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Magnólia Chernobyl

(Uma história baseada em fatos reais)

  • Oi linda, preciso te perguntar uma coisa…
  • Oi, meu amor, manda.
  • Conhece Magnólia Chernobyl?
  • A blogueira? Sim, curto muito os textos dela.
  • Miga, vai descurtindo…
  • Por quê??
  • Vou te mandar o último texto dela pelo whats…
    …….
  • Leu?
  • Li sim, achei bom
  • Bom???? Você concorda com o que ela escreveu???
  • De certa forma sim. Não usaria aqueles termos, e talvez ela tenha sido dura em demasia, mas em essência eu acho que ela está correta. Tem que atacar esses caras mesmo; são pessoas que mais atrapalham nossa luta do que auxiliam. No merci!!!
  • Não acredito que estou lendo isso de você. Não importa o que ela “quis” dizer, mas o quanto isso pode nos atingir. Não percebe??
  • Mas autocrítica é essencial!!! Alguém precisava dizer. Podemos estar indo para um caminho muito errado!!! Ela colocou o sino no pescoço do gato!!
  • Não interessa!! Deixe as críticas para os inimigos!! Precisamos nos proteger!! Ela não tem o direito de falar essas coisas em público. Quem ela pensa que é?
  • Mas é apenas sua perspectiva, sua maneira de ver essa questão. Além do mais, ela está nessa luta há mais tempo que qualquer uma de nós. Como pode pensar em “cancelar” alguém pela sua opinião discordante? Que tipo de tirania é essa? Que movimento monolítico é esse que vocês pensam criar?
  • Então agora os culpados somos nós?
  • Ninguém é culpado!!! São opiniões, perspectivas, pontos de vista!! Se você analisar bem os objetivos de Magnólia são iguais aos seus ou os meus. Ela apenas escolheu uma forma diferente – provavelmente minoritária e contra-hegemônica – mas igualmente honesta e válida de enxergar a nossa questão. Se ela estiver errada, o tempo dirá. Mas silenciar divergências é pura arrogância e preconceito!!
  • Jamais vou aceitar de volta essa traidora ou suas palavras…
  • Traidora??? Do que você está falando?? Que análise moral é essa? Discordar é traição? Ter uma visão diferente a coloca como uma mentirosa, falsa ou oportunista?
  • Eu acho mesmo que foi bom termos esta conversa. Agora sei bem quem você é. Antes disso eu a considerava uma pessoa com limitações, mas agora vejo que entre você e Magnólia não há praticamente nenhuma diferença. Vocês são da mesma laia, vieram da mesma lama. Traidoras, desonestas.
  • Bem, se é assim que pensa de mim pode me colocar na sua lista negra. Quem sabe sou mesmo isso tudo que você descreveu. Apenas me surpreende sua ingenuidade de não ter percebido estas minhas falhas morais em tantos anos de convivência.
  • Eu estava cega. – (Block)
  • Boa sorte – (sua mensagem não pôde ser enviada)

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Obediência

Quatro sujeitos entram em um mercado num dia muito quente de verão. Pelo calor reinante os rapazes adentram no local sem as camisas. O proprietário imediatamente pede que coloquem a roupa e aponta o cartaz com a proibição afixado ao lado na porta.

Os quatro rapazes brincam e avisam que não vão demorar pois querem apenas comprar refrigerantes e já vão se retirar. O proprietário, impaciente, pede uma segunda vez enquanto, ato contínuo, acena para o carro de polícia que está estacionado em frente.

Três policiais entram enquanto os meninos estão pegando os refrigerantes. Ainda com a porta do balcão refrigerado aberta, três deles são empurrados a força para fora, mas um deles é jogado no chão e tem a cabeça prensada pelo joelho do policial. Sua boca sangra enquanto as algemas são colocadas em seus punhos, colados em suas costas.

Ele então pergunta, “Por que essa violência? Viemos comprar refrigerante!! Nada disso é necessário!!”. Enquanto isso seus amigos assustados aguardavam olhando através do vidro do mercadinho.

“Cala boca, neguinho” grita o policial com o nariz grudado no rosto do rapaz. “Você vai aprender a obedecer quando lhe mandarem fazer algo.”

O jovem negro, ainda com a face colada ao piso frio, observa seus três amigos brancos aguardando, enquanto a viatura policial grita o som angustiante de sua presença.

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Amor e Verdade

“Se o seu amor à causa for maior que seu amor à verdade, sua causa já morreu e você não notou”.

Erastus de Medina

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Certezas

“Perigoso é o sujeito que cultua certezas. Mal sabe que por trás de cada uma delas se esconde uma criança encolhida com medo do escuro.”

Guillermo de Montijos, “La Piedra en el Camino”, ed Ortega, pág 135

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O Dilema de Rahii

Meu pai nunca lê nada do que eu escrevo e diz que se constrange muito com minha paixão pela política. Como se pode ver, bom gosto literário é uma característica que não consegui herdar dele. Entretanto, escrevi uma fábula sobre escolhas difíceis e complexas – a qual ele deve ter lido por engano – e, muitos anos depois, disse que havia gostado. Um dia me falou da possibilidade de entender o “Dilema de Rahii” como uma metáfora para as necessárias mudanças na vida que demandam um corte na própria carne.

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Quando a tribo se reuniu para decidir qual rumo tomar, quem primeiro falou foi Nugot, filho do chefe Rahii:

– Precisamos fazer algo para amainar a fúria da “montanha que cospe fogo”. Não temos mais tranquilidade para dormir, para caçar, para colher ou mesmo para brincar no lago. Nossos filhos estão assustados e doentes. Minha mulher não quer mais fazer o “nukhatki” comigo. Reclama de dores na cabeça e no miolo dos ossos, mas eu sei que é por causa de Ratktanuri, a mulher zangada que mora dentro da montanha e que cospe bolas de fogo e fumaça. Quanto tempo ainda conseguiremos suportar tal suplício? O que podemos fazer? Ohh, quem poderá nos salvar?

Colocou as mãos no peito e iniciou um lamento em nabutki, a velha língua dos ancestrais. Cantou uma canção que falava de Merphit, a Deusa feita de nuvens, que voa montada em um alazão de asas brancas. Merphit, a protetora das águas, era chamada a apagar o fogo cujas labaredas impediam o sono de Nugot, o filho do chefe, e impedia que sua terceira esposa, Náhglit, recebesse o sopro de amor para o “nukhatki”.

Outros se uniram na cantoria de Nugot. Algumas vozes mais exaltadas olhavam para o chefe Rahii como uma mirada acusadora. Para ele dirigiam uma súplica queixosa. Como permitira que Ratktanuri se zangasse tanto? Não era ele o chefe da tribo, filho de Mishleh e neto de Natsfertah? Não trazia consigo o dom da palavra, a prática da escuta e a sabedoria do silêncio? Porque não ordenou aos feiticeiros que usassem suas poções, suas magias e seus sacrifícios antes que a situação se tornasse calamitosa? Porque seu silêncio? Parecia esperar que Ogroth, o Deus de todas as coisas, tirasse finalmente o chão de seus pés e caíssem todos no Poço de Numer, onde as gerações por fim se encontram.

É penosa a tarefa de um chefe, pensou Rahii. Os olhares pesados dos circundantes mostravam a ele que apenas de sua boca poderia brotar a palavra salvadora. O céu de ébano, enegrecido pela fumaça dos pensamentos odiosos de Ratktanuri, ficava ainda mais aterrorizante com a nuvem de preocupações que se avolumava. Rahii precisava fazer algo, nem que fosse para manter Éolid junto de seu povo, a deusa da esperança.

O velho chefe juntou os joelhos e ergueu-se com a ajuda de um cajado. Ao seu lado Macaya, sua primeira mulher, segurava sua mão. Ela estivera ao seu lado na luta contra os Nabucris, na enchente do Pitrah, na seca mortífera e na fome. Com ela teve seu filho Nugot, que agora se ajoelhava em frente à ele chorando por uma solução. Caminhou em direção ao centro do círculo dos anciãos, o cajado batendo fortemente na terra a cada passo que dava. Parecia querer cutucar a velha senhora, intimidá-la, ou mostrar que, apesar da idade, ainda havia em si algo de energia. Seus passos cadenciados pareciam ressoar pela tribo inteira, que jazia silenciosa à espera de uma palavra de esperança. Enquanto se aproximava do centro nada se ouvia além de Kaluma, o grilo, que cantava seu canto noturno.

