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Parto e Revolução

Humanização do nascimento, enquanto ciência, não pode tolerar certas falácias. Muito já foi dito sobre o parto e suas implicações psicológicas, afetivas, morais, espirituais, fisiológicas e sociais; agora cabe a nós agora mudá-lo, transformá-lo. As revoluções no campo do conhecimento humano se sucedem, atropelam umas às outras. O que antes era o novo, hoje já é o antigo, e resta-nos incorporar a metamorfose de ideias e projetos a nos oferecer o ânimo da mutação. O parto, como o conhecemos, é fruto de uma revolução tecnológica que, iniciando-se com a anestesia na memorável apresentação de uso do éter em 1846 com o cirurgião Warren e o anestesista Thomas Morton, culminou algumas décadas mais tarde com a realização da cesariana em Julia Covallina, pelo cirurgião Edoardo Porro em Pávia, na Itália, já nos estertores do século XIX. Esta cirurgia, criada com o intuito de salvar vidas condenadas pelos efeitos dramáticos do raquitismo no trajeto pélvico, conduziu-nos à suprema interferência no milenar mecanismo do parto, garantindo-nos, com razoável segurança, a entrada no claustro escuro onde dormita o amnionauta. Depois de quase um século os anticoncepcionais desvincularam o sexo da gestação e permitiram que as mulheres deixassem de ser prisioneiras da gestação; seria possível retirar do sexo todos os prazeres sem o temor de uma gestação indesejada. Tamanha a euforia com estas conquistas que por um tempo imaginamos que o domínio completo sobre os mistérios do nascer havia sido estabelecido. Entretanto, tamanha interferência nos ciclos que governam a reprodução e a vida não poderia ocorrer sem que, de alguma forma, houvesse uma ruptura com os delicados liames que nos conectam com a natureza.

As cesarianas, assim como as analgesias de parto tornaram-se mais do que simples e corriqueiras; sua aplicação no mundo ocidental tem aspectos de epidemia, tamanha a sua abrangência. No Brasil, a taxa de cesarianas atingiu o índice inédito de 59.7%, um número assustador se imaginarmos que a OMS estabeleceu como 15% o percentual máximo que pode oferecer vantagens. Multiplicamos por 4 este valor, e por certo que existem consequências nefastas por esta medida. Bem o sabemos o quanto as cesarianas, ao tornar previsível um evento dominado pela imprevisibilidade, beneficiam os médicos e as instituições, e aqui está uma boa razão para os abusos que testemunhamos. Além disso, as cesarianas multiplicam os riscos, tanto para as mães quanto para os bebês. As analgesias de parto também são extremamente prevalentes nas salas de parto, diminuindo a propriocepção materna e dificultando as mudanças posturais ativas da mãe na adaptação do seu bebê ao canal de parto. Hoje em dia apenas 5% das mulheres brasileiras tem um parto sem intervenções médicas potencialmente perigosas para a mãe e seu bebê. Além disso, existem repercussões de caráter emocional, psicológico e social das cesarianas, que afetam o desenvolvimento do apego da recém mãe com seu bebê. O caminho das intervenções e o parto na perspectiva médica mostravam suas falhas e seus senões.

Por esta razão, a partir do final dos anos 70 do século passado surgiu um movimento de usuárias e profissionais da saúde com o objetivo de “humanizar o nascimento”, na medida que a postura meramente objetual das pacientes – como é a característica daqueles que se submetem à ação médica – não é aceitável para uma mulher saudável que está diante de um evento natural do seu corpo, sobre o qual não cabe nenhuma intervenção sem justificativa. Passou-se a admitir – de novo – que parto faz parte da vida sexual de uma mulher, que deve ser governado por estes pressupostos, e que o nascimento de uma criança é algo que ela faz…. e não algo que fazem por ela. Iniciou-se, então, um movimento de caráter internacional de questionamento sobre as múltiplas e exageradas intervenções sobre as mulheres no momento do parto, assim como no pré-natal e nas semanas que se seguem ao nascimento. A ideia central que impregnou esta geração de pensadores sobre o nascimento foi a “desmedicalização” do nascimento, o respeito à fisiologia, o uso consciencioso e restrito das intervenções, o entendimento do parto como um processo interdisciplinar e, acima de tudo, a garantia do protagonismo à mulher e à família, recuperando a centralidade feminina e familiar do nascimento humano.

