A atual enchente de Porto Alegre é a maior da história já registrada, superando a enchente de 1941, que ficou tão famosa e ainda presente no nosso imaginário. Curiosamente as enchentes, distantes entre si por 83 anos, começaram nas mesmas datas, nas chuvas de final de abril. Estamos ainda tentando salvar vidas e abrigar famílias que perderam tudo. Amigos queridos tiveram suas casas invadidas pelas águas e nada puderam fazer. Sequer foi possível trazê-los para a Comuna, pois as vias estão interditadas.
Toda a solidariedade para que muito ou tudo perdeu. Toda a ajuda para quem está sem casa, sem suas roupas, sem comida. Para alguns só podemos dizer “que se vão os anéis e fiquem os dedos”, mas para outros nem isso. Esperamos que as águas venham a baixar para ser possível contabilizar o estrago e iniciar a reconstrução da cidade. Espero que esta seja a principal lição a aprender: a tese do Estado Mínimo defendida pelos reacionários da direita deste Estado provou-se uma tragédia. A defesa Civil descapitalizada, a falta de manutenção das bombas, a dificuldade de bombeiros e agentes da defesa Civil são consequências diretas de uma visão política que descapitaliza, enfraquece e empobrece o poder público.
Várias personalidades se ofereceram para ajudar. Jogadores de futebol até abrigaram atingidos pelas chuvas em suas mansões, mas isso – apesar de louvável – mostra a falha do Estado em oferecer estes serviços. Não cabe aos cidadãos comuns a realização destas tarefas; elas são responsabilidade do Estado, organizando e promovendo as ações para salvaguardar a vida de todos. Aqui, entretanto, é proibido apontar as falhas gritantes de financiamento da Defesa Civil e a falta de previsão para a catástrofe que há muito estava anunciada porque isso serviria para “politizar a tragédia”. Imaginem se o Lula e o PT estivessem à frente da prefeitura e do governo do Estado o quanto estariam batendo, mas como os mandatários são apoiadores do Bolsonaro estão sendo protegidos
Diz a lenda que em 1941 muitas mulheres grávidas ficaram ilhadas e sem condição de receber assistência no parto. Com isso teriam dado à luz crianças com problemas mentais, dando origem à uma expressão típica da nossa cidade: o “abobado da enchente“, usada quando queremos, jocosamente, criticar alguém que fez uma tolice. É evidente que o termo era usado para desqualificar as mulheres que tinham seus filhos sem o auxílio de médicos, assim como tratar a ação dos obstetras como “salvadora”. Bem sabemos o quanto isso está longe da verdade. Há uma outra versão que relaciona o termo ao surto de leptospirose, uma relação direta das enchentes e o contato com a espiroqueta dos dejetos de ratos, mas ainda acredito mais na primeira versão.
Porém, sobra uma verdade invertida nessa história. Na realidade, as enchentes não são capazes de produzir “abobados” como expresso no dito popular. Pelo contrário: por tudo que pudemos ver até agora, “são os abobados que produzem as enchentes”, conduzidos por uma ideologia fracassada que destrói a estrutura de serviços públicos em nome do fortalecimento da classe burguesa, cujo único objetivo é o lucro.
“And a stone of stumbling, and a rock of offence, even to them which stumble at the word, being disobedient: whereunto also they were appointed”.
Eu acho que Cristo estava certo ao dizer “pedra de tropeço e rocha que causa a queda; porquanto, aqueles que não creem tropeçam na Palavra, por serem desobedientes, todavia, para isso também foram destinados.”
Minha interpretação é de que os acontecimentos ruins que nos fazem tropeçar precisam ser utilizados como ferramenta de elevação. A sua “destinação” – e aqui serve apenas como alegoria – é a pedagogia do caminho justo. O escândalo do trabalho escravo precisa servir de alavanca para uma profunda reflexão, e uma posterior transformação nas relações trabalhistas. Sabemos também que os casos de trabalho análogo à escravidão acontecem há muito tempo, e que muitas queixas já haviam acontecido, mas a imprensa e o MP nunca deram a devida importância. Não é novidade alguma o que aconteceu, mas o ambiente político pós era Bolsonaro, as declarações infelizes do vereador bolsonarista, a publicidade que foi dada acabaram produzindo a necessidade de enfrentar este caso de uma forma diferente. É preciso que a sociedade brasileira aproveite a oportunidade que o escândalo do trabalho escravo nos ofereceu, que ele venha a nos envergonhar, para que esta vexame seja a peça essencial para uma nova consciência.
