Censura

Agora o Facebook impõe a concepção imperialista de “organização terrorista”, que não está em sintonia com a visão do governo brasileiro. Essa é uma verdade cristalina que conhecemos há anos, desde o tempo em que o Facebook censurava imagens de amamentação baseado em concepções americanas de pudor, e não na forma como nós abordamos a naturalidade do aleitamento materno.

Isso é grave, porque o Facebook impõe censura a mando do governo americano através de suas instituições afiliadas, como Facebook e Google. Um país soberano não pode ser governado e regulado por legislações alheias à sua norma jurídica. É urgente que as redes sociais sejam entendidas pelo governo federal como concessões públicas, assim como acontece com as rádios e TVs, para que obedeçam às regras locais e não as regras dos seus países de origem. Terrorismo é o que fazem Israel e os Estados Unidos, matando mulheres e crianças, espalhando o terror e disseminando o horror e a destruição no mundo. Quem resiste a isso exerce o legitimo direito à vida e à dignidade.

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Sanguinários

Quando escuto as tradicionais acusações dos direitistas e liberais aos “ditadores” comunistas (ou não) e suas listas de mortes – cujos números são sempre criados em “freestyle” ou usando dados do instituto TireyDoku – eu exijo que qualquer avaliação da história destes personagens não ceda às pressões do anacronismo e avaliem o contexto em que estas revoluções foram estabelecidas.

Olhem, como exemplo claro, a história da China e o “século de humilhações” pelo qual passou. Anos de exploração estrangeira, repletos de abusos e o confisco de suas riquezas. Pensem nas derrotas humilhantes nas Guerras do Ópio, a pobreza do seu povo, a espoliação produzida pelos colonizadores ingleses e ficará mais fácil compreender a necessária reação para a liberdade do povo chinês. Sem entender a realidade das múltiplas invasões estrangeiras e as lutas internas fica mais complicado colocar em contexto a libertação da China em 1949 através da guerra civil e a “grande marcha” de Mao Zedong. Entretanto, a ninguém seria lícito imaginar que a entrega da China aos chineses seria feita sem os tradicionais massacres que as nações imperialistas impõem como punição aos povos dominados. É necessário também lembrar o que era a China em meados do século XX e o quanto sofreu durante a invasão japonesa, a perda da Manchúria na segunda guerra mundial e os 14 milhões de mortos que sucumbiram nessa guerra brutal contra o domínio nipônico.

Como não lembrar a história da Coreia, a ocupação japonesa, a tentativa de extermínio de sua língua, de sua história e até dos seus patronímicos? A invasão americana na “Guerra da Coreia” (ou Guerra da Libertação, como é referida na Coreia Popular) exterminou 1/3 da população civil, mandando o país para a idade da pedra com a destruição de todas a sua infraestrutura (a exemplo do que se faz hoje em Gaza) e só quando estudamos a crueldade assassina das forças imperialistas é possível entender a história de Kim Jong-Un, seu pai, seu avô, sua gente e a luta por liberdade e autonomia do povo coreano. Não é justo esquecer o que a França fez com o Haiti e com a Argélia, uma história de dominação repleta de atos da mais absoluta selvageria e covardia. Como apagar a história brutal do Congo, e os 10 milhões de mortos sob o domínio da Bélgica do Rei Leopoldo. Portanto, seria de esperar que a resistência pela liberdade em resposta à esta brutalidade só poderia ser igualmente feroz.

É preciso ter em mente que 14 nações invadiram a União Soviética durante a “guerra civil” (na verdade, guerra de independência) e isso facilita para entender a necessidade que havia de lutar de todas as formas possíveis, pois isso representava a única possibilidade de manter a unidade nacional. Que dizer dos 20 milhões de mortos da União Soviética na luta vitoriosa contra o nazismo de Adolf Hitler e o preço pago pelos soviéticos para que o mundo se livrasse do fascismo da Alemanha? Em Cuba a revolução se estabeleceu na luta contra um governo corrupto e burguês, que mantinha a ilha como um bordel americano e uma gigantesca fazenda de cana de açúcar, mantendo a população miserável, oprimida e subjugada pelos latifundiários e seu sistema semi-escravista. Por acaso estes poderosos, apoiados pelo governo americano, entregariam a soberania de Cuba para os cubanos sem luta e sem violência? Seria condenável a reação violenta de um povo que por séculos sofreu de forma desumana?