Muito já se avançou no debate sobre a necessária retomada de um percurso de atenção ao parto que respeite a mulher e sua fisiologia. Muitas publicações, estudos, análises, pesquisas e literatura acadêmica contribuiu para esta lenta mudança. Todavia, ainda há um caminho longo a percorrer, porque as modificações na assistência ao parto não carecem de retoques ou de revisões de protocolos; é necessário o que se faça uma revolução, na medida em que estas transformações estão relacionadas ao poder sobre os corpos, mantido sob a guarda dos profissionais da medicina. Como diria Gramsci, se fosse parteiro: “o parto na lógica da intervenção já morreu, mas o parto na perspectiva do sujeito tarda a nascer. Neste lapso temporal ainda testemunhamos a barbárie da violência contra as gestantes”. Humanização do nascimento não é uma ideologia que se encerra no mundo das ideias, mas uma filosofia da prática cotidiana. A prática sem arcabouço teórico é perigosa e caótica; porém a teoria sem a prática é vazia e inútil, servindo apenas para devaneios filosóficos e especulativos.

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O Ocaso do Parto Normal

Foto de Amanda Vargas para Bebê Abril

Vejo, com certo desânimo, que se fortaleceu o discurso que suaviza as cesarianas, tratando-as como cirurgias que podem ser “humanizadas”. Essas coisas já me incomodaram muito no passado; hoje só me entristecem. Durante anos sustentei a tese de que a humanização só pode existir aliada ao protagonismo. Todavia, na cesariana o protagonismo é entregue ao médico e, portanto, não há como “humanizar” aquilo sobre o qual não temos controle, somente exigir que seja feita de forma respeitosa e suave. “Humanização do nascimento é a garantia do protagonismo à mulher; o resto é sofisticação de tutela”.

Eu às vezes acredito que a “cultura do parto normal” é um projeto falido, algo como tentar evitar que as crianças usem o celular em excesso. Existe uma conexão violenta com estas tecnologias em ambos os casos, e as tentativas de “discipliná-las” fracassa diante do desejo incontrolável que leva ao seu uso. Lutamos contra condicionantes culturais extremamente poderosos, em especial porque o próprio parto normal atua contra os princípios fundamentais do capitalismo e nos faz pensar nos limites da tecnologia. “Os tempos do parto agridem a roda do capital”.

A ideia de que a forma de nascer é constituinte da formação do sujeito que está nascendo, tanto quanto da mulher que surge de seus escombros, é tão sofisticada e sutil que as pessoas comuns simplesmente não conseguem captar essa proposta. “Ora, para que sofrer horas à fio se posso resolver esse drama em 20 minutos? Riscos? No jornal e nos tribunais só aparecem casos desastrosos de parto, jamais de cesarianas. Por que deveria eu me submeter a um modelo de nascimento fracassado, antigo, cruel, sacrificial e ultrapassado?”

Como convencer mulheres do contrário? Um dos sinais desse fracasso é exatamente a proposta sutil de “humanizar” a cesariana, tirando dela sua aura de “intervenção” ou “alienação”. Para isso usamos a palavra “humanizada” para qualificá-la descrevendo o cuidado, a atenção, o carinho e o afeto que podem ser usados nesta cirurgia – apesar de que, por esse critério, até uma apendicectomia pode ser “humanizada”. Esse movimento – a troca de termos – sugere uma lenta e gradual capitulação. “Já que é impossível convencer que os sacrifícios (sacro ofício) de um parto normal produzem benefícios que se multiplicam para toda a vida, vamos pintar de dourado sua alternativa, mostrando a cesariana como algo igualmente belo e empoderador, “humanizando” a abertura de sete camadas de tecidos e transformando a extração fetal em um gesto de amor”. A frase que segue é sempre “não sinta vergonha por suas decisões”.

