Arquivo da tag: exclusão

Sionismo canhoto?

Nesta semana (10 outubro 2023) o professor e pesquisador Michel Gherman abandonou um debate sobre a crise da palestina na PUC do Rio de Janeiro. Na ocasião ele proferiu a seguinte frase “O Hamas é um grupo terrorista e o que aconteceu foi uma ação da pior espécie”. Neste debate é possível ver uma universitária, que afirma ser judia, protestando contra a presença do professor Gherman e dizendo que “95% (dos que estão aqui) não estão se sentindo representados por Michel Gherman”. Surge então a questão: como pode este professor defender uma proposta colonialista e racista como o sionismo, atacar a resistência palestina, aceitar a revanche sangrenta de Israel e ainda assim considerar-se de “esquerda”?

O proclamado “sionismo de esquerda” – um oxímoro ridículo – tem em Michel Gherman uma de suas mais potentes vozes há muito tempo. A narrativa usada pelos defensores da “conciliação” para o drama na Palestina é sempre a mesma: a culpa não é da ocupação, nem da opressão, muito menos da limpeza étnica. Não ocorre por causa do apartheid ou do racismo; a culpa é da extrema direita que governa o país na figura de Benjamin Netanyahu. Para estes personagens (que recebem um destaque incompreensível do jornalismo nacional, inclusive entre os progressistas) se a esquerda estivesse no poder não haveria tanta e tão disseminada violência, esquecendo que nas primeiras duas décadas da existência de Israel os governos eram encabeçados por elementos da esquerda israelense. Porém, apesar do esquerdismo de fachada, a brutalidade era a mesma que hoje testemunhamos – apenas sem câmeras nos celulares para testemunhar o horror dos massacres.

Entretanto, como toda dissimulação, a pretensa postura condescendente e “pacifista” destes falsos democratas desaparece como num passe de mágica nos momentos de crise. Os eventos apicais, seja no contexto dos sujeitos ou dos partidos, são pródigos em revelar nossa natureza mais íntima. Podemos enganar muitos sobre o nosso caráter durante períodos de calmaria e fartura, mas basta que a fome, a guerra, o caos social ou qualquer ameaça – interna ou externa – brote da placidez do nosso cotidiano para que surja a verdadeira essência, escondida sob as capas de civilidade.

Nesta exato momento Israel bombardeia sem dó ou piedade uma população composta majoritariamente por mulheres e jovens, indefesos dentro de uma prisão a céu aberto, privados das condições básicas para a sobrevivência de seu povo. Quando confrontado sobre o que faria no lugar de Netanyahu diante dos impasses da guerra contra o povo palestino, sua resposta se encontra em sintonia com os valores sionistas – excludentes, violentos e racistas – mais básicos: “Se tivesse chegado onde chegamos (faria) a mesma coisa. Só traria gente competente para assessorar”, disse em uma recente entrevista o professor Michel Gherman. Ou seja, mataria milhares de crianças, asfixiaria Gaza deixando-a sem eletricidade, água ou medicamentos, bombardearia hospitais matando médicos, enfermeiras e feridos e tudo isso em nome do regime racista, opressor e colonial criado no solo Palestino. Ou seja, para ele a manutenção do colonialismo brutal de Israel está acima dos valores humanos mais essenciais.

Não existe possiblidade de juntar no mesmo partido – ou no mesmo sujeito – uma proposta colonial e racista com a perspectiva solidária, humanista e justa que compõe a proposta socialista. Esses sujeitos pró Israel são direitistas, colonialistas e imperialistas até a medula dos seus ossos, mesmo quando seus discursos estão repletos de clichês pacifistas e lugares comuns pela “paz”. Não há verdade alguma em suas palavras quando falam de diálogo, diplomacia e entendimento entre as partes em conflito pois que para o sionismo a única possibilidade em seu horizonte é continuar tratando os Árabes como serviçais e cidadãos de segunda categoria. Pior ainda, gente (ou “animais”, como disse Yoav Gallant, ministro de defesa de Israel) que deveria deixar a Palestina ou morrer, pela expulsão ou pelo extermínio.

A mídia brasileira, acostumada a passar pano para essa falsidade, precisa acordar para o que estes personagens realmente representam. Não existe possiblidade de paz que não surja de uma pressão internacional intensa e sem tréguas contra o sionismo racista e colonial, contra o apartheid e contra o imperialismo. Dar ouvidos aos sionistas é atacar a autonomia e o sonho de democracia na Palestina, pois que o centro das reivindicações sionistas é a manutenção do colonialismo e da opressão do povo palestino.

FREE PALESTINE!!! 