E o que falar sobre o Hamas, este partido politico e seu braço armado (a brigada Qassam) e os demais grupos de resistência palestina que lideram uma luta de 76 anos contra os canalhas sionistas, racistas e abusadores, terroristas da pior espécie, violadores e assassinos de crianças? Há como analisar suas ações, em especial o 7 de outubro de 2023, sem levar em consideração as humilhações impostas pelos invasores sionistas nas últimas sete décadas? Há como apagar uma parte da história e manter apenas aquela que nos interessa? Por acaso eram “terroristas” aqueles que atacaram a realeza na França na queda da Bastilha, criando as fundações do mundo burguês no qual hoje vivemos? Ou seriam eles tão somente os bravos lutadores que resistiram ao poder despótico e injusto da cleptocracia monárquica? E a resistência francesa que lutou contra os nazistas em Paris? Seriam terroristas aqueles que lideraram o levante do gueto de Varsóvia? Ou a história provou que eles eram lutadores pela liberdade de seus povos? Será mesmo que a independência dos Estados Unidos, libertando-se da Inglaterra, foi feita com abaixo-assinados, ou foi como todas as lutas libertárias – a ferro e fogo? Ora, não sejamos tolos e ingênuos.

Isso não significa que as guerras de libertação não contenham ações bárbaras violentas, abusivas e até criminosas. Porém, quando vejo críticas a estes eventos do passado é impossível não lembrar de Bertold Brecht: “Dos rios dizemos violentos, mas não dizemos violentas as margens que os oprimem”. Do Hamas reclamamos a fúria, mas fechamos os olhos diante dos 76 anos de massacres, torturas, assassinatos, sequestros, o extermínio de famílias inteiras, o apartheid e a dominação opressiva por parte do Estado terrorista de Israel. O mesmo se pode dizer de todos os grupos de resistência que se levantaram contra a opressão. É preciso aprender a história dos povos para entender suas lutas e seus dilemas. E por fim é fundamental conhecer os personagens que são criticados pelos reacionários para saber em qual contexto eles atuaram.

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Deus

Muitas vezes vejo pessoas falando dos ateus, seja elogiando ou criticando, mas percebo que em verdade estão se referindo aos agnósticos. Existem diferenças, ao meu ver, nas posições defendidas por ambos. O ateu (a-não, teo-Deus), via de regra, crê fervorosamente na não-existência de um criador. Acredita que o universo foi criado pelo processo expansivo brutal e violento do Big Bang, sem a interferência de uma entidade qualquer, uma “sabedoria suprema, causa primária de todas as coisas”. Já o agnóstico simplesmente não vê provas suficientes e definitivas para acreditar na existência de Deus, mas também não desacredita nela e nem a refuta peremptoriamente; ele apenas não consegue fazer qualquer afirmação sobre o tema, pela ausência de provas que atestem a existência de qualquer divindade.

A forma como imagino esse dilema é através desta simples analogia: é como postar-se diante de uma porta fechada. Diante do fato concreto – a existência de uma porta – cabe a pergunta: há alguém do outro lado? O crente diz que sim, pois se uma porta foi construída, e antes planejada, é porque ela serve de passagem e, por inferência, se há passagem alguém deve estar do outro lado. O ateu, por sua vez, afirma que não. Coloca o ouvido na porta, dá várias batidas, chama por socorro. Ninguém atende, nada se manifesta e ele conclui que não há ninguém do lado de lá. Já o agnóstico olha a porta e tenta abri-la. Não consegue, por mais que se esforce. Conversa com ambos, o ateu e o crente, e finalmente reconhece que é impossível ter qualquer certeza sobre se há alguém do outro lado – ou se nada existe para além do que nossos sentidos percebem.

Na falta de qualquer evidência conclusiva sobre a existência de uma causa primária e imaterial do universo, o agnóstico (a-não, gnosis-conhecimento) declarara-se incapaz de um veredito; a existência ou não de Deus está fora da sua capacidade de compreensão. Creio que essa definição pode ser parecida com aquela que muitos carregam consigo.