– A velha mulher resolveu se vingar, e seu ódio a todos atinge. Nosso povo precisa aplacar sua raiva, pois se assim continuar seremos apenas cinzas a adubar o jardim de Ogroth. Nosso pecado foi a ignorância, o mal pensar e o agir temeroso. Ratktanuri não perdoa os que fogem de suas tarefas. Faremos a ela mais um sacrifício, para que ela perdoe nosso não-saber, causa do nosso não-agir. Que venham a mim os bezerros e as cabras, e que sejam eles entregues ao fel vermelho da brava senhora, em sinal de nossa submissão.

Mal terminara a fala e Nugot, seu primogênito, levanta-se e exclama:

-Velho pai. Tua sabedoria já foi contada por tantos e tuas histórias espalhadas aos ventos. Tua coragem é um hino em honra da nação Nabutki. Entretanto, o peso de Tépis, o tempo, verga tuas costas e embaralha tuas ideias. Tuas ordens são tão antigas quanto Bakti, o inverno. Já se foram duas quartas de cabras, duas mãos cheias de bezerros e mais uma mão de galinhas, todas oferecidas ao pé da montanha à velha senhora. Que mais pode ela querer? Chega de tanto sacrifício; chaga de tanta dor. De que adianta saldar a dívida com Ratktanuri se o que sobrar de nós for levado por Famis, a senhora da miséria, da dor e da fome? De que vale um povo livre da “água de fogo” que corre pela encosta, se estiver faminto e fraco? Teus rituais sagrados estão ultrapassados, tuas magias velhas, tua força se esvai.

O olhar abatido do velho Rahii ergueu-se para encontrar o rosto de seu filho, aquele que um dia o substituiria. O vigor físico de seu primogênito era notável, assim como a força de sua voz. Ele sabia que as palavras de Nugot estavam escritas com a tinta da morte. De nada adiantaram os rituais já feitos; a velha senhora estava faminta, e pedia mais. Rahii bem sabia que, para se manter como chefe, deveria enfrentar a fúria de Ratktanuri mais uma vez. Se falhasse, ela o derrotaria, e levaria consigo todo seu povo. Se vencesse manter-se-ia como chefe, e mais uma lenda se acrescentaria à sua história. Precisaria ser certeiro e forte, valente, destemido e duro.

Olhou mais uma vez para seu filho Nugot, e disse com a voz mais pesada que já lhe havia passado pela garganta:

– Não é o momento para lutas, meu filho. Sei que nossas magias anteriores falharam, e sei que investir mais na oferta de animais colocaria nosso povo em mais dor e mais tristeza. Precisamos agir com presteza, e com coragem. Creia em mim, e acredite no poder de Ogroth!

Deu um último suspiro e elevou o cajado ao alto. Gritou “Patuh saleh” três vezes e o abaixou até a altura da cintura. Girou nos calcanhares um círculo inteiro e parou. A ponta do cajado direcionou-se para o meio do povo aglomerado, que, assustado, afastou-se de sua trajetória. Apenas Núbit, a pequena filha de Nugot e Nahglit, continuou parada, hipnotizada pelo cajado de Rahii.

Minha neta!, gritou em pensamentos o velho chefe. Não pode ser, não pode ser…

Era o desejo da senhora má. Era a sua vontade, vinda das entranhas da terra. Era o sacrifício de Núbit que ela reclamava. Era o seu sangue que ela desejava.

O meu sangue, o meu sangue…, pensou ele em desesperada apatia.

Os gritos de Náhglit ecoaram pela floresta, sua dor ultrapassou a carapaça dura dos crocodilos. A voz de Rahii era um sopro quase sem vida, mas ainda assim falou ao filho, que gritava amparado pelos irmãos:

– Que a vontade de Ogroth se faça.

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Anjo

“Sonho: um anjo chegou assustado do passado, vestia uma pantalona amarela com nesga, fita na cabeça e cabelo Black Power. Perguntou o que fazíamos nos domingos, entristeceu-se com o Facebook, lamentou pela TV e pela maconha ruim, xingou Bolsonaro e disse que o passado é uma roupa que não nos serve mais. Acordei”

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Em busca do Portal das 3 Luas

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A história que se segue foi contada em breves capítulos para o meu neto Oliver e sua amiga Beatriz durante uma temporada curta de alguns dias na praia. O relato por escrito surgiu da necessidade de resguardar a memória do percurso até então percorrido pelo trio de aventureiros. A história não pretende ser nada mais do que uma tentativa de resgatar a contação de histórias infantis que esteve adormecida durante quase 30 anos em mim, desde quando meus filhos eram pequenos. Esta história é uma homenagem a Nárnia, História sem Fim, Cavaleiros do Zodíaco e Cavalo de Fogo. Aqueles que foram crianças, ou tiveram filhos nos anos 90, devem reconhecer estas referências. Percebi que a arte de contar histórias precisa ser estimulada diante da avalanche de Tablets e vídeos que, apesar de inúmeras possibilidades pedagógicas, retiram da criança o essencial exercício da imaginação e da elaboração mental dos personagens.

Aliás, todos os nomes dos personagens da história abaixo foram escolhidos por Oliver e Beatriz, de acordo com suas próprias referências pessoais.



Em busca do Portal das 3 luas

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1.

As três crianças, João Roberto, Estrela e Pedro resolveram, ao final da aula de geografia de sexta feira, que o dia  seguinte seria dedicado a uma grande aventura. Combinaram, secretamente, que logo depois de raiar o dia iriam ver as ruínas do parque de diversão abandonado. Claro que não tinham autorização para visitar o parque, mas desde quando uma coisa dessas vale mais do que uma aventura?


2.

Os três colegas ficaram de se encontrar na ponte sobre o Córrego da Igreja, e bastou o sol aparecer e os galos arranharem os primeiros raios de luz com seus cocoricós estridentes para os três aparecerem na velha ponte de madeira. Cada um deles trazia na mochila apetrechos variados. Estrela levava uma agulha de costura e fios de cores variadas. Pedro trazia uma lata de metal com anzóis e linhas, enquanto João Roberto trouxe o pão de ló que sua avó havia preparado na noite do dia anterior.

Apesar da excitação da aventura, os três sabiam que a ida até o parque abandonado poderia lhes render uma boa encrenca. Entretanto, o desejo por um cenário novo, desafiante e vibrante foi maior do que qualquer apreensão. Cheios de confiança atravessaram a ponte e rumaram pela rua da Igreja em direção ao Morro do Cachorro. De lá seguiriam pela estrada lateral que os levaria ao velho parque de diversão abandonado.

Eles ainda não sabiam que sua aventura estava apenas começando. Tivessem eles dado ouvidos à intuição e jamais haveria uma história para contar.


3.

O parque abandonado se tornou de difícil acesso pela vegetação espessa que se formou ao redor. Não foi sem esforço que o trio de exploradores afastou os bambus entrelaçados e pisou sobre a grama alta que subia no portão principal. Este, enferrujado e retorcido, guardava ainda no meio uma grossa corrente e e um cadeado majestoso. Entretanto, de tão enferrujado suas bordas de metal se vergaram deixando um vão largo suficiente na parte de baixo para as crianças passarem. Com um pouco de esforço e lá estavam eles no interior do parque.

O cenário era pura desolação e abandono, mas nada poderia ser mais convidativo para aquele trio. A imensa roda-gigante pairava sobre suas cabeças altiva no meio do parque. Os carrinhos de auto-choque mantinham intactas as últimas batidas que produziram. Os cavalinhos do carrossel mantinham o mesmo sorriso pintado no rosto, mas seu trote há muito havia parado. O trenzinho não fazia mais fumaça e nem apitava a cada volta. Tudo era feito de fibra de vidro pintada de cores gritantes é uma grossa camada de poeira por cima. Em  alguns pontos a vegetação tomava conta de tudo, quase impedindo de ver o brinquedo escondido entre as folhas e ramos. O silêncio era impressionante, mas assustador. Um lugar que antes enchia de alegria os corações infantis agora apenas deixava os olhos atentos para alguma surpresa inesperada.