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Palestina

Etarismo

Muitos casos tem nos mostrado um dilema evidente no nosso cotidiano: a proteção às pessoas de um determinado grupo supostamente oprimido (pessoas mais velhas, trans, gays, negros, etc) fatalmente as transforma em “pessoas especiais”, o que, ao meu ver, retira delas o protagonismo. Como já foi dito centenas de vezes, quem é vítima não pode ser protagonista; o primeiro é objeto enquanto o segundo é sujeito. Em diversas oportunidades vemos pessoas de mais idade tornando-se (ou sendo tratados como) sujeitos que precisam de “cuidado” e, portanto, incapazes de cuidar de si mesmos. Entretanto, existem muitas pessoas nesta faixa etária que se rebelam contra esse tipo de atitude, que em verdade dissimula uma perspectiva diminutiva fantasiada de “atenção”. Lembro muito bem do meu pai em férias que se negava a fazer “ginástica na praia” por medo de ser cuidado e tratado de forma carinhosa pelos professores, como se ele fosse um bebê incapaz de fazer os exercícios sem supervisão.

A proteção excessiva é a face cor de rosa da exclusão. Por isso a proteção abjeta à estudante de 44 anos fui um exemplo pedagógico de “suco de etarismo concentrado”. Lembrem apenas das crianças que recém aprenderam uma habilidade (amarrar os sapatos, por exemplo) e da sua reação indignada e saudável em direção à autonomia quando tentamos fazer isso por elas. “Eu não sou mais bebê”, dizem eles.

Estas ações também me fazem questionar a proteção oferecida às gestantes que, assim que acessam o hospital, são colocadas em cadeiras de rodas. Muitas são tratadas como “princesas”, sem se dar conta que esse tratamento de exceção apenas revela o (pré)conceito que temos delas. No hospital são vistas como deficientes, dotadas de “fraqueza”, “fragilidade”, e incompetência, algo que elas carregam pela sua essência feminina – fraca e dependente. Ou seja, não é possível empoderar e fortalecer a maternagem se continuarmos a tratar as mulheres – e em especial as gestantes – como bonecas frágeis que demandam cuidados especiais.

Michael Klein, um colega médico do Canadá 🍁 cuja esposa sofreu um grave acidente automobilístico, certa feita me contou sobre a trajetória de recuperação de sua esposa. Depois de se recuperar do acidente, e sabendo da sua condição de deficiência pelo resto da vida (ela ficou paraplégica), pediu ao marido que a deixasse sozinha por duas semanas na sua casa de campo. Disse a ele para não aparecer por lá em nenhuma circunstância. Garantiu a ele que tinha um sistema de emergência que seria acionado caso necessário, mas que não tinha interesse em usar. Precisava usar este período para provar para si mesma que era capaz de continuar a viver apesar de suas óbvias condições de dependência. Não desejava se colocar na posição cômoda de cobrar do mundo um cuidado especial. Seu objetivo era fugir da atitude sedutora “agora sou deficiente e mereço ser cuidada”. Não aceitava ser objeto de cuidado dos outros, mas conquistar autonomia para cuidar de si mesma. Ou seja, assumir a posição de sujeito, com limitações e dificuldades, mas sem desistir de alcançar autonomia e protagonismo em sua vida.

Eu fiquei indignado e triste com a atitude da estudante “velha”. Sim, velha, pois foi assim que ela mesma se reconheceu. Sua ação foi um desserviço para todas as outras mulheres maduras que chegam ao ensino superior, que a partir de agora serão tratadas como deficientes, incapazes de suportar as dificuldades que qualquer outro estudante precisa encarar. Fosse ela a esposa do meu colega e iria conversar com as meninas, explicar sua vida, mostrar suas conquistas, apresentar a família, convidar para um café, mostrar onde mora e criar proximidade com as garotas. Ou responderia de forma desaforada para as “pirralhas”, mas não se fecharia como uma ostra. Mostraria sua força e o quanto é forte para suportar por si mesma as críticas e gracejos inevitáveis na vida social. Infelizmente ela preferiu ser a princesa frágil que chamou o príncipe (o Estado, a Justiça burguesa) para resolver o problema por ela.