Uma história parecida: Nos anos 70 os anestesistas eram escassos no Brasil. Era comum que um anestesista cuidasse de várias salas cirúrgicas ao mesmo tempo, ocupando-se de vários pacientes, dividindo sua atenção entre muitos teatros operatórios. Então aconteceu o acidente de Clara Nunes durante uma cirurgia, e este fato oportunizou – pela via da dor – um novo padrão de atenção, através do escândalo de uma morte que poderia ter sido evitada. Não se sabe com exatidão se esse foi o caso que ocorreu com a cantora, mas foi uma das versões que percorreram o noticiário da época. A solução surgiu a partir da vergonha, causada pela pedra de tropeço de uma tragédia. O Conselho Regional de Medicina da Bahia, informou que causa mortis apresentada no atestado de óbito da cantora foi “hipersensibilidade ao halotano”, gás administrado durante a cirurgia como anestésico. Pela avaliação da corporação os depoimentos apontaram que, tanto do ponto de vista técnico quanto humano, não houve falhas. Os médicos não teriam se ausentado, os equipamentos não falharam por falta de manutenção e a clínica São Vicente onde ocorreu o fato foi inocentada. De qualquer maneira, a partir dessa data, houve uma vigilância severa sobre a atuação dos profissionais em salas de cirurgia.
Nesta caso que agora nos espanta pela sua crueldade e violência protagonizada pelos empresários e por membros do Estado, é preciso ter uma visão prospectiva, que não pode se esgotar no punitivismo. Espero que a partir de agora a indignidade, a violência, o abuso, os maus tratos e o cerceamento da liberdade sejam vistos como crimes contra cada um de nós. Que sejamos atingidos pela vergonha de considerar cidadãos trabalhadores como sub-humanos, indignos de justo tratamento. Que tenhamos a sabedoria para fazer um bom uso desse lamentável acontecimento.
Elize foi condenada pela assassinato de Marcos Matsunaga, que foi morto e esquartejado por ela em 2012, num crime que escandalizou o país.
Surpresos? Pois aceitem, o amor tem dessas coisas. Não vejo nenhuma contradição em uma assassina confessa declarar, de forma explícita e desvelada, seu amor por alguém, em especial sua filha. Em verdade, o amor (e seus desvios) é capaz de produzir o horror, o drama e a tragédia, pois que é tecido pelas finas tramas do desejo. A declaração dela pode ser legítima e sincera – e assim acredito que seja – o que não apaga seus crimes ou suas falhas. O amor, em sendo humano, é cheio de contradições e repleto de paradoxos.
Entretanto, o que de pior podemos fazer a um condenado é desumanizá-lo, e retirar dele a capacidade de amar; é negar-lhe a condição mais primitiva que nos constitui. Retirar de uma prisioneira a possibilidade de “amar para além da vida” significa tirar dela a esperança, o fio tênue que pode fazê-la suportar a vida que lhe restou. O curioso é ver uma declaração de amor banal como esta ser tratada com espanto, como se a nossa própria estrutura psíquica mais profunda não contivesse as dualidades conflituosas de amor e ódio, horror e transcendência.
Minha única crítica é que parece fácil “perdoar” a Eliza humanizando-a, colocando-se no seu lugar, olhando o mundo pelos seus olhos, caminhando pelas trilhas da vida, calçando seus sapatos. Muito justo. Entretanto, por que só Eluize e não Nardoni, Bruno ou mesmo o marido de Maria da Penha? Por que só alguns podem ser humanizados enquanto os outros são condenados à monstruosidade eterna?
Identificação é a chave.