Para além disso, creio que a crença ou não em Deus – ou em um sentido último do universo, que para mim significa o mesmo – não ocorre pela via racional, mas afetiva. Da mesma forma como se dá a orientação sexual, ela não se constitui em uma opção racional, e não existe uma verdadeira escolha pela crença ou pela descrença em um Criador. Acreditar em Deus é um sentimento sustentado por alicerces profundamente assentados no inconsciente e, por esta razão, não será derrubado facilmente por uma abordagem racional. A irracionalidade dessas ideias é, em verdade, sua força mais poderosa, pois as afasta de uma derrocada pelas abordagens da lógica e da razão. Séculos de ciência explicando as origens naturais dos fenômenos que outrora acreditávamos divinos e isso não abalou em nada a crença em uma “faísca primitiva”, a força inicial, o motor primeiro para a criação do universo e das leis que o regem, apenas mudou a forma como conceituamos nosso Deus.

Para maiores informações sobre ateísmo e religião recomendo conhecer mais os “new atheists”. Comecem por Sam Harris, Christopher Hitchens e Richard Dawkins, para entender porque eles criaram uma seita niilista e islamofóbica. Aqui e aqui estão duas palestras fundamentais do jornalista Chris Hedges.

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Execução

Li hoje o texto de um psicólogo que defendeu a pena de morte para o menino de 9 anos que atacou e matou animais em um canil. Não quero tratar diretamente do crime aqui porque isso sempre mobiliza o que há de pior em nós; esse tema mobiliza muitos sentimentos primitivos, e o resultado é sempre um incentivo ao ódio. Todavia, há um preceito jurídico que diz que a sentença nunca pode se basear na voz da vítima, pois que ela estará sempre carregada de emoções obliterantes que cegam o juízo racional. Nesse caso da morte dos animais, somos todos as vítimas, e nesse momento a indignação e a empatia com os bichinhos nos impede uma análise racional e nos enche de sentimentos de indignação e ódio. Compreensível.

Entretanto, ao ler os comentários, fiquei igualmente indignado com a apologia punitivista que muitos fizeram apoiando a morte dessa criança. Sim; tanto o articulista quanto quem comentou o crime na postagem do Facebook acreditavam que o melhor seria a simples eliminação do menino. Repito, um menino de 9 anos de idade!! Acho curioso como a morte de cães num canil mobilizou mais pessoas que o massacre em Gaza, e a solução expressa por muitos foi a simples execução da criança, diante da “impossibilidade de cura dos psicopatas”. E isto foi dito até pelas mulheres, prováveis mães, que se aliaram à sentença de morte da criança. Uma delas chegou a propor prisão “perpétua” até 24 anos seguida da execução quando chegar a esta idade!!

Quando vejo esse tipo de manifestação fica um pouco mais fácil entender o bolsonarismo, que é uma espécie (ou variante) do fascismo que circula na extrema direita mas tem representantes até na esquerda. É característico dessa forma de pensamento o punitivismo irracional, tosco e vingativo, na crença de que essa ação definitiva – em especial a pena de morte – poderia trazer algum benefício social. Pior ainda é dizer que o menino “merece a morte porque não existe cura”, como se essa fosse a única razão para manter um criminoso vivo.

Lembrem apenas que defender a vida desse menino (assim como de qualquer pessoa, culpada ou inocente) não significa complacência com seus crimes, apenas a defesa da vida como bem inquestionável, acima de qualquer outra consideração social. Ao mesmo tempo, defender abertamente, como o articulista, o assassinato de um menino de 9 anos (por ordem do Estado) significa apoiar o extermínio de pessoas com distúrbios mentais – como a psicopatia – até mesmo em menores de idade. E também tenham em mente que a eliminação de pessoas com distúrbios psíquicos incuráveis foi levada adiante por um sujeito chamado Adolf, há pouco tempo, e seus seguidores ainda hoje são árduos defensores dessa proposta.

Aktion T4 (Ação T4) foi o nome usado nos julgamentos pós-Segunda Guerra Mundial para o programa de eugenismo e eutanásia da Alemanha nazista, durante o qual médicos assassinaram centenas de pessoas consideradas por eles “incuravelmente doentes, através de exame médico crítico”.