Para ver como esta questão pode ser vista com os olhos do humor, veja aqui

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

A esquerda que não aprende

Ontem (11/08) ocorreu a leitura da “carta pela democracia“, que foi lida em mais de 20 capitais do país, numa festa pelas liberdades democráticas. Entretanto cabe a pergunta: que democracia é esta que os participantes desejam? Que tipo de manifestação recebe apoio da USP, através do seu Reitor Carlos Alberto Carlotti, Telma Andrade, a secretária da CUT, a representante das lutas antirracistas Beatriz Lourenço Nascimento e muitos militantes de esquerda, mas também Blairo Maggi (homem forte do agronegócio), Guilherme Peirão Leal (o presidente da Natura), Eduardo Vassimon (banqueiro ligado ao BBA), Horácio Piva (da Klabin), Walter Schalka (da Suzano), Roberto Setúbal (do Itaú), Pedro Moreira Salles (da Febraban) e muitos outros bilionários que abrilhantaram com suas fortunas o manifesto lido ontem em nome da democracia e das liberdades constitucionais.

Com esta pluralidade de integrantes cabe a pergunta, que nos parece mais do que natural, mas necessária: a que tipo de “democracia” se referem estas personalidades? Como podemos imaginar que a mesma democracia seja defendida pelos trabalhadores, antirracistas, representantes da universidade e ao mesmo tempo por banqueiros e industriais bilionários que controlam o país e o mantém como eterna esperança de “nação do futuro”?

A resposta triste é que sobra um ilusório fervor patriótico onde falta consciência de classe. A democracia que serve aos banqueiros e industriais não pode ser a mesma que anima a militância de esquerda, pois para aqueles a democracia é o respeito aos seus privilégios intocáveis, enquanto para esta existe o desejo de que as riquezas imensas desse país sirvam para melhoria de vida de sua população. Esta democracia liberal, que interessa à classe burguesa e que acredita nos mecanismos eleitorais para a solução dos grandes dilemas nacionais, não pode ser a motivação da classe trabalhadora. A realidade não nos permite ter dúvidas quanto à potencialidade limitada dos mecanismos eleitorais e representativos para suplantar o capitalismo no Brasil. Mesmo os governos progressistas do Partido dos Trabalhadores, que operaram transformações mínimas na questão da distribuição de renda, se mostraram insuficientes para debelar a tragédia da exclusão, e bastou a chegada de um maníaco à presidência – através de um claro golpe institucional e midiático – para que as conquistas tímidas da esquerda fossem jogadas no ralo.

É necessário que as esquerdas percebam o quanto estas “cartas”, “abaixo-assinados”, “marchas pela paz” e “manifestos” são inócuos para os donos do poder. Tais manifestações servem como “cortina de fumaça”, uma fantasia de democracia para esconder o corpo disforme da tirania. Funcionam como a representatividade negra na cultura, que exalta personalidades e exibe uma “face de diversidade”, mas que jamais desafia o modelo de exclusão que nos atinge através de um rígido sistema de classes que serve se presta à acumulação de dinheiro e poder.

As armadilhas e arapucas da democracia liberal precisam ser expostas e denunciadas. Não há como compor com banqueiros e industriais, pois que os seus interesses são antagônicos àqueles das classes operárias e da imensa maioria da população brasileira. Abandonar a ilusão de uma “frente ampla” com a burguesia é um passo à frente na plena consciência de classe, elemento importante e essencial para as lutas de libertação.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Política

Partidos identitários

O que pensar disso? Um partido feminista? Ou seja, um partido de mulheres. O que pensar de um partido que se produz pela exclusão de um gênero? Mas se isso for realidade, por que não um partido só de negros ou gays, pelas mesmas razões? Que tal um só de judeus? Isso me parece o identitarismo levado às últimas consequências, em uma sociedade de “cada um por si”, pelo seu grupo, cada vez mais isolados com propostas centradas em seus minúsculos segmentos.

Minúsculos mesmo, até porque dentro do “partido feminista” haverá uma ala gay. E também uma ala negra. E dentro dela uma ala negra-gay. E mais uma ala feminista trans. E todas vão se odiar e se combater porque é da natureza humana lutar por visibilidade e espaço. É o que vemos dentro do feminismo, mas também no movimento negro, no socialismo e no liberalismo. A fragmentação infinita leva ao grupo de si mesmo.

Se a luta feminista é válida e nobre ela também é uma luta de mulheres e para mulheres, e não necessariamente uma luta pela sociedade. Para isso existem propostas mais abrangentes que não nos separam em sexo, raça, cor de pele ou religião. Um partido feminista seria, para mim, uma profunda aberração, tanto quanto o seria um partido negro ou gay. No meu ver as mulheres deveriam tomar de assalto os partidos centrados em ideias e propostas para a sociedade inteira, e não para um gênero. Também não por qualquer outra identidade. O fato da luta ser “nobre” não torna um partido em seu nome justo ou adequado.