Pois, “tudo quanto seja humano não me será estranho”, como diria o poeta e dramaturgo romano Publius Tererentius Afer. Consigo me identificar com os monstros tanto quanto com os anjos, pois sei que ambos habitam em mim, e também em cada um de nós.
Conheci seu trabalho a bordo de um voo da azul quando vi o personagem de uma mulher rica e superficial chamada Senhora dos Absurdos.
Quase morri de rir.
Na minha perspectiva de homem velho ele era um garoto ainda. Jovem, bonito, dois filhos e recém casado. A projeção do tanto que ele tinha para viver deixa a morte ainda mais dolorida.
Que siga em paz. Faça os anjos do céu rirem das suas piadas, assim como eu tanto gargalhei com você nas alturas.
Dentre as coisas positivas que é possível retirar da morte dramática do Paulo Gustavo creio que a mais significativa é a visibilidade de sua relação afetiva com o marido e os filhos, mostrando a inequívoca plasticidade do conceito de família – onde o único elemento essencial é o amor.
Espero que no meio de tanta tristeza pela partida abrupta sua vida nos ofereça ensinamento e contamine mentes ainda carregadas de preconceito. Tenho a esperança que a partir do seu exemplo mais casais de todas as configurações tenham direito à dignidade. Que assim seja.
Não quero ler sobre esse fato do menino que faleceu aqui no Estado. Escutar os relatos me causa dor e angústia. Parece muito com aquela outra historia, igualmente brutal, do menino do Norte do estado, cujo pai é um cirurgião. Muito triste, muito desesperador.
Pior ainda é o fato de que a gente acaba se revoltando, sentindo raiva e indignação, mas o ódio é um ácido que corrói o próprio frasco que o contêm. Odiar é destrutivo, envelhece o corpo e calcifica a alma.
O que se segue a esses crimes é quase tão ruim quanto a morte em si: uma onda de identificações, ódio, ressentimentos eruptivos, raiva incontida e sentimentos de vingança. Esse clima é horrível. Eu lembrei agora imediatamente do julgamento dos Nardoni quando pessoas saiam de suas casas e iam para a frente do fórum com cartazes de “assassinos”, “pena de morte”, etc. Eu pensava: “O que move essas pessoas? Sãoo pessoas comuns, que souberam do caso pela TV!! Que gozo condenatório é esse?“. Depois eu pensava na turba ensandecida que gozava vendo os leões comendo criminosos no Circus Romano ou gargalhava olhando as bruxas sendo queimadas pela inquisição e penso que tais personagens continuam a existir nos dias de hoje, com cartazes no lugar de archotes, mas com a mesma raiva doentia a escorrer pelo canto da boca.
Pelo menos agora vejo pessoas se perguntando “o que leva uma mulher a cometer um ato de tamanha violência?“. Pois esta pergunta, que nos impele à empatia, é o que nos livra dos dedos apontados, da dureza, da inexorabilidade. Tentar se colocar nos sapatos de um criminoso e perceber o mundo através de seus olhos é uma tarefa tão difícil quanto sublime.
Espero apenas que esse menino tenha paz e essa mãe a justiça.
Há mais de quatro décadas eu estava de plantão como interno (estudante) no Pronto Socorro Cruz Azul em Porto Alegre quando, ao voltar de um atendimento domiciliar na madrugada da virada do ano, nos deparamos com uma cena insólita quando nossa ambulância fez a curva e entrou na Rua Duque de Caxias. Sobre o viaduto Loureiro da Silva jazia, ainda balançando, um Fusca de cabeça para baixo.
Quando o avistamos, as rodas ainda giravam lentamente, enquanto o capô do carro se apoiava no chão, parecendo uma tartaruga derrubada por uma onda mais forte
Paramos nossa viatura a uma certa distância olhando aquela imagem bizarra que contrastava com a rua totalmente deserta nos minutos que antecediam o nascimento do primeiro sol da década de 80. Não havia outro som senão o girar das rodas que desaceleravam aos poucos
Subitamente, duas mãos aparecem na janela do carro tateando o solo e tentando sair. Descemos da ambulância para ajudar, mas antes de chegarmos o sujeito já havia saído totalmente. Colocou-se de pé de forma cambaleante e ficou claro que estava embriagado. Tipo, muito. Vestia uma roupa toda branca combinando com o Fusca da mesma cor.
