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Terroristas

Qualquer um que tenha lido não mais do que cinco minutos sobre a história do Nakba, sobre o Hamas e a respeito da luta de 76 anos pela libertação da Palestina não repetiria o que sionistas vomitam nas postagens pró-Israel É necessário compreender apenas que aqueles que lutaram pela libertação de Paris para tirar seu país das mãos dos nazistas, os que enfrentaram os ingleses para a independência americana, os que se rebelaram contra Portugal para conquistar a independência de Moçambique e Angola e os que expulsaram os franceses do norte da África para dar fim à opressão francesa na Argélia também foram chamados de “terroristas”, apenas porque as nações opressoras se arrogam o direito de colocar esse rótulo em quem luta contra a sua dominação.

Terrorista mesmo é Israel, até porque a própria criação desse enclave europeu e branco no território da Ásia Ocidental só foi possível a partir de atos de brutal terrorismo. O atual massacre covarde em Gaza não é o primeiro patrocinado pelos sionistas na Palestina e não será o último. Foi precedido por muitas tragédias conduzidas pelos monstros que controlam Israel, como o massacre de Deir Yaseen. Houve também massacres em Haifa em 1947 (nesta época foram mais de 20), e tantos outros, como a emblemática explosão do Hotel King David.

A explosão desse hotel foi um ataque ocorrido na cidade de Jerusalém em 22 de julho de 1946, durante o Mandato Britânico da Palestina, tendo como perpetradores os membros de uma organização armada sionista que lutava pela criação de um Estado racista e etnocrático, apenas para judeus, que viria a se chamar “Israel”. A milícia terrorista envolvida era denominada Irgun (diminutivo de Irgun Zvai Leumi, Organização Militar Nacional). O hotel servia de residência dos familiares de funcionários do governo britânico na Palestina e o ataque foi organizado por Menachem Begin, que seria mais tarde primeiro-ministro de Israel por dois mandatos. O ataque ao Hotel Rei Davi resultou na morte de 91 pessoas (28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e 5 outros mortos) e ferimentos graves em outras 45 pessoas. Aliás, também estavam lá os terroristas David Ben-Gurion, Menachem Begin e Yitzhak Shamir, que dirigiam, respectivamente, os grupos terroristas Haganah, o Irgun e o Bando Stern. Alguns anos depois, todos seriam primeiros-ministros de Israel, sem que qualquer um deles tenha jamais sido punido pelos atos hediondos e os crimes contra a humanidade por eles cometidos. Já pensou o que diríamos se o nosso presidente fosse um terrorista que um dia planejou a explosão de uma adutora para forçar o aumento dos salários de militares? Bem, não deveria ser nenhuma surpresa para nós…

Chega a ser estúpida qualquer afirmação de que a resistência armada de um povo, que vivia naquela região há milhares de anos, possa ser chamada de terrorista, enquanto os invasores da Europa sejam todos eles considerados como tendo um direito natural àquela terra. O Hamas nada mais é do que um grupo de bravos guerreiros que tentam há 7 décadas o reconhecimento de sua nação, combatendo o imperialismo e se defendendo dos massacres, as mortes, os sequestros de crianças, as torturas, os assassinatos e os abusos sexuais contra seu povo. Antes de chamar os palestinos de “terroristas” pense primeiro o que você faria se o seu pai fosse morto, sua irmã abusada, sua mãe morresse por falta de remédios e seus primos e tios estivessem em uma masmorra sionista pelo simples crime de serem palestinos. E se você acha exagero, aqui estão em ordem cronológica os principais massacres cometidos contra a população cristã e muçulmana da Palestina.

PALESTINA LIVRE!!!!

