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Dê a eles brioches

Uma história curtinha contada pela Ana Cris, mas que encerra bons ensinamentos sobre como funciona o pensamento biomédico.

“Diálogos surreais – esse entre uma obstetra humanista e um anestesista do plantão.

O que é esse negócio de balão?

Estou induzindo um parto, mas ela tem cesárea prévia, por isso usei esse balão que ajuda a preparar o colo.

Ué, e por que não pode fazer uma cesárea?”

Já eu acho que seria possível fazer uma tese de doutorado baseando-se na pergunta inocente deste anestesista. Em verdade, toda uma cosmologia se encerra neste questionamento que deixa explícita a incapacidade do médico em questão de enxergar do que estamos falando. Não à toa a pergunta veio de um anestesista, o profissional responsável por obliterar os sentidos e cujos pacientes são absolutamente passivos e inertes. Seria, por óbvio, o último a entender o que seja protagonismo e porque tanto o valorizamos.

Essa cena lembra duas outras. A primeira, Maria Antonieta ao responder um seu ministro que desse ao povo brioches, quando avisada que lhes faltava o pão e a fome destruía as famílias francesas. Não era desdém, era a incapacidade de enxergar para além da bolha palaciana.

A outra cena aconteceu comigo ha 25 anos no hospital da Brigada Militar numa reunião privada com o diretor do hospital, um pediatra de carreira. Dizia-lhe eu da importância de manter a equipe de enfermeiras obstetras no plantão como estratégia para diminuir o exagero nas indicações de cesariana. Ao ouvir minha inconformidade com as taxas elevadas de cirurgias ele exclamou:

Nao entendo o que chamas de “exagero”. Digo-lhe que em 26 anos atendendo salas de parto nunca vi uma cesariana ser mal indicada.

Duvido que essa frase, como a da Rainha francesa, tenha sido pronunciada com escárnio ou deboche. Nada disdo; era mesmo pura ignorância, mas uma falta de conhecimento que se assentava sobre o pilar fundamental que sustenta a prática da maioria dos profissionais que atendem o nascimento: a crença na incapacidade da mulher de parir com segurança e a aposta na suprema fragilidade dos recém-nascidos. Ambas, erros da natureza madrasta, só podem ser corrigidas pela intervenção fálica da tecnologia, mesmo que o preço seja a expropriação do parto de quem sempre o teve como seu.

Claro é que estas são construções que se fazem durante o “rito de passagem” do treinamento médico que ocorre desde o primeiro dia de aula até os últimos instantes da residência. Um saber subliminar, pervasivo, não expresso mas que contamina todo o olhar profissional. Algo de tamanha intensidade que coordena as ações, atitudes e o próprio entendimento sobre os pacientes.

Ao dizer “por que não faz uma cesariana” o profissional expressa de forma holofrástica todo um conceito relacionado não apenas à superioridade da tecnologia sobre a natureza, mas também a questão de gênero – pulsante e onipresente – que permeia toda a decisão médica sobre o corpo das mulheres.

A mesma incapacidade de responder ao pediatra do hospital da brigada eu tive nas vezes em que anestesistas me perguntavam (em suas infinitas variedades) a questão “o que está esperando para operar?”

Sem entender a transcendência de um nascimento e a imponderabilidade dos afetos e significados envolvidos não há como explicar a importância de garantir à mulher o direito de parir por suas próprias forças. É exatamente nesses espaço, neste vão de olhares, que se insere a humanização do nascimento, que vai mostrar sentido onde muitos enxergam apenas capricho.

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Objeção de consciência

Caríssima Melania Amorim, eu não sei até que ponto o argumento da “objeção de consciência” pode ser usado, mas acho que esta discussão pode ser levada adiante. Talvez seja o momento de se debruçar sobre o tema.

Eu entendo que a situação atual das cesarianas a pedido também é responsabilidade do movimento de humanização e do nosso discurso (justo) de garantir autonomia para que as mulheres façam suas escolhas. Nosso esforço foi mostrar que o parto precisa levar em conta direitos reprodutivo e sexuais, e que o olhar sobre as gestantes não pode mais ser objetual, onde elas não passam de meros “contêineres fetais”, desprovidas de protagonismo e autonomia.