– Há mais alguém no carro? perguntei.
– Só eu, disse ele enrolando a língua
– E você está bem? indagou meu colega.
– Claro, exclamou sorrindo. Estou muito bem, só um pouco tonto.
Tonto, sei. Bebeu todas e saiu dirigindo. Podia ter morrido. Só então pude ver que sua calça branca estava rasgada na altura da coxa. Pedi licença e me aproximei para ver se não havia se cortado.
– Sente alguma dor? Aqui na perna?
– Nada, está tudo bem. Pode seguir seu caminho, vou pegar um táxi e depois volto pra buscar o carro.
Ele não fazia ideia do que estava falando. Imagine deixar um carro virado de “ponta cabeça” na rua e voltar para buscar mais tarde.
– Posso ver sua perna?
Ele aquiesceu e eu olhei pela abertura deixada pelo rasgo na calça. Nos meus poucos anos de escola médica nunca tinha visto aquilo. Havia um corte de uns 15 cm de comprimento e muito profundo, mas com pouquíssimo sangue. Uma boca aberta com bordas precisas que pareciam ter sido feitas por bisturi.
– Você não está sentindo nada mesmo na perna?
Eu me olhou com assombro e respondeu:
– Já disse que não. Acaso encontrou alguma coisa aí?
A cena me trouxe imediatamente à memória outra, esta descrita em um livro muito especial: “O Século dos Cirurgiões“, de Jurgen Thornwald. No livro ele descreve a noite em que Horace Wells participava de uma festa em Hartford, no ano de 1844, onde a atração principal da noite era aspirar óxido nitroso até se espatifar no chão de tanto rir. As festas com “gás hilariante” eram comuns naquela época. Nesta em especial, Horace estava ao lado de Sam Cooley quando este caiu do tablado e bateu com a canela na quina de uma cadeira. Quando ele, que era dentista prático, examinou a perna de Sam, encontrou um rasgão que pela descrição parecia ser do mesmo tamanho deste eu testemunhava no motorista do Fusca. Tanto o ferimento do rapaz saindo da festa de Réveillon quanto aquele de meados do século XIX – que estimulou o surgimento da anestesia inalatória – não produziram dor alguma em suas vítimas, tamanha a impregnação de substâncias estupefacientes.
O mesmo tipo de corte e a mesma anestesia. Mais do que uma ação direta sobre as terminações nervosas atingidas, era a alteração mental química quem produzira a insensibilidade dolorosa. Mas, se o cérebro é capaz dessa proeza, que mais seria capaz de fazer para suprimir a dor? Alguns anos depois eu veria tais “milagres” ocorrendo no parto. Pedi que o jovem ébrio entrasse na ambulância para que o levássemos até o Pronto Socorro Municipal, mas não sem uma notável resistência da parte dele. “Não sinto nada; estou bem!!!“
E assim começou a década de 80, com um ensinamento muito claro: “Caso capote seu carro, certifique-se antes que haja uma ambulância bem atrás de você“.
O assassino era como o monstro de Frankenstein, composto por centenas de pequenos fragmentos de rancor e decepção. Uma estrutura de ódio, retalhos de misoginia, um pouco de raiva, umas pitadas de indignação seletiva e um punhado generoso de auto condescendência. E como pano de fundo o amor deteriorado e doentio.
Não há nada de novo na sua fala e nos seus sentimentos, assim como não há nenhuma novidade em salitre, carvão e enxofre. Entretanto a mistura desses elementos produz a força destruidora da pólvora, enquanto agora a combinação de indignação, culpa, frustração, banalização da violência, machismo e uma mente frágil e doente produzem tantas tragédias.
Esta semana fomos atropelados pelas imagens angustiantes de uma dupla de jovens espancado violentamente um vendedor ambulante dentro de uma estação do metrô em São Paulo. O resultado foi a morte da vítima.