No canto sul do parque uma construção chamou a atenção. Com paredes pintadas de negro e os letreiros em letras góticas e vermelhas, mesmo de longe se podia ler: “Labirinto dos Espelhos”.

– É lá que eu quero ir, disse Estrela com os olhos brilhando.

Talvez, se tivessem ficado apenas admirando as ferragens e os carrinhos abandonados, nenhuma história haveria a contar, mas o que é a vida se não uma sucessão infinita de histórias?


4.

A porta do “Labirinto dos Espelhos” estava entreaberta, o que tornava tudo mais convidativo. Os três desbravadores ficaram estáticos por alguns instantes diante da porta esperando a ordem para entrar. Está, mais uma vez, veio de Estrela, a mais destemida.

– Se viemos de tão longe não faz sentido deixarmos de entrar.

Os dois meninos se entreolharam e concordaram com um gesto síncrono de cabeça, sem dizer nenhuma palavra.

Foi de Pedro o primeiro passo, e foi ele que afastou a porta emperrada para dar passagem a todos. Primeiro Estrela, depois João Roberto expõe fim Pedro que se manteve segurando a porta.

O interior seria negro como breu da noite se não fossem algumas rachaduras nas paredes que permitiam perceber os espelhos distorcidos que compunham o labirinto. O trio começou a vagar por entre os corpos distorcidos e as caras bolachudas, as penas compridas e os troncos desproporcionais. João Roberto não se conteve com a forma rechonchuda de Estrela e soltou uma gargalhada que ecoou no vazio do labirinto. Enquanto riam um do outro perceberam que Pedro não estava ao lado.

– Pedro!! Pedro!! Onde você está, gritavam Estrela e João Roberto. Não tem graça nenhuma se esconder. Não podemos nos afastar uns dos outros. Foi nossa combinação. Volte aqui moleque!!

Do escuro do labirinto espelhado escutaram apenas o silêncio como resposta.


5.

Estrela e João Roberto deixaram os espelhos de lado e voltaram a atenção para Pedro, de quem não ouviam um som sequer. Impossível saber o tamanho do labirinto já que o teto coberto de espelhos não permitia nenhuma avaliação. Os gritos dos dois amigos ecoavam nas paredes espelhadas e ficavam parados no ar a espera de uma resposta que não vinha.

– Se ele estiver brincando e quiser nos dar um susto eu nunca vou perdoá-lo, disse João Roberto. Que raiva.

– Não diga isso, disse Estrela. Não é brincadeira; Pedro não faria isso. Ele não pode nos escutar. Ele está….

– Perdido!!! gritou João Roberto. Mas o que vamos fazer?

– O melhor a fazer é voltar para a porta de entrada. Talvez ele esteja lá nos esperando. É possível que não possa nos escutar. Deve estar preocupado conosco, que ainda estamos aqui dentro. Vamos voltar.

Estrela segura firme a mão de João Roberto e se dirigem para a entrada. Entretanto, foram necessários apenas poucos passos para perceberem que não sabiam onde estava a porta de entrada. Os espelhos, as voltas, a confusão dos sentidos, tudo se misturava em uma pletora de imagens idênticas e angustiantes.

– Estamos perdidos também, Estrela. Não reconheço nada aqui. A cada volta parece que vamos para um caminho que nunca antes caminhamos. Não sei mais o que fazer.

– Só nos resta continuar andando João Roberto. É nossa única esperança.

A escuridão do labirinto era quebrada apenas pelas rachaduras esporádicas, cuja luz apenas deixava a busca mais lúgubre. Os passos apressados sincronizavam com as batidas do coração das crianças, que a cada minuto mais se enchiam de medo e preocupação.

Mal sabiam elas que a verdadeira aventura sequer havia começado.


6.

Os gritos dos amigos ricocheteavam nas paredes dos labirintos onde passeavam suas imagens grotescas. A cada volta, em cada curva suas próprias imagens lhes davam a esperança de encontrar Pedro, mas só o que viam eram suas imagens estranhamente deformadas, cuja comicidade há muito havia desaparecido, dando lugar ao medo e à apreensão.

– Espere um pouco, Estrela. Vamos parar e pensar. De nada adianta continuarmos aqui rodando cegamente. Precisamos de uma outra estratégia. Pense, pense!!

Estrela concordou. Haviam perdido a noção do tempo. Não sabiam quanto tempo estavam ali e nem para onde ir e estavam agindo como desesperados. Deveria haver uma forma mais inteligente de descobrir a saída.

– Tenho uma ideia, disse Estrela. Abriu sua mochila e tirou de dentro um carretel de linha vermelha. – Você vai na frente desenrolando o carretel. Se encontrar algo puxe a linha com força. Se estivermos andando em círculos você vai acabar me encontrando aqui de novo e saberemos que nossa busca está errada.

– Temos mesmo que nos separar? perguntou João Roberto.

– Não vejo alternativa melhor. Você tem alguma?

João Roberto baixou os olhos em concordância. Pegou a ponta da linha vermelha e começou a se afastar. O carretel girava no dedo mindinho de Estrela enquanto ele dobrava a primeira curva e desaparecia, pela primeira vez, dos seus olhos.

O carretel continuava seus giros até que, quando já alcançava mais da metade, bruscamente parou. Estrela olhou para a linha esticada e gritou por João Roberto.

– João!! João!!  Encontrou alguma coisa? Encontrou Pedrinho?

O silêncio foi interrompido por um súbito puxão  na linha. Era o sinal combinado. Todavia, logo após sentir a pressão do puxão em seus dedos, a linha despenca para o chão, perde sua tensão e cai.

O que era esperança se tornou pânico.

– João, João… O que aconteceu? Fale comigo!!!


7.

A linha vermelha jazia no chão empoeirado enquanto Estrela tentava romper a paralisia momentânea de suas pernas.

– João!!, insistiu ela, mas recebeu tão somente o eco de sua voz se chocando contra seus ouvidos. – Diga alguma coisa!!

Teve ímpetos de chorar, mas seu pensamento não permitiu. “Chorar não vai me ajudar a encontrar meus amigos. Pense!! Faça algo!! Mexa-se!!”

Agarrada ao carretel voltou a enrolar a linha enquanto percorria o trajeto que João Roberto havia percorrido minutos antes. Serpenteando pelo labirinto seguia a linha rubra e a enrolava no carretel em sua mão. Passou por curvas que jurava ter visto antes, mas não tinha nenhuma certeza.

De súbito a linha chega ao seu fim. As pupilas de Estrela se abriram ainda mais para tentar absorver a pouca luz que havia no local. Espelhos a circundavam por todos os lados, mas nada de João ou Pedro. Pela primeira vez ela se deu conta que estava absolutamente só, perdida num labirinto macabro tendo apenas sua própria imagem alterada como companhia.

Guardou o carretel com a linha vermelha em sua mochila e sentou-se no chão. Era preciso pensar, descobrir o que aconteceu aos seus amigos.

Enquanto aguardava uma ideia a lhe iluminar a mente percebeu que uma pequena rachadura ao lado de um espelho convexo, além de oferecer a tênue réstia de luz do ambiente, tinha uma configuração diferente das demais. Não tinha as bordas irregulares ou serrilhadas como nas tantas que observara, mas acompanhava de forma retilínea a lateral do espelho. Diante dessa constatação resolveu explorar o que havia de especial nesta falha da parede.

Com passos ainda tímidos aproximo-se de luz frágil na parede e descobriu, entre estarrecida e esperançosa, que não se tratava de uma simples rachadura….. em verdade era a fresta de uma abertura. Uma porta ou uma janela que provavelmente lhe ofereceriam uma saída.

Colocou seus dedos miúdos na minúscula fresta tentando fazer uma alavanca. Foi necessário pouco esforco até escutar um “clic” e uma torrente de luz invadir sua retina deixando-a momentaneamente ofuscada. Sem conseguir enxergar direito sentiu seu corpo projetado em direção à luz e despencar de uma pequena altura. Sua queda foi amortecida por folhas, grama, palha e galhos secos.

Aos poucos conseguiu voltar a enxergar, ainda tonta pela volúpia de luz inesperada e a queda ao solo. Imaginou que havia chegado em uma parte do parque coberta pelo mato, mas não reconheceu nenhuma planta ao seu redor.