Entretanto, todos sabemos que as opções pela “cesariana milagrosa e indolor” não são verdadeiras pois tais escolhas são condicionadas fortemente pelo ambiente cultural onde estão inseridas. Numa sociedade sob a vigência do “imperativo tecnológico” e onde as opções pelo natural (comida, ambiente, sexualidade, nascimento, morte) são vistas como “reminiscências de um passado de primitivismo e privação“, é compreensível que mulheres façam escolhas baseadas na (des)informação que recebem de seu entorno. Mais ainda; como já dizia Simone Diniz, muitas mulheres optam pela cesariana para fugir do desamparo e da humilhação a que são submetidas no sistema de saúde. “Partos violentos para vender cesariana“.

Por isso estas escolhas NÃO SÃO livres, mas constrangidas pelas vozes de autoridade de profissionais tecnocráticos que baseiam suas decisões muito mais em função do seu próprio conforto e sua auto proteção do que no bem estar de mães e bebês e com base em evidências científicas.

Oferecer a escolha entre cesarianas e partos violentos conduzidos por profissionais despreparados e impacientes é a demonstração mais cabal da perversidade do nosso sistema. A mesma mão que autoriza a escolha pela cesariana (em nome da liberdade) é aquela que proíbe partos fora do controle patriarcal da medicina, ataca parteiras e doulas e persegue obstetras humanistas (em nome de uma pretensa “segurança”).

Talvez seja necessário agora reforçar um velho adágio que eu usava há muitos anos: “O empoderamento das gestantes não significa o desprezo à autonomia do profissional.” Sem um parteiro livre para tomar decisões embasadas trocaremos uma opressão por outra, com resultados igualmente ruins. Objeção de consciência pode ser um caminho e uma alternativa a este dilema.

Não há nenhuma liberdade quando somos obrigados a escolher entre duas imposições violentas e ruins. A pior face da opressão é quando ela vem travestida de autonomia.

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Cesarianas e classe social

Durante os anos 90 eu atendi um parto, num hospital de periferia, que eu nunca esqueci pelos seus significados sobre o dilema das cesarianas. Os pacientes deste hospital eram egressos de uma vila popular muito pobre do cinturão que cerca Porto Alegre. No entanto, este parto em especial, era de uma família levemente mais abonada. Não traziam nas roupas ou nas palavras os estigmas da pobreza que eu estava acostumado a ver em quase todas as outras famílias que procuravam o centro obstétrico. O pai do bebê a nascer estava presente e a gestante tinha um pouco mais de idade do que a adolescência habitual.

Depois de admitida em trabalho de parto inicial o esposo me chamou para falar. Perguntou, de forma respeitosa e com palavras bem escolhidas, como estava sua esposa e o que deveria esperar para as próximas horas. Eu lhe respondi que estava tudo bem e que o parto só deveria ocorrer em várias horas. Ele aquiesceu com a cabeça e me cumprimentou, avisando que iria embora e voltaria mais tarde. Voltei para minha sala, mas antes que eu pudesse fechar a porta ele bateu no meu ombro e disse:

– Desculpe, doutor. Esqueci de dizer que, se precisar fazer uma cesariana, dinheiro não será o problema. Somos pobres, mas temos condições de arranjar o que o senhor cobrar.

Expliquei a ele que aquele era um hospital público, e que nenhum tipo de pagamento era necessário, muito menos permitido, mas que ele tivesse confiança que tudo faríamos de melhor para sua esposa e seu bebê. Porém, aquele homem assustado havia me mostrado que o parto normal de sua esposa significava não uma opção pela segurança e pelas boas práticas – o que verdadeiramente é – mas a submissão a um modelo imposto pela sua condição de pobre. As cesarianas ocupavam em seu imaginário “aquilo que se pode escolher quando se é de outra classe“.

A raiz da epidemia de cesarianas no Brasil está na divisão de classes. As pessoas não fazem escolhas racionais nesse campo. Muitos casais compram um convênio médico logo após casarem apenas para serem atendidos de forma “diferenciada” no parto. Cesarianas servem como símbolos de status que a classe média utiliza para se afastar do que significa ser pobre, “a quem não cabe escolha“. Para mudar esta tragédia no Brasil é fundamental mudar a imagem que todos temos da cesariana e do parto normal, desvinculando a escolha cirúrgica de uma opção pela segurança e como emblema de ascensão social.

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Golfinhos

Lembrei por ocasião do debate sobre a exaltação da “cesariana salvadora” e os “malefícios do parto normal” da velha história dos “bons golfinhos”. Uma historia sobre viés de percepção….