Muitas vezes eu acho as reações à violência tão danosas e doentias quanto os atos cruéis a que se reportam. A gente quase nunca é suficientemente testado na vida a ponto de poder afirmar “isso eu jamais faria”. Como diria Terêncio, “O que é humano não me é estranho”. De minha parte posso me ver em qualquer dos personagens: nas travestis, nos espancadores, na vítima, nos espectadores petrificados e até nos milhares de “juízes” que imediatamente condenaram os infratores. Não me sinto – em essência – diferente de nenhum deles.
Com uma breve pesquisa na memória posso lembrar de coisas que eu fiz na minha juventude que só não se tornaram tragédias por pura sorte. Quando tinha 15 anos estava em um Grenal e joguei uma laranja de longe em um torcedor rival. A chance de acertar era desprezível, mas mesmo assim arrisquei. Ela acabou se chocando contra a cabeça de um menino da minha idade, explodindo em mil fragmento alaranjados. Sei que nada grave ocorreu porque ele saiu correndo com sua turma. Fui cumprimentado por meus parceiros pela minha “pontaria” certeira mas passei os últimos 40 anos lamentando essa atitude, só por imaginar que poderia ter se tornado uma tragédia.
Mais de 99.9% das brigas de rua e espancamentos terminam com escoriações e orgulhos feridos; esta briga no metrô de São Paulo terminou em morte – por azar. Este azar poderia ter ocorrido comigo há 40 anos em uma tola partida de futebol. Diga aí quão melhor que aqueles espancadores você me considera. Eu coloco minha ação e a dos espancadores no mesmo nível… só o acaso nos separa.
Qual a minha motivação para jogar uma laranja na cabeça de um torcedor rival? A motivação dos espancadores foi ódio, mas não apenas do ambulante, mas de toda uma sorte de frustrações, ódios, tristezas e rancores que não me cabe julgar. A minha foi ainda mais tola: machucar alguém cujas cores na camisa eram diferentes das minhas.
No caso do metrô foi azar, mas também foi homicídio. Na minha opinião eles não queriam matar, queriam bater, mas mataram, por isso são homicidas. Eles erraram a “pontaria”, sim. Não era o objetivo a morte do ambulante; era para dar socos, pontapés e machucar, como são 99.98% das brigas de rua.
Erraram, tiveram azar e mataram.
Quando brigamos de cabeça quente não se pensa racionalmente. Tive muitas brigas na vida e sei como fica nosso estado mental. Algumas pessoas acham confortável se afastar desses sujeitos, achando-os muito diferentes de si mesmos, desumanizando-os. Eu não, pois suas atitudes são semelhantes a muitas que já tive.
Para nós é mais fácil perdoar pessoas com quem conseguimos construir uma ponte de empatia. Posso me identificar com crimes hediondos que me falam de experiências em comum, mas não é fácil fazer o mesmo com erros distantes da minha realidade.
O que estamos, afinal, medindo? O crime em si ou nossa capacidade de compreender os dramas e angústias alheias?
E vejam, os CRIMES precisam ser julgados, mas quem se acha em condições de julgar o criminoso, no emaranhado de significados e significantes que o constitui? Quem atira a primeira pedra?
Eu sei o quão tênue é a linha que separa a barbárie da civilização. Eu consigo perceber que, oferecidas as condições de contexto e circunstância, eu mataria, mesmo sem ter nenhuma intenção e nenhuma justificativa razoável para um ato extremo como esse.
As vezes a direção incerta de uma laranja arremessada de forma irresponsável e tola pode ser a diferença entre o criminoso e o menino abusado.