Pois não há vergonha alguma em admitir que talvez a luta pela humanização do nascimento venha a fracassar. Talvez mesmo as mulheres não queiram mais passar por este processo, mesmo com décadas de pesquisa científica mostrando a superioridade do parto normal, em todos os níveis, sobre a cirurgia para a retirada de bebês. É necessário ser maduro o suficiente para aceitar a possibilidade de que o futuro do nascimento humano será totalmente artificial, sem qualquer participação ativa das próprias mulheres, a quem – ainda – será reservada a nutrição e o desenvolvimento dos bebês em seus corpos. Com o tempo até este peso será retirado delas, e os novos integrantes da sociedade serão nutridos e criados em chocadeiras humanas. Um alívio, uma libertação, uma evolução – dirão muitos.

Não estou sendo irônico. Quando vejo obstetras usando a expressão “cesariana humanizada” eu percebo o início da estrada cujo destino final é a lenta extinção de um capacidade fisiológica. A atrofia sistemática das capacidades de parir, acrescida do extermínio lento e gradual de profissionais que cuidam do parto normal – habilidades desenvolvidas por milhões de anos em nosso gênero – me obrigam a uma visão pessimista do futuro do parto. O resgate do parto é a busca por nossa essência, entretanto a suprema alienação das mulheres desse processo e a expropriação definitiva do nascimento pela tecnologia são realidades que não surgirão por decreto, mas por passos quase imperceptíveis, os quais só podem ser captados por quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir.

Por certo que não se trata de um destino já determinado. Cabe às mulheres decidir sobre algo que, em última análise, é o grande diferencial em sua função planetária. Entretanto, quando nenhuma criança mais surgir através do esforço e da dedicação de uma mulher, quando o grito primal for substituído pelos ruídos metálicos da mesa cirúrgica e quando a voz embargada do pai der lugar aos gracejos dos médicos no campo operatório, a estrutura psíquica que nos constitui estará radicalmente alterada e a sociedade como a conhecemos será radicalmente outra. Se existe amor, este é o amor de uma mãe pelo seu filho, sendo todos os outros amores dele derivados. A maior função de uma mãe é ensinar seu filho a amar. O que será da humanidade quando for suprimida do cotidiano de todos os seus habitantes nossa primeira e majestosa lição?


Veo, con cierta consternación, que se ha fortalecido el discurso que suaviza las cesáreas, tratándolas como cirugías que se pueden “humanizar”. Estas cosas me han molestado mucho en el pasado; hoy solo me entristecen. Durante años sostuve la tesis de que la humanización sólo puede existir en conjunción con el protagonismo. Sin embargo, en la cesárea, el papel principal lo tiene el médico y, por lo tanto, no hay forma de “humanizar” lo que no tenemos control, solo para exigir que se haga de manera respetuosa y gentil. “La humanización del nacimiento es la garantía del protagonismo de la mujer; el resto es sofisticación de la tutela”.

A veces creo que la “cultura del nacimiento normal” es un proyecto fallido, algo así como tratar de evitar que los niños usen en exceso sus teléfonos celulares. Hay una conexión violenta con estas tecnologías en ambos casos, y los intentos de “disciplinarlas” fracasan ante el deseo incontrolable que impulsa su uso. Luchamos contra restricciones culturales extremadamente poderosas, especialmente porque el nacimiento normal en sí mismo actúa en contra de los principios fundamentales del capitalismo y nos hace pensar en los límites de la tecnología. “Los tiempos del parto atacan la rueda del capital”.

La idea de que la forma de nacer es un constitutivo de la formación del sujeto que nace, así como de la mujer que emerge de sus escombros, es tan sofisticada y sutil que la gente común simplemente no puede captar esta propuesta. “Bueno, ¿para qué sufrir horas y horas si puedo resolver este drama en 20 minutos? ¿Riesgos? En el periódico y en los tribunales solo aparecen casos desastrosos de parto, nunca cesáreas. nacimiento, cruel, sacrificial y anticuado?”

