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Suzane

Suzane Von Richthofen, pivô de um crime bárbaro ocorrido no início deste século que levou à morte seus pais,  decide voltar à escola aos 40 anos, e está cursando faculdade na Universidade São Francisco, no campus de Bragança Paulista (SP), onde mora com seu marido, um médico da cidade, com quem teve um filho e trocou seu nome para Suzane Louise Magnani Muniz. Também decidiu não comparecer na primeira semana de aulas para não precisar se apresentar e revelar quem é. A notícia causou indignação entre muitos internautas que, nas redes sociais, afirmam que se trata de um erro, que ela “jamais deveria ter uma vida normal”, que “os pais estão mortos e ela aproveitando”, que nosso judiciário é brando demais com este tipo de crime e que isso “só ocorreu porque o governo é de esquerda”.

Nada de novo no discurso punitivista ressentido que conhecemos tão bem. O ponto principal da perspectiva destes indignados é a crença de que alguém que cometeu um ato terrível não tem o direito de ser feliz; algo como uma danação eterna.  Há outros que acreditam que o encarceramento infinito dessa moça seria capaz de diminuir – por um efeito mágico – a criminalidade, as taxas de homicídio ou a pervasividade dos crimes hediondos. Infelizmente para estes, não há um estudo comprovando a relação direta entre encarceramento e queda dos níveis de criminalidade em longo prazo. Por esta razão, o desejo de manter eternamente sua punição através da rejeição social, do impedimento de estudar e da censura pública, mesmo depois de duas décadas de regime fechado em uma penitenciária, em nada ajudará a sociedade a resolver o seu problema com a criminalidade e apenas poderá satisfazer nossos desejos mórbidos e inconfessos de vingança.

Por acaso o sofrimento de Suzane pode nos deixar mais felizes? Qual a punição que nos deixaria mais alegres? Qual o sofrimento terrível imposto a ela nos arrancaria sorrisos? Por que nos importamos que ela sofra ainda mais, depois de tudo que já passou? O que deve fazer uma pessoa que cometeu erros e pagou por eles para ser deixada em paz? O que é interessante é que exigimos que nossos erros sejam contextualizados, entendidos e até perdoados, mas não aceitamos que alguém que errou possa minimamente reconstruir sua vida.

Diante da vontade dessa moça de voltar a estudar só o que permito dizer é: “Muito bem, Suzanne; siga sua vida”. Parafraseando um gracejo corriqueiro do meu pai, que repetia a frase de Jesus, eu diria apenas: “Vá e não peques mais”. No Brasil não existe prisão perpétua; continuar a penalizá-la depois de tantos anos é injusto. Todos têm o direito de continuar sua história após o pleno pagamento de sua dívida com a sociedade. É importante lembrar que seu crime pode não ter perdão, mas ela tem. Não é lícito confundir o crime com o criminoso. O que foi objeto de julgamento foi seu crime, o delito pelo qual foi acusada, não ela. Até onde sei ela já pagou pelo que fez e não foi pouco: foram quase 20 anos de prisão, com tudo o que representa de negativo passar pela juventude sem liberdade. Depois de saldar a conta com a justiça ela agora ela tem o direito de viver em paz. Este é um preceito básico do direito.

“Se fosse com você não responderia dessa forma”, disseram muitos internautas com quem troquei ideias nas redes. Bem, se fossem os meus pais as vítimas dessa moça minha opinião não teria valor necessário para emitir um juízo, pois meu envolvimento emocional impediria uma análise isenta. Mas há os que dizem que ela pode ter pago sua dívida com a justiça, mas para o “tribunal popular” ela será eternamente culpada pela barbárie dos seus atos.

Suspeito que, realmente, ela jamais terá a possibilidade de plena recuperação. O crime cometido se reveste de uma gravidade especial na nossa cultura, e não surpreende que até nas tábuas sagradas trazidas por Moisés está gravado “Honrará teu pai e tua mãe”. Esta marca jamais sairá de sua persona pública, mas eu lamento que assim seja. O perdão é uma característica dos sábios, pois revela a capacidade de se colocar no lugar do outro, e a compreensão profunda da fala de Terêncio que nos ensinou “Sou humano, e nada do que é humano me é estranho”.  Quem sabe, fossem outras as circunstâncias e contextos eu não teria o mesmo desvario, a mesma brutalidade e igual perversidade? Quem pode atirar esta pedra? E no que me concerne, não é justo apontar dedos. Ela pagou sua dívida com a sociedade e não me cabe aumentar a pena com meu desprezo. É também importante lembrar que perdoar não é o mesmo que absolver, apenas não permitir que o mal de outrem lhe afete. Por fim, que Suzane seja feliz da maneira que for possível, e que tenha forças para carregar o fardo de culpa que sempre terá sobre os ombros.