Há um mito que conta que os golfinhos são bons e que tem o costume de empurrar os náufragos para a praia. Vários relatos existem de pessoas salvas por golfinhos depois de barcos virados. A fama desses mamíferos sempre foi positiva entre nós e estas histórias sempre reforçam essa percepção. O problema surgiu quando, mais recentemente, se observou a ação dos golfinhos a partir de um helicóptero durante um naufrágio.

O que se viu foi surpreendente. Os golfinhos, em verdade, brincam com as pessoas e as empurram para QUALQUER lado – inclusive para longe da costa – mas só aqueles que – por sorte – são empurrados para praia sobrevivem para contar a historia. Daí ocorre a boa fama de salvadores que, como pode se ver, não é merecida. As mortes causadas pelo brincalhões aquáticos nunca foram computadas a eles, pelo menos até sabermos a verdade.

O mesmo ocorre em muitas situações do parto. Nos “sequelados do parto normal” a culpa só pode ser do parto, da natureza cruel, da “vagina dentada destruidora de crânios” e dos profissionais relapsos que “nada fizeram” mesmo tendo a “tecnologia salvadora” à mão. Nos sequelados da cesariana houve, por certo, uma fatalidade. Afinal “fizemos tudo o que podia ser feito“. Como se poderia culpar o uso da tecnologia se ela é o sustentáculo da emergência e hegemonia do saber obstétrico sobre a parteria?

Sem entender essas armadilhas psicológicas jamais fugiremos da fatalidade do “imperativo tecnológico” que nos obriga à intervenção pela crença cega na IDEOLOGIA tecnocrática.

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Antropologia do Nascimento

Homo erectus man. Model of a male Homo erectus, an early type of human. Homo erectus, or erect man, lived between roughly 1.8-0.3 million years ago and originated in Africa. They were the first humans to leave Africa, reaching Asia and possibly southern Europe. H. erectus had prominent brow ridges and a projecting face, and some specimens had brain volumes of over a litre. They stood upright, being a bit shorter than modern humans, but more heavily-built. They were nomadic hunters and gatherers. This model, from an exhibition by Nordstar, was photographed at the Naturkundemuseum in Stuttgart, Germany.

A tese sobre a inadequação evolutiva das cabeças fetais é do Michel Odent, mas não tem nada a ver com bebês grandes ou comorbidades, ou mesmo com mães diabéticas que engravidam. Ela tem o ver com os limites do crescimento encefálico e o fim da barreira que se criou ao longo dos milênios para obstaculizar seu aumento. É simples de entender. A gestação humana foi abreviada exatamente por causa do crescimento cerebral. Por isso a exterogestação e o crescimento fetal fora do útero. Essa “fetação” se tornou obrigatória pela pequenez pélvica (relativa) e a duplicação do volume craniano com o surgimento do gênero “homo”. Assim sendo, uma criança que tivesse cérebro maior teria que nascer antes da maturidade neurológica, sob pena de entalar e morrer. Isso criou a altricialidade – dependência extremada do outro – e a humanidade desejosa e sofredora como a conhecemos.

Todavia, se a “penalidade” (a desproporção e a morte) para cabeças maiores for retirada através do recurso cirúrgico – a cesariana – os genes ligados a esta característica podem passar às gerações seguintes e imprimir um novo padrão, tornando paulatinamente mais difícil, doloroso e até impossível o parto normal.

Os animais artificialmente construídos geneticamente como os buldogues ingleses já sofrem dessa desproporção, tornando a cesariana um recurso muito necessário. Este é um caso em que a troca genética não natural apressou o processo, mas que na espécie humana poderia ocorrer em um futuro não muito distante.

Isso não tem nada a ver com bebês gigantes por alimentação inadequada. Em uma população de veganos com IMC padrão, mas que usa cesariana como recurso salvador, isso também tenderia a ocorrer, mas não se trata de condenar a operação de extração fetal nesses casos, apenas uma ponderação sobre o destino sombrio e/ou incerto do parto humano.

A questão é que nós interrompemos o curso natural, o caminho da natureza. Sabe porque existe diabete tipo I no mundo? Por causa da insulina!!! Se não houvesse insulina a maioria dos diabéticos morreria ainda criança, antes de ser capaz de se reproduzir, e assim não passaria adiante seus genes. A insulinoterapia permite uma vida praticamente normal para estas pessoas e com isso são competentes para atingir a maturidade sexual e manter os genes da diabete no pool genético da humanidade.