É possível compreender a indignação de todos com estes casos e ao mesmo condenar as ações punitivistas. As primeiras são fruto direto da empatia e da emoção; as segundas não podem ser contaminadas por emocionalismos ou por sentimentos de vingança. O símbolo da justiça é de uma mulher usando uma venda nos olhos, e para isso existe uma razão. É exatamente porque ela precisa ser fria, infensa às emoções e aos instintos mais irracionais; é compreensível tê-los, mas inadmissível usá-los. É compreensível que um serial killer mobilize emoções de ódio e raiva em todos nós, mas um juiz, diante de um caso como este, deve aplicar a lei, mesmo que suas emoções também estejam afetadas (o que seria compreensível, mas não justificável). É compreensível que as pessoas aceitem ações punitivistas no calor da dor e pela indignação, mas não é justificável que leis sejam feitas ou ações sejam executadas motivadas por estes sentimentos. Em suma, para crianças entenderem: é compreensível que você fique furioso com seu filho desobediente e irritante, mas injustificável que você aplique a ele uma pena incompatível com sua idade.

Quando um sujeito escreve um post público, em uma rede social, defendendo a execução de uma criança de 9 anos de idade por ter machucado bichos, isso já é – por si só – um ato de horror, já é algo terrível, já se configura uma aliança com a barbárie. Quando os políticos israelenses aceitam a possibilidade de jogar uma bomba atômica para exterminar todos os palestinos e afirmam isso na TV pública do país, isso já é um ato de terror, mesmo que não tenham (ainda) apertado o botão. O que torna tudo muito mais preocupante é que o autor do post é um psicólogo, que poderá um dia ter à sua frente uma criança que precisa de ajuda. A comoção causada por este crime não pode permitir que pessoas – em especial da área da saúde – ofereçam o assassinato como solução. E quem “passa pano” para este tipo de absurdo está no mesmo balaio fascista que tomou conta da sociedade atual.

A extrema direita vencerá as próximas 20 eleições se permitirmos a circulação desse tipo de discurso, aceitando-o como válido. Enquanto o assassinato de uma criança for tratado como opção legítima no campo simbólico de uma cultura teremos falhado em nosso projeto civilizatório. Quando aceitamos executar um menino de 9 anos em função da nossa incontida indignação, sem considerar sua pouca idade e sua mente em formação, fracassamos como sociedade.

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Animais

Eu acredito que os “defensores de animais” podem realmente ser boas pessoas, verdadeiramente preocupadas com o meio ambiente, a vida animal, a biodiversidade e a existência de todos os seres vivos. Talvez até a maioria seja composta por este tipo de caráter. Entretanto, é muito comum que sua aproximação com essas causas seja em razão de uma postura arrogante e supremacista. Defendem os animais porque detestam humanos, em especial aqueles que consideram inferiores. Não fosse por isso, por que tantos fascistas se envolvem com a causa animal?

Essa fala da Xuxa está longe de ser contra-hegemônica. Aposto como uma faixa enorme da população acha que a vida de cachorros e gatos (mas não lesmas, mosquitos e ratos; golfinhos e baleias, mas não atuns e tubarões) tenham mais valor do que a de seres humanos condenados por crimes. Por isso a naturalidade em dizer que prefere que, no lugar dos animais, sejam os prisioneiros a sofrer nas experiências médicas e/ou na busca por novas substâncias químicas aplicadas ao organismo. Essa ação seria para que façam algo de “útil” antes de morrer. Ou seja; sua existência na dependência de uma “utilidade”, e não pelo valor intrínseco da vida.

E vejam: eu e muita gente achamos que deveríamos abolir a tortura de animais com o objetivo de testar cosméticos para empresas sionistas(*), mas não é admissível que essa tortura seja aceitável se aplicada a prisioneiros – via de regra pretos, pobres e excluídos – que não tiveram a mesma oportunidade de se adaptar a esta sociedade. Tenho genuíno medo de qualquer pessoa que se diz “defensora dos animais”, porque o risco de ser um fascista travestido de “bondoso” é muito grande. Curiosamente, estas pessoas – assim como a Xuxa – têm uma autoimagem extremamente positiva, pois o fato de cuidar de bichinhos lhes oferece a ilusão de santidade.

Como diria Morpheus… “Far from it”.