Quando tentava se levantar para ver melhor o lugar onde havia caído, sentiu uma pressão no ombro e escutou as palavras.

– Tudo bem com você?


8.

Ainda tentando se recobrar Estrela se volta para a voz e reconhece João Roberto. Eles se abraçam efusivamente e Estrela lhe pergunta:

– Por que não me chamou? O que aconteceu?

– Eu dei o puxão conforme combinado quando cheguei aqui e percebi a rachadura estranha na parede. Você deve ter percebido. Foi então que vi que a ranhura na parede poderia ser uma porta. Forcei a abertura e fui jogado para cá. Acredito que o mesmo aconteceu com você. Mas estas não são as perguntas adequadas agora.

– Sim, eu concordo. Desculpe ter ficado brava. E você tem razão; as perguntas importantes agora são “onde está Pedro?” e “onde diabos estamos?”. Precisamos continuar procurando nosso amigo.

João Roberto concordou com um balançar de cabeça e lançou um longo suspiro. Pela primeira vez ambos prestaram atenção no lugar onde estavam. Em seu pensamento eles temiam que Pedro ainda estivesse no labirinto dos espelhos e que esta saída, que parecia ser uma boa descoberta, na verdade selaria a separação definitiva dos amigos.

Ao olhar ao redor perceberam que estavam em uma densa floresta e sobre um pequena clareira. Nenhum sinal da porta do labirinto que se abrira a minutos atrás. Estaria escondida entre as folhagens? Poderia estar muito para o alto, longe da visão?

Essas perguntas que os dois viajantes compartilhavam em pensamento desapareceram diante de uma descoberta fortuita.

Logo abaixo dos seus pés viram pequenos fragmentos que lhes chamaram a atenção. João Roberto se abaixou, colheu um punhado e exclamou com um sorriso:

– O Pedro esteve aqui. Ele veio até aqui!

Abriu sua mão e mostrou o conteúdo. Entre os dedos finos havia o que para eles pareceu mais valioso que ouro.

Ao olhar a mão de João Roberto se abrindo Estrela destravou um enorme sorriso.

– Migalhas!!! Migalhas de pão de ló da avó do Pedro. Ele esteve aqui. Deve ter sido sugado pela porta de luz como nós e ficou aqui nos esperando. Porém, como demoramos muito a chegar aqui  ele pegou um pouco de pão e jogou migalhas no chão para sua presença  ser descoberta por nós!!

– Certo que sim, disse João Roberto. Que outra explicação haveria para pão de ló no meio de uma floresta?

– Será necessário sair daqui para encontrá-lo. Deve haver uma trilha, um caminho, uma picada. Temos que continuar. Precisamos encontrar Pedro!!!

Não muito longe dali, atrás de uma árvore frondosa, um par de olhos arregalados e ouvidos atentos escutavam a conversa das crianças.


9.

Sim, ficara evidente para Estrela e João Roberto que Pedro havia passado pelo mesmo lugar que agora estavam. Restava tentar descobrir para onde ele teria ido.

Olharam ao redor em busca de uma pista e não foi muito difícil descobrir que, entre as folhagens secas, era possível perceber uma trilha. Das opções possíveis de adotar a mais lógica seria seguir adiante por onde o chão estivesse marcado e alguém já tivesse caminhado. As marcas deixadas no chão pareciam bem claras.

– Pedro deve ter esperado um pouco e comeu seu pedaço de pão aqui. Deixou migalhas para nos orientar. O único caminho razoável a seguir seria pela pequena abertura na vegetação, onde a grama está mais escassa. Precisamos seguir adiante.

As palavras de Estrela foram firmes e ajudaram João Roberto a se tornar confiante nesta escolha. Porém ambos tinham a mesma dúvida: não seria melhor esperar que Pedro retornasse a esse ponto? E se Pedro conseguiu descobrir como voltar ao parque e estava buscando ajuda, não seria mais correto esperar ali?

Essas dúvidas foram deixadas para trás na pequena clareira, enquanto a dupla ajustava suas pequenas mochilas e partia para mais uma etapa na procura por Pedro. Entraram mata a dentro e só então se deram conta da vegetação estranha que os circundava. As folhas eram todas de cores intensas, e não apenas verdes em todas as tonalidades, mas também vermelhas, amarelas, roxas, púrpuras e azuladas. A profusão de plantas de colorido exuberante era impressionante. Subitamente Estrela aponta para uma árvore onde uma borboleta gigantesca pairava sobre um dos galhos. Suas asas de coloração fúcsia mais pareciam um anúncio luminoso de uma fachada. Ela era gigantesca e de uma exuberância inimaginável. Enquanto a admiravam um grupo de libélulas gigantes passou em rasante por suas cabeças. Tinha no mínimo 1 metro de tamanho e o barulho de suas asas parecia o motor de um avião.

– Esse lugar é muito estranho, falou João Roberto. – Muito…. e eu estou começando a ficar com medo.

– Tenha calma, respondeu Estrela. – Não seja fraco. Precisamos encontrar nosso amigo.

Seguiram pela trilha da mata, que muitas vezes se apagava para surgir alguns metros adiante. Os animais enormes e as plantas de forma e colorido estranho eram o pano de fundo por onde seus pés transitavam. O medo de seguir sem um destino certo era menor do que o de voltar para a clareira e ficar apenas aguardando o destino. Seguiam com medo e ansiedade, mas com esperança de encontrar o amigo e a saída.

Quando já  estavam caminhando por  horas na trilha se depararam com o primeiro grande susto. Uma águia enorme e ameaçadora se colocou diante dos dois. Suas asas abertas em posição de ataque fez com que ficassem petrificados. Seu tamanho era maior do que um cavalo e sua cabeça branca tinha na frente um bico enorme e potente.

Os dois viajantes se abraçaram e esperaram o pior, mas inesperadamente escutaram um estrondo atrás de si que assustou a águia que saiu voando em disparada.

Quando olharam para trás puderam ver a figura de um velho, pequeno como eles, de roupas largas e aparentemente sujas. Trazia numa mão um cajado e na outra uma lata ainda fumegante, e provavelmente foi dela que partiu o estrondo que assustou a águia.

Aproximaram-se do ancião, que com um sorriso lhes disse:

– Estive seguindo vocês pela Floresta Mágica. Parecem estar perdidos e não conhecem os perigos deste lugar. Sou Simão, e vocês quem são?

Estrela e João Roberto se apresentaram e falaram do parque abandonado, do labirinto dos espelhos e de Pedro, o amigo a quem procuravam.

– Nunca ouvi falar de parques ou de labirintos. Isso fica em Ardósia? Vocês estão perdidos, sem dúvida, mas é certo que a única pessoa capaz de lhes mostrar uma saída do reino será a princesa Bélolli.

– Princesa Bélolli? Quem é? Onde ela está? Como podemos falar com ela? Os dois misturavam as perguntas com a ansiedade por encontrar uma resposta.

– Falta pouco para chegarem ao castelo. Continuem por esta trilha, mas não esqueçam que a Floresta Mágica é proibida à noite por causadas bruxas e dos Espectros Negros. Não ousem se aproximar deles, ou o seu fim será trágico.

A dupla agradeceu as informações e seguiram pela trilha. Mal tinham dado os primeiros passos e Simão gritou para eles:

– Ei, quando encontrarem seu amigo agradeçam a ele pelo pedaço de pão que me deu. Estava delicioso!!

Era Pedro!! Ele havia passado por ali e estava na mesma trilha. Em pouco tempo poderiam encontrá-lo. Isso deu a eles uma energia renovada para seguir.

Todavia, o que eles ainda não sabiam, é que as luzes do dia estavam rapidamente se apagando, trazendo escuridão para a Floresta Mágica e com ela as bruxas e os Espectros Negros.

Sem saber do que se aproximava os dois seguiam confiantes pela mata multicolorida.


10.

Logo ficou claro para nossos caminhantes que o conceito de “falta pouco” usado pelo velho Simão era provavelmente diferente do que haviam se acostumado a usar. Depois de algumas horas de caminhada pela trilha o sol começou a aparecer ao lado das árvores, e não mais em suas copas. A tarde se esvaía enquanto os lagartos gigantescos aproveitavam os últimos raios de sol para esquentar seu corpo frio. Aos poucos Estrela e João Roberto começaram a se preocupar com o alerta de Simão sobre as bruxas e os Espectros Negros.