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Lula

Quanto mais se aproxima o dia das eleições para a presidência da República mais aparecem os velhos ataques ao candidato Lula, e o mais frequente é chamá-lo de ladrão. Estes ataques são ferozes e irracionais, infensos à qualquer abordagem racional. Todavia, o ódio a Lula diz muito mais de quem o odeia e despreza do que do próprio presidente. Outra tática comum que volta a ser utilizada é de descontextualizar as falas de Lula. Em uma delas Lula diz que “O pobre no Brasil sempre foi visto como número e como papel higiênico: usa-se e joga fora”. Ora, Lula estava criticando a postura histórica dos governos burgueses em buscar as populações desassistidas apenas na época das eleições. Foi exatamente contra isso que os governos de esquerda se rebelaram: a ideia de que essa gigantesca massa deveria continuar votando para eleger representantes da burguesia.

Outra crítica é dizer que Lula é condescendente com o crime, acusações estas que sempre são feitas contra os candidatos de esquerda, em especial aqueles que defendem os direitos humanos. Pois quando Lula contextualiza o roubo e outros delitos ele também acerta. Sim, o ladrão rouba para ter um dinheiro que o capitalismo lhe sonega. É para tomar uma cerveja com os amigos, fazer festa, se divertir, comer e vestir-se bem. Isso não significa justificar o roubo ou o crime, mas entender porque a sociedade capitalista – onde o sucesso está atrelado ao consumo – produz humilhação e frustração em níveis industriais entre aqueles setores da sociedade que são alijados do poder de consumir.

Mas é óbvio que a direita tenta forçar desta narrativa moralista, nos fazendo crer que um país se divide entre as pessoas de “bem” e as pessoas do “mal”, como se os sistemas econômicos fossem irrelevantes diante da “bondade” ou da “maldade” dos sujeitos sociais – uma tese que corre solta entre os religiosos, que (não por acaso) acreditam que, inobstante todas as ações malévolas que fazem, estão no polo positivo da disputa, pois acreditam em Jesus, fazem o sinal da cruz e dão esmolas para os “preguiçosos” na rua.

É contra essa perspectiva tacanha que o planeta precisa se insurgir. Combater essa visão moralista, alienante e tola é um dever de todas as pessoas que desejam um mundo justo e fraterno, mas isso só pode ocorrer com um elemento fundamental, ao qual os detentores do poder insistem em esconder: a consciência de classe. Votar na direita significa apoiar o “centrão” (aquele que Bolsonaro desprezava e acabou abraçando), dar suporte às elites e estimular o neoliberalismo concentrador de renda que deseja transformar o Brasil no grande Fazendão sonhado pelos conservadores.

As pessoas que insistem em chamar Lula de ladrão – sem jamais apresentarem uma prova sequer – não são conservadores, ou “liberais”, são de extrema direita, cegos de ódio pelo que Lula representa de esperança para o povo pobre, esse mesmo povo que foi destruído pela sanha privatizante dos governos de direita deste país. Uma direita pró imperialista e entreguista, como a de Bolsonaro.

Pois há quatro anos eu lancei o desafio: quem chama Lula de ladrão, prove que Lula roubou. Prove que Lula é desonesto. Mostre as evidências, as sentenças e as provas de que ele prevaricou. Desafio. Quem diz que o STF é corrupto e está atacando Bolsonaro explique porque não o acusou de corrupto quando prendeu Lula apenas para que ele não participasse das eleições? Por que aceitou que o mantivessem preso contra a Constituição Federal em seu parágrafo 5? Por que não reclamaram das arbitrariedades inconstitucionais contra Lula, que não pôde concorrer à presidência mesmo tendo direito a isso? Por que só agora começaram a reconhecer o que a esquerda sempre soube: o STF é uma instância pusilânime.