(*) Clique aqui para uma lista de empresas israelenses que PRECISAMOS boicotar, por suas ações criminosas nos territórios ocupados da Palestina. Consulte esta lista do BDS para ver qual a empresa que não devemos consumir nada. Seu batom e seu “blush” podem estar contaminados com o sangue de crianças da faixa de Gaza. “Boycotting supporters of the Israeli occupation of Palestine is more important now than ever. But so many brands hide their support. Check this growing list of companies to know where you should not be spending your money or providing your service.

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Infância

Esse sujeito me bloqueou depois de me chamar de “ignorante”, apenas por questionar a selvageria de sua proposta. Não quero criar nenhuma discussão nem queimar publicamente ninguém, mas o que me chama a atenção é que esse tipo de discurso circula livremente na nossa sociedade. Numa lista de 30 ou mais comentários deste post apenas o meu questionava seu desejo de aplicar a pena capital a um menino de 9 anos. Outros comentaram que ele deveria sofrer o mesmo que causou aos bichinhos, e todos aplaudiam a justeza de uma pena violenta contra uma criança.

“No entanto, a infância não é um fenômeno natural, mas sim histórico. Ao longo da história, a infância foi compreendida de maneiras diferentes: Na Idade Média, as crianças eram vistas como “mini adultos”, com um mesmo modo de vida dos adultos. No século XVI, a infância passou a ser entendida de forma diferente, com características como dependência e obediência aos adultos. No século XXI, a criança é vista como um ser pleno, com diferenças individuais, e a ação pedagógica deve reconhecer essas diferenças.”

Portanto, o reconhecimento da infância como período de construção da personalidade foi um passo essencial do desenvolvimento da civilização. Aplicar sobre crianças julgamentos e penas que são aceitáveis somente para adultos com plena consciência dos seus atos não tem outro nome que retrocesso civilizatório ou barbárie. Aceitar que alguém escreva um texto de exaltação da pena de morte para crianças é igualmente um ato criminoso, mas por inação pusilânime, e isso não consigo fazer.

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As lágrimas de Warren

Quadro de Robert Hinckley sobre os acontecimentos de 16 outubro 1846

Na manhã daquele dia, no distante 16 de outubro de 1886, Gilbert Abbott – um homem tuberculoso que vivia em Boston e que ostentava um vistoso tumor submaxilar – sentou-se em uma cadeira de couro vermelho pensando que aquele poderia ser seu derradeiro dia de vida. Em seu rosto pálido parecia não correr uma gota sequer de sangue quando encarou, à sua frente, a equipe cirúrgica que se aprontava para efetuar a operação de retirada da tumoração. No centro da equipe, ladeado por nomes como Gould, Townsend, Bigelow e Hayward estava John Collins Warren, um dos mais famosos cirurgiões dos Estados Unidos à época. Gilbert Abbott sabia que seu sofrimento poderia ser excruciante, talvez fatal, mas por certo não seria demorado: uma quantidade imensa de dor concentrada em alguns poucos minutos, se tanto. É importante entender que em meados dos século XIX as cirurgias eram necessariamente muito rápidas, pois a velocidade dos cortes era o que permitiria a possibilidade de sobrevida. Os cirurgiões eram verdadeiros “açougueiros”, hábeis na capacidade de cortar os tecidos e serrar ossos com precisão e rapidez. Não havia tempo a desperdiçar; amputações de membros inferiores, em geral por gangrena, eram realizadas em 30 segundos, “pele-a-pele” – habilidade preciosa que tornou famoso o cirurgião escocês Robert Liston. Eram homens embrutecidos pelo trabalho com a dor, o sofrimento e a morte. Tinham um aspecto sujo, grosseiro e bruto e suas ações eram marcadas pela frieza e por um temperamento impávido.

Naquele diz um ator diferente havia sido aceito para participar da cena cirúrgica. O dentista Thomas Green Morton estaria disposto a demonstrar os efeitos sedativos de uma substância que havia experimentado com sucesso na sua prática de odontologia, quando conseguira extrair dentes de pacientes sem que estes experimentassem dor. Para isso uma grande plateia se preparava para assistir a apresentação, ainda que a maioria acreditasse em um retumbante fracasso e um vexame para seus protagonistas.