Mastuf, o pastor manco, tropicava pelas colinas e sonhava cortejar a bela Marisca, dona de olhos azuis tão cristalinos que mal nos apercebíamos da moldura que os rodeava, a sua face corada e brilhante, coberta pela franja resplandecente a lhe descer pela testa. Marisca trabalhava no Salão “Harod” no vilarejo de Kungrat. Todos os dias tirava leite de camelo para fazer o queijo que alimentava seus irmãos, limpava o estábulo, arrumava a mesa para o café – onde comiam o Tigrith, pão feito de cevada e azeitonas, e depois caminhava dois quilômetros até o centro da cidade, onde ganhava uns poucos trocados como esteticista. Era linda e meiga, mas muito infeliz, pois lhe faltavam duas coisas: um prendedor de cabelos de cor verde que havia perdido quando foi tirar água do poço e um grande amor em sua vida. Sempre fora cortejada, e por por muitos homens, mas jamais havia se decidido, pois eles apenas se interessavam pelo seu corpo e seu cheiro (as azeitonas do pão Tigrith lhe deixavam com um aroma inconfundível). Isso era pouco.
– Quero que me amem pelo que “sou”, dizia ela, mas poucos conseguiam entender o que uma menina podia querer além de um marido forte e trabalhador.
Mastuf podia ser este homem, pelo menos em suas próprias infindáveis fantasias. Ele sim via nela mais do que um belo par de ancas e uma franja sedutora. Ela era carinhosa com as crianças, em especial seus irmãos menores. Era gentil com os mais velhos e muito esperta. Dificilmente errava quando fazia um penteado ou aparava as unhas de uma cliente. Era hábil com o arado e boa cozinheira. Como não se apaixonar por uma mulher tão cheia de virtudes, belezas e atrativos? O aldeão um dia resolveu que seria o momento adequado para cortejá-la. Passando próximo ao salão em que ela trabalhava adentrou o pequeno espaço para ver se conseguia vê-la. Não sabia o que dizer, muito menos como iniciar uma conversa com alguém que jamais havia trocado palavras diretamente. Mesmo que ela fosse uma personagem frequente de seus sonhos, um encontro até então havia sido algo impensável. Entrou no modesto salão e girou o olhar pelo ambiente. Umas poucas mesas vazias e um espelho grande na parede eram toda a mobília do lugar. Antes que pudesse falar ou dizer qualquer coisa uma bela jovem se aproximou e, segurando-o pelo braço, perguntou se desejava cortar o cabelo ou arrumar as unhas. Mastuf congelou. Era ela, a moça bela da aldeia, a quem seus olhos perseguiam sem descanso. Ainda em pânico, e lembrando sua aparência rude e simples, deu a única resposta que lhe parecia sensata:
– Vim cortar as unhas, disse ele com voz trêmula.
Assim, ajeitou-se na modesta cadeira e viu a bela jovem sentar-se à sua frente, segurando delicadamente sua mão calejada de pastor. Provavelmente em toda a sua vida sofrida ele jamais havia sentido tamanha emoção. Imediatamente foi invadido por uma sensação profunda de contentamento e plenitude, sem comparação com qualquer outra em sua vida. Nos poucos minutos em que sua mão esteve sob a guarda das mãos de Marisca o mundo pareceu interromper seu curso e estancar seu giro celeste.
– Vamos começar pelas unhas do polegar, que é o mais forte e o que tem a unha mais suja e grossa, disse ela com um sorriso envergonhado. Retirando delicadamente camadas de sujeira sob a unha, esta foi paulatinamente tornando-se mais clara, límpida e translúcida. As cutículas grosseiras e espetadas foram aos poucos sendo desbastadas, e a poeira que cobria o leito das unhas aos poucos foi saindo. Uma lixa terminaria o serviço, deixando uniformes as irregularidades da unha.
Mastuf fechou os olhos e sua mente vagou para o infinito cósmico, o lar celestial das ninfas. A luz que emanava dos olhos de Marisca perfurava suas pálpebras que, mesmo fechadas, não impediam que este brilho ofuscante impregnasse suas retinas. As ninfas dançavam alegremente ao som de milhares de harpas, embaladas pelos cânticos angelicais da Falange de Herwitt, a deusa dos amores virginais. Não foi possível a Marisca passar para o próximo dedo, pois foi neste instante que o céu das ninfas se fechou com um trovão avassalador. Subitamente desperto de seu sono, Mastuf pôde observar Korgut, o Alcaide, entrando ruidosamente na pequena sala do Harod. Seu corpo volumoso e seu chapéu pontiagudo assustavam a qualquer um que ousasse cruzar o olhar com ele. Todos sabiam das suas investidas em direção à Marisca, mas ela jamais acolhera nenhuma de suas tentativas. “Ele cheira a alcachofra molhada“, dizia ela aos seus irmãos mais velhos, que apenas davam de ombros e lamentavam que ela refutasse um bom partido.
