Arquivo do mês: outubro 2017

Moedor de Carne

Robbie falou dessa questão no seu famoso artigo “Medical training as a Rite of Passage“. Eu chamei de “moedor de carne” no “Memórias de um Homem de Vidro”, mas a verdade é que, por razões históricas, a corporação médica se transformou atualmente em um monstrengo violento, amedrontado e acuado. Quando mais o velho padrão obstétrico centrado no cirurgião e na intervenção encara a sua obsolescência mais agressivo se torna; uma violência reativa que denuncia a morte de um paradigma e o surgimento de um novo modelo, baseado na garantia ao protagonismo da mulher, na visão humanística e interdisciplinar e na Saúde Baseada em Evidências.

Texto abaixo de Ana Cristina Duarte

As pessoas estão com raiva do tal Cassius ou da estudante tosquinha, mas a verdade é que esse pensamento de superioridade do médico começa a ser imposto aos estudantes na faculdade, no primeiro dia de aula. Uma casta superior, com poderes superiores. Sair desse rolo compressor, a lavagem cerebral da graduação, não é para os de cabeça fraca. Tem que ter berço, educação em casa, leitura, bons exemplos, cultura, noção de cidadania, coisas que o brasileiro médio não acessa na sua infância/juventude. Não é à toa que os médicos que se dedicam à causa da humanização são tão poucos e são tão perseguidos!! E é essa diferença que faz deles pessoas tão especiais. Força aos queridos amigos médicos, que estão lidando com o pior da raça humana nesses dias trevosos.”

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Pena Capital

O problema da argumentação daqueles que apoiam a pena de morte (e da turma que gosta de assassinatos legalizados) é que são fixados na figura do assassino (Freud explica) e não na população que é vítima da violência. Milhares de estudos sociológicos comprovam que não se modificam as taxas de criminalidade com medidas como esta, e mesmo assim insistem na ideia de matar quem comete crimes. Ora, por quê?

A resposta é óbvia. A razão para está fixação é que estes sujeitos também desejam matar, como os criminosos, mas não o podem fazer. É um sentimento brutal e primitivo, uma sensação pessoal de vingança contra os que invadem seu espaço ou lhe tiram algo de valor. Infelizmente estas propostas quando executadas nunca mudaram em nada a insegurança da população e mesmo as mortes violentas. São inúteis e apenas adicionam mais mortes àquelas que já lamentamos. Elas apenas oferecem o prazer sádico de acrescentar uma morte legal às estatísticas.

A Pena de Morte tem o mesmo efeito da desastrosa “guerra ao terror” implantada pelos governos americanos. A ideia é a mesma: vamos destruir todos os malfeitores e a sociedade será dominada apenas por “gente de bem”. Mataram milhares dos – assim chamados – “terroristas”. Limparam o terreno e espalharam sangue por todo lado. Eu pergunto: que efeito isso produziu no terrorismo global?

O OPOSTO do esperado. Nunca houve tanta tensão, atentados, insegurança e violência. A guerra ao terror é um SUPREMO FRACASSO, assim como também o são as medidas de extermínio de negros e pobres submetidos a situações sociais deploráveis e que entram no crime pelas razões que tanto conhecemos. Sem atacar diretamente as RAZÕES para o terrorismo e para o crime tais medidas apenas reciclam terroristas e bandidos. Abrimos vagas para os novos sem entender porque se formam tão rapidamente.

No fundo o que temos é um processo exonerativo de raivas e frustrações acumuladas na sociedade desaguando numa prática medieval de assassinar aqueles à sua margem, sem nenhuma indicação de que esta sociedade se torne, por estas medidas, mais pacífica.

Pelo contrário, a exemplo do que aconteceu à luta contra o “terror”, só recrudescemos a matança.

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Agressão às Enfermeiras

Nunca escreva movido pelo ódio ou pela paixão; você acaba revelando aos outros o que desconhecia de si mesmo. Quando uma pessoa dá a sua opinião de cabeça quente e depois ameaça chamar seu advogado-metralhadora para processar todo mundo que lhe respondeu é porque devia ter pensado melhor antes de escrever.

Claro que é positivo pedir desculpas pelas agressão absurdas e despropositadas desferidas. Não posso aceitar – em nenhuma situação – penas perpétuas e condenações infinitas. Pessoas podem amadurecer e aprender com seus erros. É sempre bom se retratar dos erros cometidos.

Entretanto, a violência das palavras fica marcada indefinidamente. Depois de proferida a ofensa não se apaga. O mais triste não é a agressão descabida e brutal, mas a certeza que o deboche contra as enfermeiras é uma postura extremamente disseminada dentro da medicina. Escutar velhos preconceitos e grosserias obtusas contra a enfermagem foi algo que suportei por quase 40 anos.