– Em nossa próxima cirurgia utilizaremos uma substância preparada por um certo senhor Morton, a qual ele atribui a capacidade de tornar insensíveis à dor aqueles que a aspirarem.

As palavras de Warren eram pura arrogância e incredulidade. Na sua visão até então, esses sujeitos e suas “novidades” nada mais eram do que embusteiros, picaretas, farsantes e aproveitadores da credulidade pública. Na plateia de médicos e estudantes ouviram-se risos quando do anúncio. Como ousava alguém abolir a sensação dolorosa que nos foi oferecida pelo Criador como castigo por nossos pecados mortais? Quem poderia ter a pretensão e a ousadia de mudar o que de humano existe em cada dor, cada sofrimento? O clima estava preparado para o deboche, o escárnio e a humilhação pública do pobre dentista; os presentes estavam prontos para uma ruidosa gargalhada.

Thomas Morton aproximou-se e perguntou ao paciente Abbott se ele estava com medo, ao que ele respondeu negativamente. Aproximou dele o globo de vidro repleto de éter sulfúrico (ou éter etílico), substância que era conhecida pelos trabalhadores dos circos há muitos anos como “gás hilariante”, muito usado em suas apresentações. Acercando-se de Abbott, trouxe a cânula para perto de sua boca, pedindo que aspirasse vigorosa e profundamente. “Vai tossir um pouco – avisou – mas logo passa”. Em poucos instantes os lábios do paciente se afrouxaram; logo após os braços penderam ao longo do corpo e perderam o tônus. A mandíbula afrouxou e Abbott passou a dormir como um cordeirinho. Morton voltou-se para John Warren e exclamou, pela primeira vez confiante:

– O paciente está à sua espera, Dr Warren

Deixo aqui a descrição do livro “O Século dos Cirurgiões“, de Jürgen Thorwald, sobre os fatos testemunhados por aqueles que se acotovelavam na arquibancada da sala de cirurgia do Hospital Geral de Massachusetts na histórica data de 16 de outubro de 1846:

“Warren curvou-se em silêncio para Abbott. Impassível como sempre, arregaçou os punhos, tomou o bisturi. E logo, com um movimento fulminante, desferiu o primeiro golpe. Fizera-se na sala silêncio absoluto; ouvir-se-ia perfeitamente a menor manifestação de sofrimento, um gemido, um suspiro. Porém, o paciente não se movia, não se defendia. Perturbado, pela primeira vez, Warren curvou-se mais sobre o operado, praticou a segunda incisão, a terceira, muito profunda. Dos lábios de Abbott não saiu um som. Warren extraiu o tumor. Nada! Nem um ai! Warren cortou as últimas aderências, colocou a ligadura, passou a velha esponja, para limpar o sangue…

E nada… só silêncio… sempre silêncio…

Warren endireitou-se, empunhando ainda o bisturi; estava mais pálido que de costume e o trejeito sarcástico desaparecera dos seus lábios; faíscas saíam dos seus olhos, cheios da luz do prodígio misterioso, inconcebível e, até instante atrás, inacreditável …

– Isto – pronunciou afinal o grande cirurgião – não é nenhum embuste…

De improviso, nas suas faces engelhadas, ressequidas, cintilou um brilho úmido. Warren, o soberbo, o lacônico, o coração empedernido, Warren o homem avesso a toda manifestação de sentimento, chorava.”

Mais de 178 anos já se passaram desta cena memorável, inaugurando a era da cirurgia moderna e o uso da anestesia como elemento indispensável em todo o procedimento cirúrgico, livrando a humanidade de uma história de milênios de dores e sofrimentos. A partir desta data, a possibilidade de corrigir o corpo humano através da invasão pelo bisturi passou a ser uma realidade. Também a partir desse momento, inaugurou-se o nascimento cirúrgico moderno, em que a sobrevida de ambos, mãe e bebê, se tornou a norma. Todavia, se é lícito questionar os abusos desta cirurgia nos tempos atuais, também é justo saudar essa incrível façanha do gênio humano. Aos médicos e a todos que se dedicam a minorar as dores daqueles que sofrem, nossa homenagem.