¿Cómo convencer a las mujeres de lo contrario? Uno de los signos de este fracaso es precisamente la sutil propuesta de “humanizar” la cesárea, quitándole su aura de “intervención” o “alienación”. Por eso, usamos la palabra “humanizado” para calificarlo describiendo el cuidado, la atención y el afecto que se pueden usar en esta cirugía, aunque, según este criterio, incluso una apendicectomía puede ser “humanizada”. Este movimiento -el intercambio de términos- sugiere una capitulación lenta y gradual. “Como es imposible convencer que los sacrificios (oficio sagrado) de un parto normal producen beneficios que se multiplican de por vida, pintemos de oro su alternativa, mostrando la cesárea como algo igualmente hermoso y empoderador, “humanizando” la apertura de siete capas de tejido y convirtiendo la extracción fetal en un gesto de amor”. La frase que sigue es siempre “no te avergüences de tus decisiones”.

No hay vergüenza en admitir que tal vez fracase la lucha por la humanización del nacimiento. Quizás incluso las mujeres ya no quieran pasar por este proceso, incluso con décadas de investigación científica que muestran la superioridad del parto normal, en todos los niveles, sobre la cirugía para dar a luz. Es necesario ser lo suficientemente maduro para aceptar la posibilidad de que el futuro del nacimiento humano sea completamente artificial, sin ninguna participación activa de las propias mujeres, a quienes – aún – les estará reservada la nutrición y el desarrollo de los bebés en sus cuerpos. Con el tiempo, incluso se les quitará este peso de encima, y ​​los nuevos miembros de la sociedad serán nutridos y criados en incubadoras humanas. Un alivio, una liberación, una evolución – dirán muchos.

No estoy siendo irónico. Cuando veo a los obstetras utilizar la expresión “cesárea humanizada” percibo el inicio de un camino cuyo destino final es la lenta extinción de una capacidad fisiológica. La atrofia sistemática de la capacidad de dar a luz, sumada al lento y paulatino exterminio de los profesionales que atienden el parto normal – habilidades desarrolladas durante millones de años en nuestro género – me obligan a tener una visión pesimista del futuro del parto. El rescate del parto es la búsqueda de nuestra esencia, sin embargo la alienación suprema de la mujer de este proceso y la expropiación definitiva del nacimiento por parte de la tecnología son realidades que no emergerán por decreto, sino por pasos casi imperceptibles, que sólo podrán ser captados por aquellos que tienen ojos para ver y oídos para oír.

Ciertamente, este no es un destino predeterminado. Corresponde a las mujeres decidir sobre algo que, en definitiva, es el gran diferencial en su rol planetario. Sin embargo, cuando ya no surgen más hijos gracias al esfuerzo y dedicación de una mujer, cuando el “grito primal” es reemplazado por los ruidos metálicos de la mesa de operaciones y cuando la voz quebrada del padre da paso a las bromas de los médicos en el campo de operaciones, la estructura psíquica que nos constituye será radicalmente alterada y la sociedad tal como la conocemos será radicalmente diferente.

Si hay amor, es el amor de una madre por su hijo, todos los demás amores se derivan de él, y la mayor función de una madre es enseñar a su hijo a amar. ¿Qué será de la humanidad cuando nuestra primera y majestuosa lección sea suprimida de la vida cotidiana de todos sus habitantes?

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Tango

A Humanização do Nascimento, como qualquer movimento social que desafia sistemas de poder alicerçados sobre o patriarcado e o capitalismo, caminha dois passos para frente e um para trás. Sua diversidade e complexidade, albergando em seu seio correntes e visões bastante diferentes, são suas maiores virtudes, ao mesmo tempo que são seus maiores entraves. Apenas a brutalidade do autoritarismo é capaz de fazer um movimento assim se apressar, mas suas conquistas se tornam frágeis – como nossa democracia – se não tiverem a lhe sustentar a maturação lenta produzida pelo choque incessante (e por vezes enfadonho) do contraditório.

A esperança de um porvir radiante para o parto e nascimento, onde o protagonismo da mulher será garantido por uma visão interdisciplinar e uma prática baseada em evidências, ficará para as próximas gerações. Por enquanto ainda teremos que debater muito sobre papéis, funções, direitos e lugares. Enquanto isso, a violência continuará sendo combatida com tenacidade e perseverança, enquanto os progressos serão como o vai-e-vem dos passos lentos e sensuais de um tango.