As manifestações de desprezo pela enfermagem reforçam minha certeza de que a maior parte do ódio direcionado contra mim nos meus últimos 10 anos de trabalho por parte da corporação vieram do fato de que eu trabalhei lado a lado com uma dessas “criaturas inferiores” a ponto de lhe oferecer o posto central na atenção ao parto.

Isso, sim, é imperdoável.

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Abusadores

Tivemos recentemente uma campanha contra os “tarados” urbanos que importunam as pessoas. Alguns posts apelaram para soluções simplistas como a brutalidade e até para “linchamentos”. Isto é: combater machismo com mais machismo e força bruta.  

E veja bem: masturbar-se em ônibus ou na rua é um incômodo, podemos considerar ofensivo e inadequado, até mesmo uma “violência” moral, mas em nada semelhante à agressão ou ao estupro. Atos como estes precisam ser coibidos dentro da lei e da justiça. Se as leis são brandas ou ineficientes que sejam mudadas, mas não se pode apelar para condenações oportunistas diante da emergência de um escândalo público. Ponto.  

Entretanto, é evidente que os sujeitos que fazem isso em público são doentes, compulsivos, incapazes de controlar adequadamente suas ações mesmo diante das ameaças de violência. Eu vejo uma injustiça ao tratar esses sujeitos como depravados do mesmo tipo que assistia o julgamento feroz e cruel contra os alcoolistas no meu tempo de Pronto Socorro. “Se você quiser se controlar é fácil, mas você bebe porque é um vagabundo“. Esse argumento aparecia para qualquer compulsão, das drogas pesadas ao cigarro, mas era usada até para a homossexualidade, lembram? Não faz tanto tempo assim…  

Se hoje podemos chamar os alcoolistas, as cleptomaníacas e as pacientes com psicoses puerperais de doentes, entendendo que estas pessoas precisam de ajuda psicológica e às vezes médica (e não de porrada), porque deveria ser diferente com os masturbadores públicos??? Por que é tão difícil entender a enfermidade a que são submetidos?   Infelizmente eu entendo que qualquer tentativa de analisar racionalmente esta questão significa que achamos que a masturbação pública é “tolerável“, que não merece punição ou que “não causa dano algum“. Maldito maniqueísmo.

Em verdade tudo que desejamos é que TODOS possam ser julgados com um pouco mais de humanidade e compreensão.

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Privilégio

“Nascer cheio privilégios não é uma vergonha, assim como não é nascer sem eles. Vergonha é não reconhecê-los e não lutar pelo seu fim, sendo você um privilegiado ou um despossuído.” Janice Olatunji, “Into the Jungle of Privilege” Ed. Yoruba, pag. 135

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A Neurose Necessária

Eu sempre falei aos colegas que tentavam se aproximar da humanização do nascimento que a “curiosidade” não é uma motivação suficiente, realizar partos vaginais é muito pouco e seguir protocolos mais sensatos e embasados em evidencias, também. É necessário mais do que este desejo, mesmo sendo justo e correto; é preciso buscar uma mudança tão profunda quanto dolorosa e radical. É fundamental inserir o parto nos direitos reprodutivos essenciais das mulheres e garantir a elas o protagonismo pleno do seu exercício. Sem isso teremos apenas médicos curiosos e simpáticos, cujos esforços se limitam a sofisticar a tutela sem que jamais atinjam a profundidade de sua missão. É por isso, e por nada mais, que essa tarefa é tão complexa e difícil.

“Certa vez, eu queria interromper minha análise e perguntei a Lacan porque era tão duro iluminar nosso inconsciente. A resposta dele pode ser resumida assim: a verdade é sempre incômoda, e a psicanálise nos mostra o que preferimos ignorar. Quanto mais nos aproximamos de nossa verdade mais temos vontade de ignorá-la. Por isso mesmo ele desencorajava aqueles que o procuravam para se conhecer melhor. Isso não é o suficiente. É preciso que algo nos atrapalhe e no interrogue para sobreviver ao longo das sessões. É preciso almejar uma mudança radical.” (Gérard Miller)

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Padrões identificatórios

Quando uma jovem negra diz na TV que sempre quis ser médica porque sua mãe era da enfermagem e a “medicina exige mais estudo” há uma questão que cabe analisar. Existe aí uma lição para os identitarismos, tanto o feminismo quanto o racialismo: quando um sujeito muda de classe essa mudança se torna superior e mais importante do que suas identificações anteriores de gênero ou raça. Uma negra quando se torna médica muda de status e sobe na estratificação social, e suas conexões anteriores com o feminino ou a negritude ficam “desbotadas”.