Certamente que Korgut estava a procura dela, mas não gostou nada de vê-la sozinha na sala atendendo o jovem aldeão. Enfurecido de ciúme apontou-lhe o indicador, acusando-a de vadia, irresponsável, fácil e de “oferecer sorrisos a estranhos como quem vende arenque no mercado“. Marisca só fazia chorar diante do furacão violento de acusações maldosas e injustas. Mastuf, surpreso, nada podia fazer a não ser se afastar. Depois de uma saraivada de ofensas cuspidas por Korgut em direção à pobre moça, o Alcaide levantou a mão ao ar, para desferir a derradeira ofensa sobre o corpo esquálido da pequena Marisca. Entretanto, para sua surpresa, seu gesto congelou no ar, e seu punho fechado paralisou-se sobre sua cabeça. Mastuf segurava o pano de sua camisa de seda. Tremendo de medo pela represália, o pobre rapaz ainda assim juntou a coragem suficiente para impedir a pancada do monstro enfurecido pelo ciúme. Korgut, virando-se para o lado, respondeu, atônito, a ousadia do pequeno Mastuf.
– Como ousa me impedir, moleque? Como ousa colocar seu braço sujo de pastor em minha camisa de seda? Quem você pensa ser? Nada mais é do que um mísero cuidador de ovelhas, catador de bolotas, analfabeto e estúpido. Como pensa me interromper? Acaso trouxe seus irmãos e primos? Tem uma armadura a proteger seu peito contra os golpes que vou desferir? Como acha que vai impedir que eu faça a justiça contra uma mulher que me iludiu com seu sorriso meigo e sua face cândida?
Mastuf prendia-se ao braço de Korgut como quem se agarra a um bote salva-vidas. Não ousava largar, pois o punho livre poderia terminar o que havia começado. Temia por si, mas muito mais por Marisca a quem, apesar de amar com toda sua alma, jamais havia confessado seus sentimentos. Korgut não esperou que Mastuf livrasse seu braço direito, e com um golpe de esquerda jogou-o para longe. O corpo esquálido cruzou a sala e foi chocar-se contra a parede à frente, fazendo estilhaçar o espelho em milhões de imagens de horror e pânico a refletir seu rosto. A dor era menor do que o medo da próxima investida. O sangue escorria pela boca, cujo lábio rasgado permitia o curso livre de um córrego de sangue. Os ouvidos zuniam pela potência do soco, que fizera balançar toda a arquitetura de seu crânio. Levantando-se sofregamente segurou-se na cadeira rústica que até então estivera sentado e derrubou a mesa de utensílios usada por Marisca para corrigir os defeitos de seus dedos toscos. Ainda tentando se erguer viu o corpanzil de Korgut aproximar-se para mais um ataque.
Desta vez a potência do choque foi sentida diretamente na boca do estômago. O pobre aldeão teve a sensação de sentir as vísceras saltarem pela boca afora. O sangue inundava seu rosto e sua boca, pintando de rubro a cena de violência brutal. Korgut tinha os olhos inflamados, saltados para fora de suas órbitas e totalmente cegos de ódio e ciúme. Seus ouvidos também eram surdos para os gritos de Marisca, que implorava piedade, que não atacasse o pobre rapaz e que tivesse compaixão pela sua alma, a meio passo entre este mundo e Astárides, o céu das ninfas que há poucos minutos enchera de alegria o agora moribundo. Caído ao solo com o estômago esmagado e o rosto desfigurado nada mais restava a Mastuf do que esperar o derradeiro golpe. Que viesse com presteza, sem dó, para que a passagem fosse rápida, o mais indolor possível. Preferia assim, mesmo que soubesse a dureza de partir sem a despedida de suas ovelhas amadas, mas, acima de tudo, sem ter a oportunidade de declarar a Marisca todo o seu amor e seu desejo.