Com a cesariana a mesma coisa. Imagine um feto que tenha genes para nascer mais tarde, uma gestação mais prolongada, e com isso desenvolver uma cabeça ainda maior. Se isso acontecesse há 100 anos morreria, mas agora sobrevive. Um cabeçudo nascido de uma gestação de 43 ou 44 semanas. Ele tem genes mutantes que deixam sua cabeça maior no útero, mas não é “penalizado” pelas leis de adaptação. Com isso poderá transmitir essa tendência aos seus descendentes, da mesma forma como o foi com a bipedalidade há 5 milhões de anos passados.

Mais uma vez, não se trata de condenar os recursos salvadores da medicina. Salvamos diabéticos de uma morte precoce e os fetos com desproporção ainda mais precocemente. Mas é importante saber o preço que pagamos. No diabete é bem claro, mas os “cabeçudos” podem ser o fim do parto como nós o conhecemos dentro de alguns milhares de anos.

Resta repetir a pergunta: o que será da humanidade quando nenhuma criança mais nascer do esforço de sua mãe?

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Defesa da própria cesariana

Cesariana

“A defesa da cesariana pelas mulheres que se submeteram a ela nada mais representa do que a proteção que estas fazem do sentido último da sua sexualidade. Por isso esta defesa frequentemente oscila entre a paranoia e a fúria.”

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A Cesariana da Celebridade

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Mais um pouquinho sobre as críticas à cesariana da cantora Sandy…

Bem… Muitas ativistas exageram mesmo, mas isso é normal quando se luta por ideias. Eu já sofri na carne o ataque de algumas pessoas por ter uma postura mais aberta nas questões feministas, mas entendo que seja normal o exagero diante da barbárie da condição da mulher. Como diria John Lennon, “A mulher é o negro do mundo”. Como não perder o rumo diante de tanta energia para a mudança? A injustiça, mesmo condenável, tem um sentido, que é a transformação social. Mas essa energia precisa ser domada e controlada, para que não sirva de armamento contra pessoas que fazem suas escolhas, certas ou não.

Mas a proposta de não atacar as escolhas das “celebridades” me parece adequada. Acusar as mulheres que fazem cesarianas é continuar a agredir a vítima, e isso não podemos admitir.

A escolha pela cesariana é triste, mas é uma escolha como tantas outras que fazemos na vida. Mulheres que “escolhem” cesarianas sofrem do que eu chamei anteriormente de “violência ideológica”. O mesmo tipo de violência silenciosa que fazia as chinesas esmagarem seus pés para deixá-los pequeninos e delicados. O mesmo tipo de agressão ideológica que faz mulheres escolherem cesarianas por acreditarem que elas são “limpas, civilizadas, indolores e seguras”. Também se expressa na pressão que as meninas sofrem para ter um corpo magro e perfeito, até que a anorexia as conquiste. É também aquela usada contra mulheres que optam pelo parto normal. De longe parece mesmo que estas mulheres fizeram escolhas: malhar, comer pouco, esmagar seus pés ou abrir o ventre para extirpar um bebê, mas quão livres terão sido elas? Que tipo de pressão foi exercida para que elas tomassem estas decisões? Que carga tiveram elas que suportar – psicológica, emocional, física – para optar por um caminho com a qual não concordamos? Afinal, quem atira esta pedra?

É o que penso: que tipo de forças houve em cada caso de cesariana a ponto de fazer uma mulher esquecer sua escolha anterior pelo parto normal e refugiar-se na cirurgia? Culpá-la por ter sucumbido a estas pressões não é justo. Precisamos cultivar uma postura compreensiva, onde o parto será exposto como uma forma segura, tranquila e bonita de parir, mas jamais um modelo imposto por um grupo fechado em sua ideologia. Para isso já temos os cesaristas…

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A Outra História das Almas Apressadas

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A história deste texto está conectada com o capítulo “Das Escolhas” do livro “Entre as Orelhas – Histórias de Parto”. Nele ofereço outro olhar sobre a cena descrita; ao invés do drama médico das escolhas e dos caminhos possíveis, a perspectiva dramática da mulher que sofre a dor de um nascimento fora de hora. Desta forma pretendo fechar o círculo de possíveis olhares de um evento triste, mas que ao mesmo tempo nos ensina tanto sobre as fragilidades da vida e as escolhas que fazemos.