Quem acredita que Lula prevaricou (prevaricar significa, por exemplo, comprar 107 imóveis com salário de político, 51 deles com dinheiro vivo) traga aqui um cheque, uma mansão, um carro importado, um depósito no exterior, um telefonema, um bilhete, um recibo, uma nota, uma promissória, uma foto comprometedora, uma sentença condenatória transitada em julgado, uma gravação, joias, uma confissão, casas, propriedades, sítio, triplex, lojas de chocolate, mansões em Brasília, festas suntuosas, apartamentos em Paris, rachadinhas, empresas fantasmas, enriquecimento suspeito, familiares que ficaram ricos, laranjas, propriedades, grana no exterior, conta na Suíça, conta em qualquer lugar, instituto de fachada, etc…

Ahhh mas não tenho esses elementos… Então aceite que não tem nada contra Lula e todas as acusações são baseadas em fofocas, fake news e no desejo de colocar um líder popular fora de qualquer disputa. Quem grita de forma histriônica “Lula é ladrão” fica parecido com aquelas crianças que dizem “feio, feio, feio”. Repetem por acreditar que uma mentira contada centenas de vezes por fim se torna verdade. Todavia, mais do que repetir, é necessário provar que ele foi desonesto, baseada em que elementos, quais evidências, quais juízos e qual a conexão com a verdade dos fatos.

Quem grita de forma histriônica “Lula é ladrão” parece aquelas crianças que dizem “feio, feio, feio”. Repetem por acreditar que uma mentira contada centenas de vezes por fim se torna verdade. Todavia, mais do que repetir, é necessário provar por que ele foi desonesto, de onde vem essa crença, baseada em que elementos, quais evidências, quais juízos e qual a conexão com a verdade dos fatos.

– Fulano é criminoso!!
– Mas por quê você diz isso?
– Porque sim….

Essa retórica de afirmar que alguém é ladrão “porque é“, sem a necessidade de apresentar provas, abre espaço para que esse mesmo tipo de acusação seja feita a qualquer um de nós, dependendo apenas dos sentimentos e não da realidade. Isso nos faria retroceder milhares de anos na história do direito, onde a realidade era desprezível diante do desejo e dos interesses dos poderosos. O direito surgiu exatamente para se contrapor ao império da brutalidade e da força, determinando critérios para estabelecer inocência, culpa e responsabilidade. A partir do surgimento do direito não bastaria mais apenas o uso da força; seria preciso provar – através da materialidade dos fatos – que o sujeito acusado havia realmente praticado um malfeito.

Por isso o desafio: provem que Lula é desonesto… ou então, tanto quanto vocês, ele continua inocente. Como sempre foi.

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Justiça do Espetáculo

Da minha lavra de “razões para cancelamento”…

Concordo com o grande jurista Pedro Serrano: prender pessoas que mentem nos seus depoimentos na CPI é um abuso de autoridade sem sentido, que só serve aos punitivistas e aos políticos justiceiros. Além disso, segundo Serrano, é uma prisão que não dura “2 minutos” (sic) pois um habeas corpus é criado instantaneamente. Portanto, é apenas um show, para humilhar e constranger. Porém, não se faz justiça com este tipo de cena, e sim com a lei.

Para quem por tanto tempo criticou as ações midiáticas e covardes do ex juiz fascista, é contraditório exigir agora espetáculos de vingança ou atos de arrogância apenas porque aparentemente nos beneficiam. Para quem mentiu que se abra um processo por falso testemunho, que seja ouvido, que apresente contraditório e que seja julgado em seu devido tempo. Ninguém mais confia no judiciário do Brasil exatamente por causa desse tipo de justiciamentos promovidos pela da Lava Jato, e o que precisamos agora é um “choque de legitimidade jurídica” para que as pessoas voltem a confiar que poderão ser julgadas pela razão, e não por motivações outras.

É claro que Pazuello é “testemunha” na CPI apenas pró-forma, pois em verdade ele está sendo investigado. Colocá-lo como testemunha – portanto, impedido de mentir – serve apenas aos interesses de quem deseja forçá-lo a uma contradição ou uma mentira, para depois poder ter a desculpa de lhe dar voz de prisão. Entretanto, é um preceito basilar da tradição jurídica que um sujeito tem o pleno direito ao silêncio para não gerar prova contra si.

Por mais que tenhamos críticas ao Pazuello – e não são poucas – não é justo que ele não tenha acesso aos direitos que exigimos para todos. Não esqueçam que a condução coercitiva de Lula – ilegal, imoral e brutal – tinha como objetivo prender Lula criando este tipo de atmosfera.

Não faremos um Brasil melhor repetindo os erros que por tanto tempo acusamos nos bolsonaristas.

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Justiça

“Temos hoje, acima de tudo, a falência do direito como elemento regulador da sociedade. Quem aceita uma justiça parcial quando lhe convém está alimentando os corvos que, no futuro, comerão seus olhos.”

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