1. Haifa – Massacre – 6/3/1937, 6/7/1938, 25/7/1938, 26/7/1938, 27/3/1939, 19/6/1939, 20/6/1948
2. Jerusalém – Massacre -1/10/1937, 13/7/1938, 15/7/1938, 26/8/1938, 7/1/1948
3. Balad Al-Shaykh – Massacre – 12/6/1939
4. Al Abbasiyah – Massacre – 13/12/1947
5. Al-Khasas – Massacre – 18/12/1947
6. Jerusalem – Massacre – 29/12/1947
7. Jerusalem – Massacre – 30/12/1947
8. Balad Al-Shaykh – Massacre – 31/12/1947
9. Al-Sheikh Break – Massacre – 31/12/1947
10. Jaffa – Massacre – 4/1/1948
11. Al-Saraya – Massacre – 4/1/1948
12. Semiramis – Massacre – 5/1/1948
13. Lydda – Massacre 1948
14. Al-Saraya Al-Arabeya – Massacre – 8/1/1948
15. Ramla – Massacre – 15/1/1948
16. Yazur – Massacre – 22/1/1948
17. Haifa – Massacre – 28/12/1948
18. Tabra Tulkarem – Massacre – 10/2/1948
19. Sa’sa’ – Massacre – 14/2/1948
20. Jerusalem – Massacre – 20/2/1948
21. Haifa Masacre – 20/2/1948
22. Saliha – Massacre 1948
23. Al-Husayniyya – Massacre – 13/3/1948
24. Abu Kabir – Massacre – 31/3/1948
25. Cairo Train – Massacre, Haifa – 31/3/1948
26. Ramla – Massacre – 1/3/1948
27. Deir Yassin – Massacre – 9/4/1948
28. Qalunya – Massacre – 14/4/1948
29. Nasir al-Din – Massacre – 13/4/1948
30. Tiberias – Massacre – 19/4/1948
31. Haifa – Massacre – 22/4/1948
32. Ayn al-Zaytoun – Massacre – 4/5/1948
33. Safed – Massacre – 13/5/1948
34. Abu Shusha – Massacre – 14/5/1948
35. Beit Daras – Massacre – 21/5/1948
36. Al-Tantura – Massacre – 22/5/1948
37. Abu Shudha – Massacre 1948
38. Al-Dawayime – Massacre 1948
39. Khan Yunis – Massacre 1955
40. Jerusalem – Massacre 1967
41. Sabra and Shatila – Massacre 1982
42. Al-Aqsa – Massacre 1990
43. Ibrahimi Mosque – Massacre 1994
44. Jenin Refugee Camp April 2002
45. Gaza – Massacre 2008-09
46. Gaza – Massacre 2012
47. Gaza – Massacre 2014
48. Gaza – Massacre 2018-19 & 2021
49. Gaza Genocide 2023 em andamento

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Arquivado em Causa Operária, Palestina

Sanguinários

Quando escuto as tradicionais acusações dos direitistas e liberais aos “ditadores” comunistas (ou não) e suas listas de mortes – cujos números são sempre criados em “freestyle” ou usando dados do instituto TireyDoku – eu exijo que qualquer avaliação da história destes personagens não ceda às pressões do anacronismo e avaliem o contexto em que estas revoluções foram estabelecidas.

Olhem, como exemplo claro, a história da China e o “século de humilhações” pelo qual passou. Anos de exploração estrangeira, repletos de abusos e o confisco de suas riquezas. Pensem nas derrotas humilhantes nas Guerras do Ópio, a pobreza do seu povo, a espoliação produzida pelos colonizadores ingleses e ficará mais fácil compreender a necessária reação para a liberdade do povo chinês. Sem entender a realidade das múltiplas invasões estrangeiras e as lutas internas fica mais complicado colocar em contexto a libertação da China em 1949 através da guerra civil e a “grande marcha” de Mao Zedong. Entretanto, a ninguém seria lícito imaginar que a entrega da China aos chineses seria feita sem os tradicionais massacres que as nações imperialistas impõem como punição aos povos dominados. É necessário também lembrar o que era a China em meados do século XX e o quanto sofreu durante a invasão japonesa, a perda da Manchúria na segunda guerra mundial e os 14 milhões de mortos que sucumbiram nessa guerra brutal contra o domínio nipônico.

Como não lembrar a história da Coreia, a ocupação japonesa, a tentativa de extermínio de sua língua, de sua história e até dos seus patronímicos? A invasão americana na “Guerra da Coreia” (ou Guerra da Libertação, como é referida na Coreia Popular) exterminou 1/3 da população civil, mandando o país para a idade da pedra com a destruição de todas a sua infraestrutura (a exemplo do que se faz hoje em Gaza) e só quando estudamos a crueldade assassina das forças imperialistas é possível entender a história de Kim Jong-Un, seu pai, seu avô, sua gente e a luta por liberdade e autonomia do povo coreano. Não é justo esquecer o que a França fez com o Haiti e com a Argélia, uma história de dominação repleta de atos da mais absoluta selvageria e covardia. Como apagar a história brutal do Congo, e os 10 milhões de mortos sob o domínio da Bélgica do Rei Leopoldo. Portanto, seria de esperar que a resistência pela liberdade em resposta à esta brutalidade só poderia ser igualmente feroz.