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Vingadores do presente

*atenção: contém spoilers*

Finalmente pude assistir com meus netos um dos meu filmes prediletos de ficção científica: Total Recall (no Brasil, “Vingador do Futuro”), da dupla Arnold Schwarzenegger – Paul Verhoeven, clássico que já completou 30 anos de idade. O filme se passa num futuro não muito distante em que o planeta Marte foi colonizado e suas minas de minério são exploradas por uma empresa privada da Terra, controlada a mão de ferro por um tirano chamado Cohaagen. No planeta as pessoas vivem enclausurados em uma redoma onde o oxigênio é racionado, o que, ao lado das péssimas condições sanitárias, produziu uma legião de seres mutantes. Por causa do sistema opressivo sobre a classe operária de Marte, criou-se uma força de resistência liderada por um mutante de nome Kuato, que vive na barriga de um outro sujeito (um esconderijo perfeito).

O filme lida com uma questão filosófica extremamente interessante: é possível mudar a essência de um sujeito? Seria possível mudar o caráter de um indivíduo, através de drogas, cirurgias, reprogramações, etc? O personagem Douglas Quaid (Arnold Schwarzenegger) anteriormente se chamava Hauser e era um escroque, um canalha amigo do governador corrupto de Marte. Através de um tratamento de “férias mentais” pela empresa “Rekall Inc.” ele se submete a uma transformação mental para se esquecer de sua personalidade passada e assumir uma nova, tornando-se um militante idealista para, infiltrado entre os insurgentes, poder se aproximar do líder dos rebeldes marcianos. Nesse processo, apaixona-se por uma mutante marciana chamada Melina. Tendo o líder mutante sido descoberto e morto, é hora de desfazer o processo e fazer Quaid (o idealista) voltar a ser Hauser (o infame e mesquinho braço direito de Cohaagen). Quando revelam a Quaid quem ele era no passado – alguém desprezível, interesseiro e egoísta – o novo sujeito se nega a retornar à personalidade anterior. Luta contra toda malta de corruptos de Marte, mantém sua nova “persona idealista” e libera a máquina alienígena que inunda o planeta de oxigênio, desta forma “terraformando” o planeta vermelho. Nesse processo salva os rebeldes da morte por sufocamento e fica com a morena bonitona.

Eu não entendo como é possível assistir esse filme e não se identificar com os rebeldes explorados, os sofridos operários de Marte, com suas mutações grotescas, falta de recursos, cicatrizes horrendas, degradação social e falta de oxigênio. Mesmo sendo a força motriz que produz a riqueza do planeta (o minério extraído) viviam enjaulados, expostos à radiação, enclausurados em seus guetos, sem direitos e sob o controle dos poderosos capitalistas. Sem o saber, Philip Dick, que escreveu o livro em que o filme se baseia, descreveu a situação de Gaza atual, onde o planeta Marte é a Palestina ocupada e os tiranos sionistas matam e aniquilam sem qualquer consideração pelas vidas humanas. Para os opressores e colonizadores “os mutantes/palestinos não são como nós, os escolhidos; deixe-os sufocar até a morte”.

Durante a rebelião pela libertação do povo marciano por certo que houve mortes de soldados do exército de Cohaagen, nas lutas entre o poder tirânico e as milícias dentro dos túneis de Marte, mas fica fácil entender que os rebeldes tinham o direito de lutar por sua liberdade e sua dignidade. A reação dos oprimidos é vista como natural e justa, por mais que se lamente as mortes que ocorrem. No final todos respiramos aliviados pela libertação dos oprimidos e a derrota dos colonizadores sem escrúpulos. Por isso é difícil para mim entender quem ainda critica a resistência Palestina e prefere que a força brutal dos colonizadores racistas vença a guerra. Como conseguem se identificar com os guerreiros pela liberdade na ficção e não conseguem enxergam a mesma dinâmica na realidade, vendo a resistência do povo massacrado há 75 anos na Palestina ocupada? Roger Waters tem razão em criticar os fascistas que vão ao seu show. “Cantaram minhas músicas por anos e nunca entenderam nada”. Pois eu digo que estes que ainda apoiam o Estado terrorista e racista de Israel ainda não entenderam nada sobre dignidade e luta de um povo.

PS: nem falei da Sharon Stone como a vilã mais gostosa da história da ficção científica.