– Chegaremos a tempo ao Castelo da princesa Bélolli. Não se preocupe João.

João Roberto apenas caminhava apertando o passo e desviando de galhos soltos pelo caminho. Entretanto, desconfiava que Estrela não tinha tanta firmeza em suas palavras.

O sol começava a se aproximar da linha do horizonte pintando de dourado os cabelos de Estrela. Ainda não haviam avistado o Castelo, talvez pela distância que havia ainda a percorrer, ou quem sabe apenas pela vegetação densa a encobrir a visão, mas se queriam mesmo chegar lá em segurança deviam evitar o escuro da noite. Não seria possível seguir a trilha sem poder enxergá-la.

Aos poucos João Roberto começou a ouvir barulhos estranhos que pareciam vir de trás, mas a cada vez que parava de caminhar e tentava escutar com mais precisão recebia uma reprimenda de Estrela.

– Não temos tempo a perder. O por do sol se aproxima!!

Finalmente, depois de subirem uma colina, conseguiram avistar, ainda ao longe, o Castelo da princesa Bélolli. Lá esperavam receber as orientações necessárias para voltar para casa e, quem sabe, conseguir informações sobre Pedro.

Resolveram apressar o passo ainda mais para vencer o espaço que os separava do Castelo. Entretanto, depois de uma descida demorada, o sol finalmente desapareceu no horizonte, deixando apenas uma mancha violácea e vermelha a colorir o céu.

– Não temos mais tempo, Estrela. Corra!!

Nesse momento em que a escuridão aos poucos começou a cobrir a Floresta Mágica foi que os jovens viram os Espectros Negros pela primeira vez se aproximando. Eles tinham esse nome por  usarem uma roupa negra e esfarrapada que lhes cobria do rosto até os pés. Pareciam sombras que volitavam por entre as árvores. O som que faziam era gutural, como um ronco surdo, um sopro rouco e angustiante.

Quando os viu ao longe saindo detrás das árvores João Roberto soltou um grito agudo e assustou Estrela. Esta, voltando-se para trás, também  conseguiu ver os Espectros se aproximando e puxou seu amigo para perto.

– Rápido, João, rápido. Estamos perto do Castelo, falta  pouco!!!

Correndo desvairados pela Floresta mal podiam ver que os espectros negros estavam acompanhados das bruxas, que os seguiam de perto.

Finalmente uma clareira se abriu diante deles e perceberam que apenas uma vegetação rala e baixa os separava do Castelo. Os dois não tinham quase mais energia, mas o pouco que ainda guardavam foi colocada nas pernas.

– Corra Estrela, não olhe para trás!!

Com os Espectros Negros e as bruxas no seu encalço em poucos minutos seriam capturados. Era preciso correr, correr o máximo que fosse possível suportar.

O Castelo se aproximava mas ainda havia uma ponte a atravessar para chegar no portão de entrada. Quando estavam quase chegando os jovens aventureiros escutaram uma voz firme e forte gritando da torre de vigia.

– Levantem a ponte levadiça!! Os espectros negros e as bruxas estão se aproximando!!!

– Não subam a ponte!!, gritou João Roberto. Estamos chegando!! Não nos deixem aqui. Precisamos falar com a princesa Bélolli!!

O vigia da torre parece tê-los visto ao longe, mas isso não mudou seu comando enérgico. De lá ordenou novamente:

– Subam a ponte. Agora!!

Alguns metros apenas afastavam Estrela e João Roberto da ponte quando suas pesadas correntes foram esticadas e começaram a erguer a pesada estrutura de madeira. Sem ter outra alternativa Estrela gritou para o seu amigo:

– Só temos essa chance João… Pule!!!

Chegando na beira do fosso pularam enquanto a ponte era levantada.  Com seus braços pequenos conseguiram alcançar a borda que se erguia, e enquanto se seguravam com mais vigor puderam ver que o fosso estava repleto de crocodilos enormes, com suas bocas cheias de dentes e suas caudas poderosas nadando solenemente na água que inundava o vão.

Quando a ponte se preparava para terminar de se recolher os viajantes escorregaram por sua face e caíram dentro da entrada do Castelo. Ainda conseguiram escutar aliviados o som dos espectros e das bruxas que ficaram do outro lado do fosso. Foi por pouco!!

– Estamos salvos, disse João Roberto, ainda tentando recuperar o fôlego depois da corrida desesperada para fugir de seus perseguidores.

Entretanto, mal conseguiram levantar e se viram cercados por mais de 20 soldados vestindo imponentes armaduras, que reluziam a luz das tochas recém acesas para iluminar a noite do Castelo. Um dos soldados se destacou dos demais e com uma voz possante e grave perguntou, em tom ameaçante:

– Quem são vocês e como ousam invadir o Castelo de Ardósia?


11.

O capitão Gunar não se interessou por escutar as explicações de Estrela e João Roberto. Para eles a dupla que escalou a ponte levadiça não passava de invasores. Poderiam ser bruxas disfarçadas, espiões de Astaroth ou simples bandoleiros mirins tentando cometer pequenos furtos dentro da cidadela.

Enquanto eram escoltados por guardas de armaduras reluzentes e barulhentas pensaram na aventura incrível em que se meteram ao longo do dia, desde que decidiram visitar o parque abandonado. Por suas mentes juvenis passaram o labirinto dos espelhos, a Floresta Mágica, as plantas multicoloridas, os animais gigantescos, a águia ameaçadora, o encontro com o velho Simão e e a fuga desesperada da perseguição dos Espectros Negros e das Bruxas, terminando com a chegada ao Castelo da princesa Bélolli e a prisão pelos guardas. Entretanto, o que mais os angustiava, o pior de tudo que haviam passado, era a perda do amigo Pedro. Sua ausência, e a preocupação com sua segurança, os deixava mais apreensivos do que o pavor que sentiam ao caminhar escoltados pelos corredores apertados de paredes úmidas e escuras da prisão do castelo.

– Passarão a noite no calabouço. Amanhã veremos o que fazer com vocês. Se estiverem mentindo e forem espiões de Astaroth vocês servirão de almoço para Croko e Dillon, nossos lagartinhos de estimação.

Dizendo isso o capitão Gunar abriu uma janela de madeira escura no meio de um enorme corredor de pedra. Com a unha imunda do seu indicador direito apontou para dois gigantescos crocodilos que dormiam sob a lua em uma jaula gradeada. A visão dos enormes répteis fez os jovens engolirem em seco.

Estrela aproximou-se de João Roberto sussurrou em seu ouvido:

– Não tenha medo. Mantenha-se confiante. Pela manhã vamos encontrar a princesa Bélolli e explicaremos nossa situação. Com sua ajuda poderemos encontrar a saída dessa terra estranha.

– O capitão Gunar chamou este lugar de Ardósia, disse João Roberto também com um sussurro.

– Não importa como se chama; para nós o que importa é como se sai, respondeu Estrela.

– Calem-se, pirralhos!! Não vou tolerar cochichos na minha presença. Fiquem quietos antes que eu mude de ideia e resolva dar de jantar aos crocodilos agora mesmo!! gritou o capitão enquanto apertava o passo e empurrava a dupla pelo corredor escuro.

Os jovens prisioneiros continuaram em silêncio caminhando pelo longo labirinto de pedras úmidas e escuras. Finalmente chegaram a um beco sem saída, em cujo fim se via apenas uma pesada porta de ferro com uma minúscula portinhola ao centro. O capitão Gunar esticou o braço musculoso mantendo a palma mão para cima, enquanto um soldado se apressava em colocar sobre ela uma enorme chave de ferro escuro.

O chefe da Guarda Palaciana deu um passo adiante e colocou a pesada chave na fechadura. Ajustou-a e deu um giro firme, depois outro. A fechadura produziu um clique característico. Deu um passo para trás enquanto um soldado ao seu lado segurou com ambas as mãos a tramela da pesada porta e com um puxão vigoroso a porta se destrancou, produzindo um guincho tétrico à medida em que se abria.