Alias… o partido feminista seria de direita? Esquerda? Pró ecologia? Socialista? Mas… Como votaria uma feminista ferrenha de esquerda num partido feminista de orientação liberal? O que pesaria mais, sua filiação com o feminismo ou sua visão de sociedade? Como se insere este partido na questão da luta de classes? Um partido feminista, no meu modesto ver, composto apenas por mulheres de forma institucional (e não como é hoje, onde as mulheres têm pleno acesso, e apenas são menos votadas por questões da cultura patriarcal) é um absurdo. Será nanico exatamente por enxergar a sociedade por um funil de gênero, tão inaceitável quanto um partido constituído apenas por imigrantes, aposentados, negros ou gays. Na minha opinião, é um desserviço ao próprio ideário feminista, que prega pela diversidade e pela inclusão. .

O fato de haver um problema sério e as lutas por equidade e justiça serem nobres e necessárias não impede que as propostas na defesa desses temas possa ser errada. Um partido construído com base na exclusão seria um fracasso. Entretanto, acho surpreendente que algumas pessoas se deixem seduzir por este tipo de identitarismo radical. Sabe onde encontramos isso? Em Israel. Sabe onde ele se desenvolveu a partir de 1948? Na África do Sul. Na origem havia um sentimento nobre de proteger uma parcela oprimida (judeus na Europa e uma minoria branca da sociedade africaner), mas o que se criou foi monstruoso. Sabem que na Rússia foi criado um partido dos bebedores de cerveja? Pergunto: o que isso significou de positivo para a política russa?

Um partido deve ser promotor de propostas para a sociedade como um todo e não para representar apenas um segmento dela, mesmo que majoritário!!! Eu não vejo nenhum problema em que as mulheres criem movimentos, ONGs, frentes parlamentares, associações cívicas e o escambau. O que não posso aceitar é um partido cuja proposta seja excludente (olha o Paulo Freire aí de novo) e que governe apenas para a parcela a qual representa.

Alias… quem diz isso é Bolsonaro quando vocifera “As minorias devem se curvar às maiorias”. É Bolsonaro que diz governar apenas para quem votou nele. Um partido feminista é um partido para as mulheres e não para a sociedade. Isso, no meu modesto ver, é inaceitável e agride as próprias bases do feminismo. Como eu já disse, apesar de ser uma trajetória lenta, negros, mulheres e gays deveriam tomar de assalto os parlamentos através das agremiações políticas e por meio de propostas para a sociedade, e não apenas através de sua visão identitária.

“Ahhh, mas é demorado. Ahhh mas o mundo é machista”. É verdade, mas um partido como esse jamais acabaria com o machismo. Pelo contrário, produziria um efeito rebote contrário na sociedade.

A propósito… É claro que há espaço nos partidos para as mulheres!!! Por lei 30% dos candidatos precisam ser mulheres!!! Muitas são catadas à unha para preencher as vagas. O problema é a relutância das próprias mulheres em votar em mulher, mas isso não termina com decreto, e sim com educação, paciência, formação e combate sistemático ao modelo patriarcal excludente da sociedade. Creio mesmo que os políticos fazem menos do que deviam, mas são votados por gente que não se importa muito com isso. As minorias deveriam se revoltar, mas não através de projetos anti democráticos ou excludentes. Aliás…. essa é a visão anti política de Bolsonaro. “Já que os políticos são uma porcaria vamos governar de forma autoritária e com militares”.

É isso que queremos?

Para exigir respeito não é necessário criar um partido excludente. Isso é absurdo. Além do mais é da essência dos partidos dominar a cena política para implementar suas ideias para toda a população – e não apenas uma parte dela, mesmo que majoritária.

A criação de um partido de mulheres, feminista e excludente é, para mim, um anátema e uma quimera. Não é a toa que foi rejeitado pelas democracias de todo o mundo. Um partido assim seria como o Nasionale

Não se acaba com a violência com mais violência e não se extermina a exclusão com mais exclusão. Paz e inclusão são as respostas, mesmo quando mais são reconhecidamente mais demoradas.

Os “homens cis” adorariam esse partido. Finalmente poderão dizer que seus medos tinham fundamento. Dirão, e com razão, que as mulheres ameaçam a democracia criando um partido que, se for vitorioso, governará apenas para uma parcela da população, marginalizando metade do país – que jamais poderá participar das decisões.

Pensem nisso…

Deixe um comentário

Arquivado em Ativismo, Política

Invasões

Apesar da minha promessa de início de ano, baseada em inúmeros erros do passado, voltei a cometer o mesmo equívoco lamentável de tantos anos: debater com as vítimas.