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A decisão está tomada, e as rodas mal azeitadas da maca guincham pelo corredor estreito, driblando macas, cadeiras, enfermeiras e passantes. Para ela o mundo repentinamente se transforma em tetos mofados e luminárias sujas, que passam diante de sua face pálida como um filme antigo. Os olhos sequer se mexem. Fixos no alto, apenas aguardam a entrada no centro cirúrgico para voltarem a piscar.

O cheiro das limpezas, o brilho ofuscante de mil luzes, o som dos metais tilintando nas mesas e as rodas que param de guinchar lhe anunciam a chegada à sala de operações. Com esforço ajusta seu corpo cansado na mesa cirúrgica, auxiliada por pessoas sem nome, sem fala e sem rosto. Pendurado no braço o manguito; na dobra descorada do cotovelo a fina agulha penetra, por onde escoa um líquido cristalino. No teto a roda luminosa se acende, e pôde ver seus múltiplos rostos aflitos refletidos nos anteparos vítreos das lâmpadas.

Mantém-se em silêncio devocional, como se qualquer som quebrasse uma norma da qual não saberia a razão. Apenas obedece maquinalmente as ordens que lhe são dirigidas. “Vire-se para este lado”, diz um senhor mascarado de voz grossa, enquanto a enfermeira aperta seu queixo contra o peito desnudo. “Não respire. Se você ficar bem quietinha termino bem rápido”. Sente um choque elétrico a lhe percorrer a coluna e retesa o corpo em resposta, mas em seguida percebe as sensações paulatinamente desaparecendo. Dividida ao meio, seu corpo de baixo para e dorme; o corpo de cima silencia e espera. E reza.

Depois as higienes, os panos, as frases desconexas que lhe chegam aos ouvidos. Palavras cruzam a sala sem que delas se capte o sentido. Apenas o medo, como um código secreto compartilhado, percorre as almas da sala.

Então o silêncio. Por alguns instantes todos estão imóveis. Nada se ouve. Finalmente a lâmina grave fere a carne, abre o espaço, penetra. Depois disso, apenas o “bip” das máquinas quebra a monotonia sonora. Pequenos estalidos se seguem. Dos presentes, nenhum som, sequer uma expressão. A luz intensa cega, o tempo fica estanque. As camadas da carne rubra vão sendo abertas, uma após a outra, até que a nave uterina, com sua cor rosada e brilhante, aparece diante do brilho ofuscante do foco de luz. Ali, no casulo aconchegante de veias e membranas, repousa nosso herói.

Um, dois, três cortes precisos da navalha fria. O amnionauta, encerrado em seu mundo de sonhos, nem percebe que seus devaneios de sons e luzes tênues serão interrompidos pelo nosso chamado. Um último corte e chegamos no interior da diminuta esfera. Pela translucência das camadas, que envolvem o universo ínfimo do pequeno ser, podemos ver que ainda dorme. Com um golpe derradeiro e definitivo, rompemos a bolsa, e os panos verdes que cobrem a nudez se escurecem com o líquido amniótico que escorre sem pudor.

É o tempo de nascer.

Dois ou três movimentos e a cabeça salta para fora da ferida. “Desculpe, amigo. Não era seu tempo, mas foi preciso lhe resgatar”. Seu corpo miúdo escorrega para a sala e para o mundo, deixando como rastro o frágil fio que o liga à placenta. As mãos enluvadas suportam o corpo esquálido que, de tão frágil, mal pesa. Ao invés da pele uma fina camada transparente róseo-violácea. Ao invés de cabelo, uma tênue penugem que mal lhe cobre a cabeça. Recém saído do ventre materno ele abre os braços e por um instante parece procurar algo. Ou alguém. Sua expressão é de dor e angústia, a mais antiga de nossas emoções. “O que faço aqui? Porque interromperam meu sono?” pergunta-se. Seus dedos finos e azulados abrem-se e procuram agarrar a luva ensanguentada. Ele contrai seu corpo minúsculo, estende mais uma vez os braços enquanto aguardamos ansiosos os primeiros sons. Sofre, pela primeira vez, a dor do excesso de espaço. “Onde está minha mãe, que me envolvia e acalentava desde quando minhas primeiras células se dividiram? Onde está aquela que tocava com doçura cada pedaço do meu corpo? Abro os braços e só o que agarro é o espaço, o nada. Estou só.