O monstro gigante ficava cada vez maior a cada passo que dava ao se aproximar de seu corpo caído. Os objetos da manicure espalharam-se pelo chão da sala fazendo uma aterradora algazarra. Um pequeno pote de barro, uma jarra d’água vazia, sangue, cabelos, minúsculas unhas cortadas, lágrimas, afastadores de cutícula e uma tesoura. O cenário à frente de Mastuf parecia ser a derradeira imagem que ele veria nesta curta e sofrida vida. Fechou os olhos e esperou o golpe final. Um grito surdo e longo, aterrador e dramático, cruzou a sala. Marisca calou suas súplicas e um vazio eterno de alguns segundos encheu a sala da manicure de silêncio. O Alcaide abre os olhos pela última vez e cai ao chão fulminado. Estatelado ao solo, quase sem vida, ainda olha para o peito e encontra, cravada em seu coração, a tesoura de Marisca. No limiar de suas forças Mastuf rastejou até a pequena tesoura cortadora de unhas que jazia próximo de seus pés. Tão preocupado estava Korgut de aplicar o golpe mortal derradeiro que sequer se importou com o rápido movimento de seu oponente. O golpe foi sutil, rápido, preciso e fatal. A pequena tesoura de ponta aguda penetrou o peito do homenzarrão entre as costelas, atingindo a câmara inferior esquerda de seu coração.
Marisca voltou a chorar e atirou-se sobre o corpo de Mastuf, que jazia inerme. Com o pouco de força que tinha em seus braços a moça ergueu o corpo ferido de Mastuf e colocou-o sentado contra a parede. O sangue estava por toda a parte, seus dentes eram pura vermelhidão, e sua face era pálida como Zillut, a águia branca da neve. Sua respiração era ofegante e seu olhar pesado. Suas mãos trêmulas seguraram as de Marisca sem força e sem cor.
– Perdão Marisca…
– Porque me pedes perdão, Mastuf, se acaba de me salvar a vida?
A voz desaparecia como os últimos raios de sol ao entardecer, mas ainda conseguiu completar sua derradeira frase.
– Perdão por nunca dizer que te amei desde que te vi pela primeira vez. Perdão por deixar o tempo passar e só te dizer quando nada mais importava. Desculpe por nunca ter te oferecido o amor que merecias. Perdão, perdão…
Marisca chorava a dor irreparável. O amor que sempre sonhou, construído na nobreza e na bravura, se esvaía por entre seus dedos. O rosto de Mastuf ficava cada vez mais frio, sua voz mais baixa. Ele estava partindo. Marisca aproximou seu rosto mais uma vez para poder olhar o corpo caído quase sem vida de seu salvador. Se existe nobreza e virtude em uma morte aquela seria a escolhida pelos mais puros e fiéis servidores do Criador. Soltou o corpo de Mastuf e com suas mãos suaves e limpas fechou-lhe os olhos vítreos. O peão simplório cerrou as pálpebras enquanto sua cabeça se aconchegava no colo da amada. Soltou o ar contido nos pulmões pela última vez e dormiu o sono dos mártires.
Haakon Mikkelsen, “Fortællinger fra det Mistede Land” (Contos da Terra Perdida), Ed. Sandhed, pág 135
Haakon Mikkelsen é um escritor e roteirista dinamarquês, nascido em Nykobing Falster. Ficou famoso em seu país por ter trabalhado na produção de roteiros de um famoso programa de humor aos sábados à noite chamado “Griner i København” (Gargalhadas em Copenhague). Ao lado disso escreveu inúmeros sketchs de humor e roteiros para filmes, incluindo aí o premiado “St. Bernard Frossen” (São Bernardo Congelado) e “Isdukke” (Boneco de Gelo). Em 2010 lançou seu primeiro livro de contos, chamado “Contos da Terra Perdida”que teve uma boa recepção da crítica. Atualmente trabalha na TV2 da Dinamarca e mora em Copenhague com sua mulher Hilda.