Ainda hoje vi a notícia do assassinato de uma mulher (servidora pública da guarda civil) dentro do seu automóvel enquanto aguardava a chegada de sua filha de 7 anos. Uma morte estúpida, inaceitável e dolorosa, pois atinge todo aquele que vive em uma cidade. A morte de Ana Paola é um pouco a morte de todos nós.

O pior, como sempre, são os comentários, mas isso pode ser entendido como a explosão de sentimentos advindos da identificação dessas pessoas com a mulher que foi vítima, ou com seus familiares enlutados. O problema é que a dor e a indignação de muitos acaba se transformando numa explosão de ressentimento e ódio, sem que haja qualquer tipo de anteparo civilizatório, pelo menos em tempo de debate cibernético. Qualquer forma de linchamento é válida; julgamentos sumários são propostos e a vingança contra o meliante passa a ser muito mais importante do que a solução de um problema – a violência urbana – que existe há séculos e que se incrementou nas últimas décadas. Pior: qualquer tentativa de estabelecer um diálogo, ou mesmo um pedido de que haja ponderação acarreta o rechaço imediato dos vingadores e justiceiros. A frase clichê nessas circunstâncias é: “Ah, está com pena? Então leve para casa.” Pedir que as pessoas entendam que um crime não justifica outro parece, aos ouvidos das vitimas, o mesmo que defender a prática criminosa. Dizer que o assassinato dessa moça não significa que temos que baixar a idade penal para 10 anos (sim, isso foi proposto), ou que a pena de morte deveria ser instituída, é o mesmo que dizer que essa morte não representa nada e que o criminoso é inocente.

Para a vítima, movida pela intensa emocionalidade do momento, não existe ponderação ou razoabilidade, apenas paixão e dor. Nestes casos somos TODOS vítimas, e a manifestação popular é a síntese dessa sensação de medo e insegurança.

Resolvi que nada deveria dizer, além de um breve comentário:

Os comentários fascistas acima são tão tristes quanto a notícia. Os defensores do linchamento são apenas criminosos que ainda não tiveram sua oportunidade ou circunstância para delinquir. É muito triste ver do que é feita a “opinião pública” do nosso povo. Assassinos em potencial.

Escrevi e me retirei.

Podia ter ficado quieto, até que uma ativista da humanização escreveu um texto dizendo que o parto não é lugar para “doulos”, pois este espaço é feminino e deve ser assim preservado. Imediatamente reconheci nesse texto uma forma característica de sexismo com sinal trocado: a imposição externa de uma “cartilha”, feita para que as mulheres sigam um comportamento de acordo com o ideário feminista, mas sem levar em consideração o que aquela específica mulher entende como sendo sua necessidade ou desejo. Tentei explicar que nós homens fomos obrigados a testemunhar a invasão feminina de espaços historicamente destinados aos homens e que esta ocupação de funções e posições ocorreu pela luta por igualdade e equidade que as mulheres empreenderam. A entrada das mulheres na medicina, no direito, na administração e na política – mesmo estando ainda longe do ideal – foi um movimento especial na história da cultura ocidental, que ainda está atrasada no oriente. Minha posição, entretanto, é que, assim como as mulheres puderam empreender esta benfazeja invasão, também os homens poderia ocupar os espaços que historicamente as mulheres detinham.

Entre eles o cuidado de gestantes.

Se achamos que a equidade deve ser buscada e incentivada ela certamente é uma via de duas mãos. Se desejamos ocupar espaços antigamente determinados como fixos para o sexo masculino (lutas, guerras, cirurgia, futebol, mecânica, etc.) porque não admitir o parto como um território livre para a escolha das mulheres? Porque criar uma “reserva de mercado” para a ação feminina, quando nenhuma destas reservas se admite para os homens?

Pareceria até um argumento razoável, mas lembrei que numa sociedade machista como a nossa, ainda dominada pelo patriarcado, as mulheres são todas vítimas. Pressionadas e constrangidas por uma sociedade injusta podem debater da posição subjetiva de vítimas, usando de forma liberal a emocionalidade e a violência verbal que jamais é adequada em um debate racional, principalmente se considerarmos que os debatedores eram amigos.

Erro grosseiro da minha parte. Fui criticado e ofendido de forma desnecessária, em agressões “ad hominen”, por pessoas que deveriam estar do mesmo lado na luta pelas mulheres. Meu engano foi, mais uma vez, tentar tratar de forma racional temas que são extremamente doloridos para algumas mulheres. Mostrar as contradições do discurso de algumas feministas é, para elas, o mesmo que queimar parteiras e bruxas.

Não há meio termo: ou você participa do linchamento ou é um “mascus” asqueroso enganador de mulheres

Deixe um comentário

Arquivado em Medicina, Violência