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Esquerda festiva

Eu fui um dos que nunca engoliu o discurso direitista de ambos. Houve um tempo em que atacar Olavo de Carvalho, Temer, Bolsonaro e o bolsonarismo era visto como o selo de qualidade do esquerdista. Fomos enganados por figuras como Karnal, Prioli e Bugalho e outros menos importantes, fazendo-nos crer que seu combate aos fascistas tinha conteúdo revolucionário. A foto de Karnal elogiando o juiz Moro e os ataques sistemáticos de Bugalho aos socialistas mostraram sua verdadeira essência: pensadores sem criatividade que surfaram na onda da luta contra os golpes que atingiram o Brasil vindo das franjas mais reacionárias da nossa população. Hoje a gente percebe que a turma da esquerda liberal, que cultua o “fim da história”, que acredita na potencialidade do capitalismo, que usa teses moralistas para atingir os bilionários (ao invés de olhar a estrutura que os cria e sustenta) e que prega a “reforma íntima” (e não sistêmica) para a cura da iniquidade, são os mais fiéis combatentes contra o projeto socialista e de qualquer outra reforma estrutural na sociedade capaz de produzir reais transformações na distribuição de renda. Esses personagens midiáticos são a esquerda que a direita gosta, promove e estimula. A cena constrangedora que apareceu essa semana na Internet demonstra que o que eles sempre quiseram era essa exposição chula e as luzes da ribalta, em especial dos identitários. Essas pessoas deveriam ficar onde seria mais justo: na direita, onde suas teses serão sempre acalentadas e aceitas.

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Idolatrias

Esta seria a imagem de Maria, mãe de Jesus, uma palestina analfabeta que nasceu num lugar extremamente miserável na periferia do Império, na Palestina ocupada por Roma. Ela foi descrita por Chico Xavier e transferida para a tela por um artista mineiro. Como pode ser constatado, é uma Maria europeia e ariana, tão branca quanto as imagens do Jesus germânico que ainda percorrem o imaginário, difundidas pelo cinema. É fácil constatar que o espiritismo, como toda seita cristã que se preze, embarca na canoa do embranquecimento dos palestinos, aceitando como fato uma Maria que em NADA se parece com as mulheres extremamente pobres das populações palestinas de dois milênios passados. Esse trabalho do artista Vicente Avela, baseado na descrição pormenorizada de Chico Xavier, me faz lembrar o apoio explícito do grande médium mineiro à ditadura militar de 1964. Tanto a descrição europeizada de Maria quanto o apoio ao golpe militar de 64 são a comprovação de uma dessas teses excludentes:

1- Os fenômenos mediúnicos de Chico são derivados do mais puro “animismo”, ou seja, criações do próprio espírito encarnado, que transfere para os seus escritos as suas próprias ideias, perspectivas, visões de mundo, seus preconceitos, seu talento, sua cultura e seus erros conceituais. Seriam a expressão clara de Francisco Xavier, e não mensagens de espíritos desencarnados que se comunicavam com este plano. Ou seja: o apoio a uma ditadura brutal e a noção de uma Nossa Senhora bonita, delicada e de pele alva – contrastando com o que se esperaria de uma Palestina miserável que viveu há 2 milênios – seriam fruto das ideias próprias de Chico Xavier, e não fenômenos “extrafísicos”. Outra perspectiva seria…

2- A espiritualidade que nos rodeia, e também ao Chico Xavier, seria tão afeita a estes erros – uma Maria ariana e a venda nos olhos diante da selvageria de uma ditadura militar – quanto qualquer sujeito inculto, xenofílico e eurocêntrico, sem nenhum diferencial de ordem intelectual ou moral. Os espíritos, apesar de estarem do “lado de lá”, não teriam vantagem alguma quando comparados a qualquer ser humano encarnado de sua época. Ou seja: se são tão iguais à nós, fica difícil entender a razão pela qual insistimos em escutar seus conselhos. Por que faríamos isso se basta olhar para o lado em uma mesa de bar para escutar algo de igual sofisticação?

Eu, pessoalmente, fico com a segunda explicação. O entorno espiritual deve ser por demais semelhante ao que temos aqui. Os personagens desencarnados devem cultivar dúvidas semelhantes às nossas, e cometem erros que conhecemos bem. A diferença, se houver, se limita à percepção alargada da vida espiritual – e não muito mais do que isso.

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