O fato de ela ser uma médica negra que tratou a enfermagem de forma diminutiva é o centro do meu argumento. Como médica ela passou a se identificar com seus pares, e sua condição de mulher, negra, pobre e filha de enfermeira ficou para o passado. Agora ela está em outro padrão de grupo, com quem se identifica. É claro que a enfermagem não estuda “menos”, apenas estuda diferente, mas o fato de ela fizer isso tão facilmente é porque ela sucumbiu à narrativa comum da Medicina, preponderantemente preconceituosa e arrogante em relação às outras profissões da saúde.

O mesmo fenômeno acontece com médicas que atendem mulheres: as obstetras. Com quem se identificam elas quando confrontadas com a questão tensa da violência obstétrica? Com as vítimas, mulheres como elas, ou com os opressores, doutores como também elas são?

A resposta já sabemos, e nossa natureza de autopreservação sempre nos coloca naturalmente ao lado dos mais fortes

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Comentários de Ódio

As pessoas que frequentam as mídias sociais ainda não entenderam o sentido amplo dos “comentários” das notícias e matérias jornalísticas. É preciso compreender estes fenômenos e enxergá-los como o são. Eles são pura catarse e funcionam como processos exonerativos do sujeito e, como sabemos, dizem muito mais do comentarista do que do objeto do seu comentário. Não esperem compreensão, parcimônia e justiça de pessoas que trazem apenas ódio e desprezo em suas almas. Por outro lado aqueles que cultivam uma atitude de justiça e respeito em suas vidas farão comentários que refletem seus valores éticos mais profundos.

Quando entendermos isso talvez seja possível parar de se escandalizar com a brutalidade dos comentários. Vejo as pessoas ainda chocadas com eles quando a melhor postura talvez seja saudar estes contraditórios pois, se nossas opiniões causaram tanta reação agressiva e controvérsia, então deve ter tocado um ponto sensível da cultura. Nada é mais destrutivo para a criatividade do que o desejo de ser amado e admirado por todos.

Qualquer inovador – e em qualquer campo do conhecimento – precisa aprender a devotar especial carinho para o canteiro dos seus inimigos e adversários com o mesmo amor que cuida do jardim dos seus amigos e apoiadores.

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Catástrofes

É importante entender que médicos e advogados sempre desenganam seus clientes no primeiro encontro. Isso faz parte do “currículo oculto” da formação desses profissionais. Eu já falei com dezenas de pacientes que uma ou mais vezes na sua vida foram “desenganados” pelos profissionais que os atenderam. A razão para isso é simples e fácil de entender. Os profissionais pintam o pior cenário para os seus clientes, oferecendo sempre as mais adversas possibilidades. Desta forma, caso o cliente venha a morrer ou for condenado, a culpa será sempre decorrente das péssimas condições oferecidas de início; caso ele sobreviva ou seja inocentado – apesar dessas péssimas condições iniciais – as glórias só poderão ser oferecidas aos profissionais, os quais resgataram seus clientes das portas da morte ou de uma sentença terrível e injusta. Esta é uma postura em que o profissional só pode ganhar; por isso as palavras iniciais de médicos e advogados devem ser sempre relativizadas diante desse imperativo.

Jeffrey Griffith “From Life to Death, an Odissey of Desguise”, Ed. Lacrosse, pag 135

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A Preponderância do Afeto

Essa foto é de uma frase de Eugene Declercq e tem a ver com uma tese há tempo acalentada por mim, mas que não é aceita por muitos. Para mim as evidências científicas relacionadas à humanização do nascimento são absolutamente INSUFICIENTES para mobilizar o sujeito na direção de modificar suas ações, posturas, atitudes e – em especial – sua prática.

Em minha experiência pessoal, e no contato com todos os humanistas que conheci, essa transformação somente se processa através de um “choque afetivo”, no terreno das emoções, sobre elementos muito primitivos da formação da personalidade que são ativados por eventos especiais (pivotal events) capazes de resgatar estas características. A razão, por ocupar uma porção externa do encéfalo e não ser mais do que um verniz de intelecto a cobrir uma massa de pulsões e sentimentos, é incapaz de produzir tal revolução.

A construção de um humanista não se dá pela via da razão, mas pelo respeito e resgate das emoções mais básicas como a fraternidade, o carinho e a empatia. Entretanto, como um cimento unificador, as evidências científicas e toda a sua racionalidade vem depois para oferecer consistência e coesão a estas ideias.

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