escolhas pelo parto normal, a decisão pelo local de nascimento, a luta contra o sistema e os resultados colhidos nestes desafios.

O terceiro grupo é sobre o próprio médico. Neste tipo especial de texto, o médico é o centro das histórias e é sobre sua atuação que gira o núcleo dramático da narrativa. Sua atenção, a precisão do diagnóstico, a descoberta da doença rara, a paciência, a argúcia, a persistência, a coragem são valores que frequentemente aparecem nessas descrições. Também é usual o paternalismo típico do discurso médico, a postura bondosa e condescendente e as narrativas heroicas, onde o médico é travestido de super herói, que sacrifica seu tempo, sua saúde e sua família em nome da cura dos seus pacientes.

Neste último grupo, e bem mais raro, se encontram os textos que estimulam posturas críticas em relação à ação da medicina e ao próprio proceder médico. Essas são as narrativas mais importantes e de qualidade superior, pois que pressupõem a coragem de tocar nas próprias feridas, tanto sobre o significado último da arte médica na cultura quanto nas fragilidades do médico, seus medos, suas angústias, suas aspirações, seus desejos e suas fantasias de onipotência. O profissional que tem a coragem de se olhar no espelho e descrever a si mesmo com a dureza necessária já é merecedor de toda admiração. Poucos ousam apontar suas máculas e falhas; aqueles que o fazem, demonstram força e um singular senso de integridade.

Não há dúvida que a medicina é um palco especial para as narrativas da vida. Ela está presente no seu início e no seu fim, com um olhar especial sobre as pontas da nossa curta passagem por este plano, mas também sobre todos os percalços dessa travessia complexa e tortuosa. As reflexões dos médicos se tornam extremamente criativas quando quem as escreve se afasta do ufanismo arrogante do “salvador” ou do “abnegado curador” e se aproxima do sujeito com todas as fragilidades humanas a quem foram oferecidas as ferramentas de um saber milenar para levar adiante seu ofício. O médico sofistica sua escrita quando descreve o choque entre o saber do médico e os dramas e dores do seu paciente como um encontro de almas, pois é dessa matéria única que são feitas as consultas.

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