Abre a pequenina boca e quando esperamos um grito escutamos apenas um tímido e fino sibilo. Um lamento. A sala novamente se enche de silêncios. Cordões são cortados, amarra das almas desfeita. Os panos verdes o envolvem num triste celofane. Um sibilo a mais e ele é levado para distante dos nossos olhos.

Os corpos se separam em salas contíguas, mas a mulher cortada ainda jaz à nossa frente. Temos trabalho a fazer e o mais difícil de todos é suturar a alma dilacerada de uma mãe. Corroída pela culpa e pela angústia, olha para a porta que recém se fecha. Seus ouvidos se agrandam para escutar mais um sinal, por menor que seja, do pedaço de si mesma que há pouco se foi. Fecha os olhos e reza em silêncio. Chora pela separação, pelo medo de perder, pela tristeza de ver seu filho sofrer. Imaginariamente abre seus braços e o abraça, junto ao colo. Traz o rostinho amarrotado e lívido para perto do seu e sussurra em seus pensamentos “Mamãe está aqui. Não vamos nos separar. Sei o quanto precisas de mim e também sei o quanto é preciso que eu esteja ao seu lado. Não se desespere, mamãe está aqui”.

E nós, ao seu lado, apenas nos calamos e testemunhamos sua dor.

Na sala ao lado, outra batalha se trava. Consternados perguntamos àquele pequenino que se posta à nossa frente: “Por que agora? Por que tão cedo? Qual a pressa em chegar a um mundo de expiações e sofrimentos?”.

Sua resposta é apenas o choro fino, o lamento de uma alma apressada.

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Bactérias do Bem

Minha colega Ana Cristina Duarte escreveu:

 “Ao que parece, a ciência está apontando para o grande e maior problema das cesarianas: o fato de não haver colonização imediata do bebê pelas bactérias do canal de parto. A ausência dessas bactérias no momento do parto traz repercussões para o resto da vida, desde obesidade, doenças autoimunes, entre outros. A outra linha de pesquisa é para o parto como o evento que liga o sistema hormonal do bebê, no eixo hipotalâmico. Estamos, no Brasil, recebendo uma nação de bebês que virarão adultos com doenças crônicas. O sistema privado já pode começar a contabilizar os lucros”.

Eu adiciono:

Em Orlando, há muitos anos, tive a oportunidade de conversar com o professor Hanson da Universidade de Gotemburgo – Suécia, a respeito da importância fundamental das bactérias para a adequada proteção do recém-nascido no pós parto imediato(1). Ele ficou fascinado com os vídeos que mostrei de partos na posição de cócoras porque dizia que esta posição facilitava que os bebês fossem adequadamente “contaminados” pelas “entero-bactérias do bem” que vivem no ambiente intestinal materno. A presença dessas bactérias na pele estéril do bebê tão logo ele nasce confere uma especial proteção de microrganismos anaeróbicos que impedem a colonização por bactérias danosas que habitam o ambiente hospitalar (estreptococus, estafilococus, pseudomonas, etc.). Outra razão para não dar banho no bebê quando ele está no hospital aguardando a alta: manter o “manto protetor” de vérnix, líquido amniótico e bactérias maternas que o envolvem e protegem. Assim sendo, a presença de bactérias maternas é fundamental para proteger o bebê de infecções! Imaginem quanto tempo perdemos acreditando que a suprema esterilização (e os ridículos enemas que realizamos na admissão do hospital) era benéfica para o parto. A presença dessas bactérias na colonização intestinal dos recém-nascidos é importante para o seu desenvolvimento saudável.

Para além dessas descobertas, agora sabemos que o leite materno não é estéril, e que contém mais de 700 tipos de bactérias. Como dito acima, sabemos cada vez mais da importância de um equilíbrio adequado da flora intestinal para a saúde de crianças. A preservação do parto normal e da amamentação, para além das questões fisiológicas, emocionais, psicológicas e clínicas, precisa ser analisada também como a mais completa forma de prevenção de doenças. Negligenciar, como temos feito nas últimas décadas, a sua preponderância como elemento preventivo de enfermidades, apostando na suprema cafonice de endeusar a tecnologia sobre os eventos fisiológicos e naturais, pode ser um passo decisivo em direção à extinção do homo sapiens.

(1) Hanson, L.A. Immunobiology of human milk:  How breasfeeding protects babies. Göteborg: Pharma­soft Publishing, 2004. 

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