É preciso ter em mente que 14 nações invadiram a União Soviética durante a “guerra civil” (na verdade, guerra de independência) e isso facilita para entender a necessidade que havia de lutar de todas as formas possíveis, pois isso representava a única possibilidade de manter a unidade nacional. Que dizer dos 20 milhões de mortos da União Soviética na luta vitoriosa contra o nazismo de Adolf Hitler e o preço pago pelos soviéticos para que o mundo se livrasse do fascismo da Alemanha? Em Cuba a revolução se estabeleceu na luta contra um governo corrupto e burguês, que mantinha a ilha como um bordel americano e uma gigantesca fazenda de cana de açúcar, mantendo a população miserável, oprimida e subjugada pelos latifundiários e seu sistema semi-escravista. Por acaso estes poderosos, apoiados pelo governo americano, entregariam a soberania de Cuba para os cubanos sem luta e sem violência? Seria condenável a reação violenta de um povo que por séculos sofreu de forma desumana?

E o que falar sobre o Hamas, este partido politico e seu braço armado (a brigada Qassam) e os demais grupos de resistência palestina que lideram uma luta de 76 anos contra os canalhas sionistas, racistas e abusadores, terroristas da pior espécie, violadores e assassinos de crianças? Há como analisar suas ações, em especial o 7 de outubro de 2023, sem levar em consideração as humilhações impostas pelos invasores sionistas nas últimas sete décadas? Há como apagar uma parte da história e manter apenas aquela que nos interessa? Por acaso eram “terroristas” aqueles que atacaram a realeza na França na queda da Bastilha, criando as fundações do mundo burguês no qual hoje vivemos? Ou seriam eles tão somente os bravos lutadores que resistiram ao poder despótico e injusto da cleptocracia monárquica? E a resistência francesa que lutou contra os nazistas em Paris? Seriam terroristas aqueles que lideraram o levante do gueto de Varsóvia? Ou a história provou que eles eram lutadores pela liberdade de seus povos? Será mesmo que a independência dos Estados Unidos, libertando-se da Inglaterra, foi feita com abaixo-assinados, ou foi como todas as lutas libertárias – a ferro e fogo? Ora, não sejamos tolos e ingênuos.

Isso não significa que as guerras de libertação não contenham ações bárbaras violentas, abusivas e até criminosas. Porém, quando vejo críticas a estes eventos do passado é impossível não lembrar de Bertold Brecht: “Dos rios dizemos violentos, mas não dizemos violentas as margens que os oprimem”. Do Hamas reclamamos a fúria, mas fechamos os olhos diante dos 76 anos de massacres, torturas, assassinatos, sequestros, o extermínio de famílias inteiras, o apartheid e a dominação opressiva por parte do Estado terrorista de Israel. O mesmo se pode dizer de todos os grupos de resistência que se levantaram contra a opressão. É preciso aprender a história dos povos para entender suas lutas e seus dilemas. E por fim é fundamental conhecer os personagens que são criticados pelos reacionários para saber em qual contexto eles atuaram.

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Lutas indispensáveis

Não existirá resultado algum na busca pela diminuição das taxas obscenas de cesariana se as preocupações com o tema se mantiverem concentradas em profissionais da saúde – em especial com os médicos que controlam o parto desde a derrocada da parteria na primeira metade do século XX. A experiência de mudar a tendência de nascimentos cirúrgicos “de cima para baixo” ocorreu no Brasil e se mantém um fracasso. Já escrevi muito sobre as “Caravanas da Humanização” e o fato de que elas se assentaram sobre pressupostos idealistas, que não contemplam a materialidade das relações de poder.