O capitão Gunar afastou o soldado com um gesto brusco em seu ombro e tomou a frente. De dentro do calabouço vinha uma tímida luz cambaleante de um dos cantos. O cheiro de mofo e vela queimada impregnava as narinas e deixava a pequena masmorra ainda mais assustadora. O capitão colocou sua enorme cabeça para dentro e falou com voz ameaçante e irônica:

– Levante-se, espião maldito. Temos visita para você.


12.

Assim que Estrela e João Roberto foram jogados para dentro ouviram o clique da chave girando na porta atrás de si, seguido do ruído dos passos dos soldados, acompanhados de suas gargalhadas estridentes. A luminosidade trêmula do candeeiro deixava curiosas sombras cambaleantes nas paredes grossas da cela, fazendo uma estranha dança com os corpos miúdos dos nossos aventureiros. No canto da sala jazia o “espião” mas seu corpo estava encoberto pela luz da vela à sua frente. Estrela e João Roberto se aproximaram lentamente até que conseguiram ver o corpo deitado e encolhido, encostado à pera fria do fundo do calabouço.

Quando os olhos se acostumaram à luz fraca do recinto Estrela segurou fortemente a mão de João Roberto e não conteve uma exclamação:

– É Pedro. É o nosso Pedro!!!

Seus gritos acordaram o amigo, que ainda assustado jogou suas costas contra a parede para se proteger. Nesse momento João Roberto se aproximou e abraçou o amigo, e Estrela se juntou aos dois num abraço longo de alegria e alívio.

– Onde vocês estavam, seus pestes? Eu chamei por vocês até minha garganta doer. Eu me perdi no labirinto e saí procurando vocês até achar uma porta, mas acabei caindo na Floresta Mágica. Uma luz intensa me jogou e fiquei lá muito tempo esperando por vocês ou por socorro. Como vocês não vinham eu sentei no chão e comi um pouco do pão-de-ló que minha avó tinha feito no dia anterior.

– Sim, disse João Roberto, nós vimos os farelos. Por isso sabíamos que você também tinha caído do labirinto, da mesma forma que nós.

– Exatamente, que bom que se deram conta, continuou Pedro. Depois de muito tempo resolvi seguir adiante, acreditando que estava num lado do parque que havia sido tomado pelo mato fechado. Percebi no chão uma trilha e a segui. Esperava escutar vocês e continuei procurando, até que um velho com roupas esfarrapadas me encontrou.

– Simão!! Sim, nós também o encontramos. Ele nos disse que você deu um pedaço de pão para ele.

Os três ficaram por vários minutos falando das cores impressionantes do lugar, assim como os animais gigantescos, as aranhas de pernas vermelhas, as centopeias azuladas, a águia gigante de cabeça branca, os libélulas e borboletas e tudo o que viram na sua travessia da Floresta Mágica.

– A princípio fiquei desconfiado de Simão, mas depois percebi que ele era um bom sujeito. Pedi a ele orientações para voltar e tudo o quer ele me disse foi continuar caminhando pela trilha até encontrar um castelo. Foi o que fiz, mas quando bati na porta de entrada fui recebido de forma rude e grosseira pelos guardas e por um capitão…

Gunar, disseram ao mesmo tempo seus colegas. Sorte sua que chegou antes do anoitecer e não teve que fugir dos Espectros Negros e das bruxas.

– Gunar, esse mesmo. Ele me encheu de perguntas, Colocou sua espada no meu nariz, me falou de uma cidade chamada Astaroth e me acusou de ser espião. Expliquei a ele que mal havia chegado e que não sabia nada desses lugares ou de qualquer outro detalhe.

– Nós vimos como ele pode ser grosseiro e bruto quando quer, disse Estrela.

– Então ele me pegou pelo colarinho da camisa e me trouxe até esse calabouço. Eu não esperava encontrar vocês nunca mais. Não sei se fico alegre pela companhia de vocês ou triste por saber que acabaram tão enrascados quanto eu.

Estrela abraçou o amigo mais uma vez e falou:

– Não seja tolo, Pedro. Estamos juntos nessa. Somos um time, não? Estou muito feliz por tê-lo encontrado, e sem nenhum arranhão. Creio que amanhã poderemos explicar para a princesa Bélolli tudo o que aconteceu conosco. Nada vai nos acontecer. Creio que o melhor a fazer é tentar dormir e aguardar o dia nascer.

Os três ajeitaram suas mochilas como travesseiros e se acomodaram perto da vela. Haveria uma longa noite para descansar e pela manhã tentar provar a inocência para a princesa Bélolli. Pelo menos agora estavam aliviados, pois estavam todos juntos. Não havia mais o medo de que Pedro tivesse se perdido na floresta, o que tivesse sido vítima de uma águia faminta ou uma bruxa.

O novo dia guardava surpresas que nem as mentes inquietas dos três seriam capazes de imaginar.


13.

Os três viajantes dormiram um sono de pedra amontoados no canto do recinto, muito pelo extremo cansaço das aventuras do dia anterior, mas também pelo alívio de se reencontrarem. Somente quando as primeiras luzes do dia se esgueiraram por debaixo do manto da noite é que eles conseguiram ver com nitidez o calabouço em que se encontravam. A luz entrava timidamente por uma ranhura retangular entre os tijolos na parte superior da cela. Era pequena o suficiente apenas para a entrada do ar, mas a luminosidade permitiu que pudessem ver onde estavam. Não havia nada a mais na sala além do pequeno candeeiro que que agora estava apagado, tendo a vela derretido por completo. Ao longe escutavam sons de soldados marchando, palavras de ordem, comando, cães latindo e burburinho de vozes, mas era tudo muito distante.

Estrela acordou seus amigos e disse-lhes para estarem preparados. A qualquer momento seriam chamados para falar com seus carcereiros. Havia a esperança de que acreditassem em sua história e que não os tratassem como invasores ou – pior – espiões.

João Roberto ainda era o mais ansioso dos três. Achava que eles jamais acreditariam no relato que trouxeram. Como acreditariam em um “labirinto de espelhos”, uma figura estranha como Simão, a caçada dos Espectros Negros da floresta?

– Gunar vai nos ferver em óleo e depois entregar para os abutres.

João Roberto sorriu, mas logo depois ficou sério e apreensivo.

– Este é um mundo diferente, com regras diferentes. No nosso mundo, quem acreditaria que uma águia gigante nos cercou e ameaçou e que fomos salvos por um velho homem que a assustou com um artefato de fogo?

As palavras de Estrela pareciam sensatas. Era preciso entender que mundos diferentes possuem regras distintas. É possível que a princesa Bélolli entendesse as suas boas intenções e os ajudassem a sair deste mundo para reingressar no seu.

Pedro ainda era o mais quieto. A solidão e o medo de ter perdido seus amigos tinham deixado suas marcas, pelo menos por enquanto. Confessou aos seus dois companheiros de viagem que teve medo de ficar perdido para sempre e que ambos jamais o encontrariam. Teria sua face em caixas de leite, postes ou páginas de jornal como “desaparecido”, sem que ninguém jamais acreditasse no que ele realmente passou.

Os três ficaram em silêncio por um tempo pensando nos riscos que correram no dia anterior. seus pensamentos correram E se fossem pegos pelas bruxas e os espectros? E se não tivessem encontrado Simão? E se Pedro não tivesse encontrado o castelo e tivesse ficado preso na floresta? E se…

Os pensamentos dos 3 foram bruscamente interrompidos pelo girar da pesada chave na porta. Imediatamente os três se ergueram e se puseram de pé, perfilados lado a lado com as costas apoiadas na parede atrás. O guinchar da porta foi seguido do aparecimento do Capitão Gunar, ladeado por dois enormes soldados.

– Levantem-se, espiões. Vocês vão falar com a princesa Bélolli.


14.

Saíram do calabouço com suas mochilas às costas e foram conduzidos pelos guardas de pouca conversa. O capitão Gunar seguia a frente sem dizer palavra. Depois de muitos cadeados serem abertos pelas chaves que o capitão da guarda carregava atadas à cintura, o cenário foi aos poucos se modificando. As portas de ferro e pedras empilhadas e toscas da prisão deram lugar a paredes bem pintadas e portas de madeiras com entalhes de dragões, torres e guerreiros. O ambiente aos poucos se tornava menos lúgubre e mais convidativo.

Gunar abriu uma derradeira porta de madeira alta com adornos desenhados em relevo que dava para um enorme recinto oval. Ordenou que os jovens entrassem e aguardassem, pois seriam chamados em breve. Perguntou a eles se estavam com fome, e eles disseram que sim, pois estavam sem comer desde o dia anterior. Fechou a porta e deixou-os sozinhos. Enquanto aguardavam a chegada de alguém observaram o lugar em que estavam, prestando atenção aos detalhes grandiosos e impressionantes. No fim do salão havia uma escada curva e elegante que dava acesso ao piso superior, onde uma sacada com mureta branca dava um toque clássico. O lugar era adornado com cortinas de veludo bordô e as luminárias que pendiam do teto alto reproduziam um tilintar agradável aos ouvidos toda a vez que uma brisa entrava pelas janelas com vitrôs coloridos. O chão era mármore com madeira, e as mesas distribuídas pelo ambiente eram cobertas com rendas brancas com detalhes dourados.

Os jovens caminhantes resolveram se sentar junto à mesa que tinha ao centro uma esfera de luz, como uma luminária, rodeada por pratos de porcelana e talheres de prata. Sentaram-se em silêncio, o qual só foi interrompido com a porta novamente se abrindo para a entrada de um velho senhor vestindo uma roupa branca e luvas. Empurrava um pequeno carrinho cujas rodas deslizavam sem fazer barulho pelo chão de mármore do salão.

Quando se aproximou dos jovens famintos estes perceberam uma jarra de prata e uma tampa convexa igualmente prateada. Ao lado dessa hemiesfera havia um pequeno pote com uma substância verde clara, parecendo uma geleia.

O pequeno senhor serviu uma das taças de cristal e ofereceu para Estrela. O líquido que saiu da jarra era vermelho e levemente translúcido. Ela segurou a taça com um pouco de desconfiança, mas o serviçal do castelo fez um gesto com as mãos para que bebesse o conteúdo.

Aldivar, Aldivar, disse ele, enquanto apontava para a janela.

Os jovens voltaram seus rostos para a janela aberta ao seu lado mas nada viram além das nuvens e da cortina que balançava ao toque da brisa suave que enchia o salão. O que ele queria dizer?

Após servir também João Roberto e Pedro ele repetiu o gesto para que tomassem.

Depois do primeiro gole do líquido avermelhado João Roberto exclamou:

– Groselha, tem gosto de groselha!!

– Não, contestou Pedro. É framboesa. Certo que é.

– É definitivamente Framboesa, definiu Estrela. E é bom.

O senhor levantou a tampa convexa que cobria uma cesta e dentro desta apareceram brioches com formato de couve flor e uma coloração amarronzada. Os jovens olharam com desconfiança, sem saber do que se tratava, mas o senhor imitou um gesto de mastigar.

Stáfel, stáfel, disse ele.

Depois disso, com uma faca de cabo madrepérola, cortou o brioche ao meio e passou a geleia esverdeada nas duas metades. Apontou para a estranha substância gelatinosa, e disse:

Smidereens, smidereens!! Depois disso juntou o polegar e o indicador no lóbulo da orelha esquerda, como a dizer que se tratava de algo delicioso.

Não havia como discutir diante de tanta fome, e de tanta propaganda. Passaram a estranha geleia dos brioches “Stáfel” e levaram à boca.

– Tem gosto de frango, disse Estrela, mas parece ser muito bom. Esse pãozinho tem gosto de batata, ou aipim.

– Certo que é feito de carne defumada, disse João Roberto.

– Para mim é um patê de peixe, e o pãozinho é de centeio ou milho, disse Pedro, já lambuzado e em completa confusão no paladar.

– Agora não faz diferença, estamos mesmo com muita fome, completou João Roberto.

O serviçal do castelo ficou feliz ao ver o quanto gostaram dos quitutes que havia trazido a eles. Deixou o carrinho com os jovens aventureiros e se retirou. Estes comeram o quanto foi possível, e ainda abasteceram a mochila com o “Stáfel” que sobrou assim como guardaram o pote de “Smidereens”

Já mais tranquilos e com a fome saciada, ficaram ao aguardo da chegada da princesa, mas quem apareceu primeiro foi o capitão Gunar.

– Levantem-se, espiões de Astaroth. Se depender de mim esta será a última de suas refeições, aquela destinada aos condenados. Infelizmente, não tenho o poder para executá-los. Agora fiquem em silêncio. Sua majestade a princesa Bélolli vai falar com vocês, mas lembrem-se: não encostem na princesa e só falem com ela quando forem autorizados. Estarei a postos para agir se colocarem a princesa em perigo.

Colocou a sua enorme mão no cabo da espada de forma ameaçadora, e imediatamente a porta da parte de cima do salão luxuoso se abriu e uma mulher jovem, não mais de 30 anos, surgiu. Trajava um vestido branco com detalhes em azul. Usava uma tiara resplandecente, cujos reflexos de luz dos diamantes ornavam seu rosto com uma multiplicidade de matizes coloridos. Tinha a pele muito clara, a boca vermelha e bem desenhada, luvas alvíssimas até os cotovelos e sapatos dourados. Seu andar era elegante e seus passos vagarosos, porém firmes. Tudo nela inspirava nobreza e distinção.

Gunar, o capitão da guarda palaciana, anunciou de forma solene:

– Senhores, curvem-se diante da princesa Bélolli.


15.

A princesa Bélolli tinha em volta de si uma aura de realeza inquestionável.  Caminhava com desenvoltura e leveza, e seu caminhar transmitia autoridade. Não havia sorriso ou doçura em seu rosto; ao invés disso um olhar circunspecto e sério. Aproximou-se dos jovens viajantes e perguntou-lhes sem rodeios.

– Vocês devem saber o quanto se arriscaram invadindo meu reino. Meus guardas disseram que por pouco dois de vocês quase foram alcançados por bruxas e Espectros Negros da Floresta Màgica. Sabendo do oerigo que isso significa, somente tolos caminhariam à noite na floresta ou espiões de Astaroth.

Os jovens se entreolharam com espanto. “Como ela pode pensar que somos espiões?”, pensaram eles. Estrela ameaçou responder à princesa Bélolli mas foi interrompida com a mão espalmada à frente pela princesa.

– Por outro lado, Astaroth não mandaria espiões tão trapalhões quanto vocês. Acredito mesmo que estão perdidos, e por isso vocês estão aqui comigo. Se eu suspeitasse das suas ligações com Serge de Astaroth vocês estariam agora na barriga de Croko e Dillon.

Os viajantes engoliram em seco lembrando a imagem dos dois gigantescos répteis que conheceram no dia anterior.

João Roberto resolveu falar em nome do grupo:

– Excelência, somos apenas 3 viajantes perdidos. Fomos jogados aqui nesta terra sem entender o porquê. Estávamos no labirinto dos espelhos e acabamos na Floresta Mágica sem entender como. Chegamos no castelo depois de um dia de caminhada porque Simão nos disse que se houver alguém capaz de nos dizer o caminho de casa está pessoa só pode ser a princesa Bélolli. Não somos espiões, somos apenas viajantes perdidos que desejam voltar para casa.

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Adeus

Então subitamente ela se foi, levando consigo colado ao rosto um vinco de dúvida, uma ruga de medo e um sorriso envergonhado. Fechou a porta com pressa, deixando atrás de si, trancado comigo, seu perfume de adeus. Seu cabelo cor de mel balançava ao ritmo do desejo enquanto o sol que se punha cobria de ouro seu rosto de cristal. Depois daquele último encontro nunca mais a vi, e a saudade que deixou corrói feito zinabre. Quando voltou à noite para casa jogou sobre a mesa um boa-noite surdo junto com as chaves do carro e foi direto para seu quarto sem nada dizer. O adeus é um punhal cravado na alma.”