É mais do que óbvio que os médicos jamais mudarão um sistema que os beneficia. A obstetrícia cirúrgica, que aliena as “pacientes” de qualquer atuação efetiva na condução de seus partos, é o ápice da transformação das mulheres em contêineres fetais, cuja abertura só compete aos profissionais da intervenção. Desta forma, os médicos jamais poderão liderar um movimento de mudança no cenário do nascimento que, em última análise, provará o erro de oferecer a esta corporação o comando do processo de parto. Quaisquer mudanças que porventura venham a ocorrer só terão sucesso se vierem das próprias mulheres, quando forem devidamente esclarecidas da expropriação do parto produzida pela tecnocracia. Enquanto as mulheres forem doces repositórios do “saber magnânimo” da obstetrícia corporativa, estarão sempre à mercê de interesses (econômicos, profissionais, legais, circunstanciais, sociais, etc.) que não são necessariamente os seus.

Há quase 30 anos eu repito que não haverá uma revolução do conhecimento, com evidências científicas e dados de morbimortalidade, capaz de produzir uma mudança de comportamento, muito menos no que concerne a um fenômeno que ocorre no corpo das mulheres – território de eternas disputas pelos significados amplos para nossa espécie. Tal transformação nunca ocorreu na história humana. Por acaso os Franceses se retiraram da Argélia porque ficou comprovado que o colonialismo é imoral e genocida? Israel vai “se dar conta” da indecência do apartheid e da limpeza étnica e discutir com os palestinos a plena democracia da Terra Santa? O imperialismo acabará pelo amor dos Estados Unidos à paz e à livre determinação dos povos?

A resposta a todas estas perguntas é um sonoro não. A única possibilidade de mudança no modelo intervencionista e alienante da obstetrícia será através da luta. Não existe possibilidade de conciliação; a Medicina tomou as rédeas do nascimento humano retirando esta função das mãos das parteiras em quase todo o mundo ocidental, e não vai entregar este domínio graciosamente. Esta retomada não se dará sem conflito, e as únicas “guerreiras” capazes de vencer a batalha do parto são as próprias mulheres, auxiliadas pelos batalhões de “combatentes auxiliares” como doulas, psicólogas, obstetras, enfermeiras, sociólogas, psicanalistas, gestoras, epidemiologistas etc. Não haverá um consenso internacional capaz de garantir o direito ao parto normal sem que haja uma disputa entre aqueles que apostam na suprema alienação dos corpos grávidos e aqueles que lutam pelas escolhas informadas e pela liberdade de parir.

Espero que alguém além de mim perceba que a luta pelo parto fisiológico não será travada nas academia, mas na arena política das lutas pela liberdade e pela autonomia.

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Velhos

Quem entrasse no escritório do meu pai encontraria na pequena sala do seu apartamento uma arrumação digna de um virginiano. Livros, computador, aparelho de som, quadros na parede, impressora, todos colocados de forma milimétrica e meticulosa. Aliás, quando confrontado com o fato de ter TOC e ser do signo de virgem ele sempre dizia uma frase geniosa sobre o tema: “Não acredito em zodíaco ou horóscopo, mas reconheço que, por coincidência, eu sou a mais perfeita descrição do meu signo”.

Uma coisa apenas chamaria a atenção na obsessiva disposição dos objetos. Na sua mesa, sob um modernoso mouse ergonômico, repousava um “mouse pad” com uma gravura chamativa. Tratava-se de uma voluptuosa nádega feminina em “close up”, que emergia de uma piscina. A primeira vez que a vi dei uma gargalhada e confrontei meu pai dizendo: “Que é isso, pai? Um homem sério, pai e avô, com essa pornografia em cima da mesa? Uma bunda?” A resposta dele veio com uma risada e um levantar de ombros. “Bunda?” perguntou ele. “Nada disso, trata-se apenas de uma castanha. Você está vendo errado”, mas ambos sabíamos do que realmente se tratava.