Sean O´Malley Jr, “The last Goodbye Forever”, Ed. Pancras, pag 135

Sean O´Malley Jr nasceu em Dublin em 1982 e passou toda a sua infância em Ballyfermot, um bairro de má reputação pela violência urbana e pelo tráfico de drogas. Seus textos iniciais, publicados em uma coletânea de sua escola – a St Dominic´s College – giravam em torno do cotidiano de seu bairro: drogas, garotas, brigas de rua, gangues e bebedeiras. Quando saiu do ensino médio e entrou para a University College in Dublin ocorreu um fato que mudou completamente sua vida e suas perspectivas: o acidente de ônibus em Hawk Cliff que vitimou 4 de seus colegas que realizavam com ele uma excursão para a praia. A partir desse acidente – e sua longa estada no hospital com fratura na coluna – resolveu trancar o curso de Engenharia de Metais e percorrer uma trajetória na literatura. Escreveu seu primeiro livro de ficção apenas um ano após deixar o Rotunda Hospital e ainda em cadeira de rodas. Este livro teve boas críticas e se chamou “The View from Above” (A vista de cima). “The Last Goodbye Forever” foi seu terceiro livro, e mistura contos, crônicas e poesia. Vive em Skibbereen com sua esposa Maggie.

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Fúria

Ele voltou o olhar para ela logo após seu desabafo. Dos olhos dela fugiam faíscas luminescentes de indignação. Não havia nenhum ensejo de paz enquanto o corpo de Adélia se projetava à frente e seus lábios cuspiam dor e ressentimento. Não pensou sequer em dar o abraço que ela tanto precisava; naquele momento de dor seus braços seriam os polos magnéticos opostos ao dela. Limitou-se a falar.

– Como poderia eu retirar-lhe o ódio, único alimento possível para sua alma sofrida? A mim não cabe criticá-lo, Adélia, apenas permitir que sua energia se gaste lentamente, como o fogo que se vai quanto mais incandesce. Impedir sua raiva é ignorar o quanto ela ainda lhe protege. Sua cólera cega lhe resguarda do seu maior medo: a culpa. Enquanto você carregar seu ódio com tanto cuidado e tratar dele com tanta ternura, sua culpa se manterá adormecida.

Lançou para Adélia seu derradeiro sorriso, e deixou para ela uma pergunta, da qual se seguiu um silêncio.

– Que direito tenho eu de despertar o monstro da sua culpa? Como permitir que o silêncio dos seus ódios faça acordar o mal que tanto esconde? Como roubar a muleta que lhe sustenta, Adélia?

Adélia ofereceu apenas o vazio como resposta.

Babette, “Adélia e outros contos”, ed Paris, pag, 135

Babette foi um escritor francês, nascido em Lyon em 1910, tendo morrido em Montpellier em 1991, em decorrência de um câncer. Na verdade, esse era o pseudônimo de Jean Michel Garrot, um jornalista e ex militar do exército francês, que escreveu por muitos anos para jornais e revistas femininas com o pseudônimo “Babette”. Foi um dos mais conhecidos escritores franceses da primeira metade do século XX. Entretanto, apesar da fama e da razoável fortuna, podia passear despreocupadamente por qualquer cidade francesa, já que sua identidade só foi revelada pouco antes de morrer. Começou escrevendo para o diário vespertino Journal de Lyon, respondendo perguntas de mulheres sobre casamento, filhos, educação e até moda. Sua formação em jornalismo, na Sorbonne, havia lhe garantido uma escrita elegante e sofisticada. Durante muitos anos manteve a sua coluna no jornal e algumas revistas femininas, até que Babette/Jean Michel resolveu se aventurar pela literatura. Para isso começou a escrever o que se convencionou chamar “pornografia feminina”, que são histórias românticas, cheias de reviravoltas, com ciúme, desconfiança, traição e a redenção amorosa que, via de regra, ocorria no epílogo de suas novelas. Passou a publicar no formato de “pocket books” nas bancas de jornal, com o nome genérico de “Babette” seguido do nome da história específica, como se fossem os capítulos de uma imensa série de narrativas. O sucesso foi rápido, e imediatamente se tornou a literatura preferida de meninas adolescentes que corriam às bancas quando havia o lançamento de uma nova edição. Babette se tornou extremamente popular e 230 exemplares foram publicados desde que o folhetim se iniciou, sendo traduzido em inglês, espanhol, alemão e italiano. As histórias eram repletas de elementos clássicos da fantasia feminina: jovens militares, homens da aristocracia, sogras invejosas, patrões maldosos, jovens pobres de bom coração e ricos perversos e traiçoeiros. Durante anos a identidade de Jean Michel foi mantida como um segredo pela sua editora, que tratava este mistério como uma peça de marketing. Em 1978 uma mulher chamada Isabelle Marie Deschamps afirmou que havia escrito as novelas de Babette, tendo alguns minutos de fama na TV francesa. Todavia a farsa durou pouco tempo, pois provou-se que ela era uma farsante, o que foi confirmado pela editora Paris, dona dos direitos autorais. A verdadeira identidade de Babette foi revelada no programa “Un nuit a Paris”, para o famoso apresentador e jornalista Maurice Lefévre. Num domingo à noite em 1988, Babette apareceu por detrás de uma cortina num estúdio de televisão e a França inteira se surpreendeu com a figura de um homem de 70 anos de idade, baixa estatura, cabelos brancos e usando óculos, que durante décadas cativou com sua escrita a atenção das meninas da França e de vários países de língua francesa. Na entrevista, Jean Michel disse que, apesar de gostar das vantagens do anonimato, era hora de revelar o segredo tão bem guardado. Naquele mesmo ano ele recebera o diagnóstico de um câncer pulmonar que, por fim, o levaria à morte poucos anos depois, e por isso achou que era o momento adequado de se revelar. Quando questionado sobre de onde retirava material para tantas histórias escritas respondeu que os anos que trabalhou como colunista de assuntos femininos no Journal de Lyon colecionou milhares de cartas de leitoras sobre seus assuntos pessoais, suas dúvidas, suas angústias e seus medos, mas também de seus sonhos, alegrias, conquistas e fantasias. “Meus livros são a mistura das histórias de milhares de mulheres, cujas vidas estão nas personagens dos meus livros, como peças de um quebra cabeças imenso e complexo”, disse ele. Jean Michel foi casado com Augustine Garrot e teve 4 filhas: Marie Claire, Dominique, Josephine e Arlene. Morreu em 1991, e está enterrado no cemitério de Montpellier.

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Uma Parábola Política

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Dois jovens entram sem camisa em uma loja, um branco e um negro em um dia de muito calor. O gerente imediatamente chama a polícia que, sem muitas perguntas, estrangula o jovem negro, usa um teaser, coloca algemas em seus punhos e quebra seus dentes com socos.

Ao jovem branco apenas pedem os documentos e o liberam.

Ao ver a cena me pergunto: porque um erro simples é punido com algemas e espancamentos? “Ora, porque é errado.” Mas estava calor, retruco… “Nada justifica. Erro é erro, e isso é uma ilegalidade“.

Ok, respondo, mas porque o negro foi espancado se o branco cometeu o mesmo “crime” é nada foi feito? “Ora, vai querer agora justificar seu erro com o erro dos outros? Ficar sem camisa em um lugar em que isso é vedado passa a ser correto porque outros já o fizeram? Não venha com essas desculpas“.

Nesse momento entram na loja outros rapazes sem camisa e eu aponto: Veja, entraram 16 jovens sem camisa na loja. Vocês não vão prendê-los, espancá-los e algemá-los?

O policial, sob o olhar atento e firme do dono da loja, responde: “Isso não é assunto meu. Não recebi nenhuma reclamação. Não me atrapalhe. Estou fazendo meu trabalho e combatendo o crime.”

Continuo a questionar, enquanto o pobre negro perde a respiração sob o corpanzil do policial que o imobiliza. Pergunto: Será justo que uma infração como essa justifique a expulsão da loja e o espancamento brutal?, ao que sou silenciado pelo dono da loja, que apressando-se à resposta do policial esclarece: “Está na lei. É constitucional. Se o policial concorda e aceita, então está correto. E quem é você para questionar a lei e a polícia?”

Sou apenas um cidadão, respondo. Mas não acho que este outro cidadão esteja sendo preso e humilhado pelo crime de andar sem camisa. Seu crime é outro. Seu crime é ser negro em um lugar onde os negros são sub cidadãos.

O negro levanta a cabeça permitindo que se veja o sangue vermelho pintando o chão da loja. Quase sem força consegue dizer:

– Estou sofrendo pela ousadia de existir e deixar claro meu direito de compartilhar este espaço. E para isso não haverá jamais perdão.

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