Anos antes ele havia me falado sobre uma moça que encontrou no elevador do prédio, isso quando ele já havia ultrapassado há um bom tempo a barreira dos 80 anos. Disse para mim: “Era uma moça muito linda, e conversou comigo sorridente, como se eu fosse obviamente inofensivo. Claro, quem temeria um velhinho?”. Quando escutei o relato do breve encontro eu o lembrei da frase do Sartre que dizia entender o quanto as pessoas o percebiam velho, mesmo quando ele assim não se sentia. Ele sorriu e completou afirmando que “a idade chega primeiro para quem nos vê, depois para o espelho, e por fim para nossos ossos e a danada da memória”. Parou um tempo refletindo, sem dizer nada, como a tentar lembrar de um sentimento, ou recordar um sabor delicioso. Por fim me disse esta frase que até hoje habita minha memória: “O desejo nunca nos abandona, acredite. Reconhecemos a falência física, admitimos nossa falta de atrativos; porém ele não morre, não desiste, não se entrega”. Sorriu para mim como a dizer: “Um dia você vai entender, mas só quando chegar lá”.

Meu pai, quando estava na casa dos 30 anos, foi estudar em Gurcy-le-Châtel, uma comuna distante 100 km de Paris, num convênio com as centrais elétricas do estado. Durante os 6 meses que passou por lá foi colega de quarto de um senhor de mais de 60 anos da República do Mali, na época uma colônia francesa que recém havia conquistado sua independência da França. Para ele esta foi uma convivência muito gratificante e reveladora, e durante anos ele me contou das conversas que teve com aquele homem. Uma das que mais me impressionou foi quando, durante as brincadeiras entre os jovens estudantes de várias partes do mundo, este senhor virou-se para meu pai e disse, com ar sério, porém conformado: “É impressionante a desconsideração dos jovens com a sexualidade dos velhos”. Aquela observação marcou meu pai em sua juventude, e deixou marcas na minha também.

Lembro dessas passagens do meu pai porque agora é a minha vez de ficar velho. Eu já ultrapassei os limites da gratuidade do ônibus e já tenho garantido estacionamento mais próximo da porta do shopping, e por esta razão, já posso entender o que meu pai queria dizer. Percebo, como ele e seu amigo africano, que nossa sociedade teima em não reconhecer a sexualidade dos idosos, como se o desejo um dia pedisse as contas e abandonasse nossa alma sem sequer se despedir; como se pudesse criar asas e abandonar sua morada. Não, em verdade ele nunca nos abandona. Enquanto houver algo de vida em nosso corpo ele estará lá, nos impulsionando. Em verdade, talvez sequer a morte física seja capaz de amainar sua energia.

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Champagne

Quando a gente fica velho as coisas passam a ter um valor relativo. É mais difícil ficarmos vivamente emocionados com um show de música ou mesmo um filme, mesmo que sejam realmente bons.

Lembro do meu amigo, Major Rogério, que me contava da vez em que foi convidado a experimentar uma Champagne de uma cave exatamente dessa região região da França. O anfitrião vinha de um longa família de tradicionais vinicultores franceses na região mais famosa do mundo nesse cultivo e nessa prática.

A abertura da garrafa empoeirada na adega escura e úmida foi rodeada de cerimônia.  Um ar circunspecto e solene envolvia as ações do velho champanheiro. O ambiente foi marcado pela mais austera religiosidade, e as ações eram pontuadas de rituais que confirmavam a gravidade da abertura da garrafa há tanto tempo guardada.

Ploc!! O som da rolha liberta de sua camisa-de-força vítrea ecoou pelos porões da mansão e liberou o gás naturalmente formado pela fermentação.  Abriu-se a caixa com as taças de cristal e o líquido borbulhante chiou em efervescência diante do seleto grupo. O contato com o sabor se fez obedecendo o protocolo mais rígido.

O major me relatou da seguinte forma sua experiência:

“Eu sequer ousava pensar o quanto custariam os poucos goles daquele líquido se houvesse eu que pagar por eles. Entretanto, o sabor foi tão diferente e tão inusitado que produziu efeitos insólitos e paradoxais. Primeiro, e mais importante, me garantiu uma memória gustativa inesquecível e perene. Tenho certeza que em meus derradeiros momentos de vida ainda terei a lembrança dessa preciosidade. Por outro lado essa experiência produziu para mim uma condenação triste e solitária: daquele dia em diante eu nunca mais fui capaz de tomar champanhe comum com o mesmo prazer e entusiasmo. A excelência daquela maravilha matou algo genuíno que eu tinha: o prazer simples das coisas comuns.”

Ficar velho e experiente lhe faz desconfiar das “novidades”. Isso é bom, mas as vezes triste.

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