Como exemplo dessa dança de idas e vindas faz alguns dias eu li sobre uma médica ginecologista do norte do Brasil que resolveu investigar a possibilidade de o relaxamento produzido pela música auxiliar em casos de apresentação pélvica (bebês sentados). Analisou seis casos na sua clínica nos quais quatro deles mostraram resultados positivos (os bebês migraram para a posição cefálica). Entusiasmada com os resultados dessa abordagem, e perseguindo a ideia de que a posição fetal se estabelece pela presença ou não de sintonia entre mãe e bebê, ela inscreve este estudo de casos em um congresso no estrangeiro para apresentá-lo.

Quando da aceitação desse trabalho foi entrevistada por um jornal de sua cidade. Certamente que, por estar distante do centro do país em uma cidade de pequena expressão, sua presença como expositora em um congresso internacional foi uma notícia de maior relevância local.

Quando a notícia atingiu os defensores da humanização do nascimento ela foi, para a surpresa de alguns, mal recebida. A razão para essas críticas foi que o pressuposto de que a posição fetal era determinada por questões maternas aumentaria nas mulheres a carga que elas precisam carregar. A interpretação de algumas ativistas foi: “querem aumentar a carga de culpa das mulheres, algo que já é por demais pesado”.

A recepção depreciativa do trabalho dessa pesquisadora me deixou inquieto. Afinal, qual o crime de investigar uma forma suave e não intervencionista de virar bebês dentro do útero? Fiquei intrigado com tamanha má vontade pelo tema.

Curiosamente, algumas das manifestações me soaram extremamente parecidas com as opiniões expressas por médicos reacionários a respeito da influência das doulas nos aspectos emocionais e psicológicos das mães durante o trabalho de parto e do parto. Diziam eles: “Agora era só o que me faltava botar uma desqualificada para fazer massagem e vir me dizer que isso vai resolver um transverso persistente. Pufff…”

Fiquei impressionado com o grau de preconceito que (ainda) viceja na humanização do nascimento. Percebi que uma parcela expressiva dos profissionais humanistas não acredita que o estado emocional de uma gestante tem influência em aspectos absolutamente grosseiros do estado físico dela e do seu bebê. Pareceu a mim existir um consenso cartesiano de que os estados emocionais e os aspectos somáticos são vasos incomunicáveis e estanques. Todavia, eu lembro que se apostamos tanto no conceito “mãebebê” não seria de se pensar que as questões que afligem a mãe também se refletiam no bebê? E a forma como o bebê reage a estas emoções – que são estudadas há décadas por psicólogos – não poderia se refletir em sua adaptação no útero a partir de uma adaptação postural reativa à atitude corporal da mãe?

Assim, por que tanta resistência em aceitar as relações entre questões emocionais e físicas? Por que negar com tanta veemência que bebês respondem, já dentro do útero, às manifestações de angústia, medo, apreensão e até alegria de sua mãe? Se alegamos em alguns momentos a unicidade entre mãe e bebê porque a negamos quando as coisas não ocorrem da forma como desejamos?

Eu me pergunto: quem não ficaria entusiasmado caso tivesse no consultório seis pacientes de apresentação pélvica para as quais fosse utilizado música e QUATRO delas virassem o bebê? Mesmo sabendo que isso não tem valor estatistico, não seria motivo de euforia? Não seria um estímulo para se aprofundar no tema? Já vi gente abandonar práticas comprovadamente seguras para a assistência ao parto após o aparecimento de apenas UM caso funesto…

Outra pergunta que me atingiu: por que tamanha insistência no tema da culpa? Será realmente necessário usar essa palavra SEMPRE? Eu creio que continuamos a confundir “culpa” com “responsabilidade” por razões diversas e até mesmo inconscientes, todavia, a insisteência de livrar a mulher da culpa por sua situação acaba produzindo um desagradável parefeito: a alienação. De fato, se acreditamos que as mulheres nunca tem responsabilidade pelo que lhes acontece, já que tudo é imposto a elas pela natureza ou pelo modelo social que as manipula, então jamais poderão ser protagonistas. Isto é: sem assumir a possibilidade de arcar com responsabilidades as mulheres não poderarão alcançar o protagonismo. Não há como ser passiva e exigir o controle de suas vidas.

E, só para terminar, era mesmo necessario mesmo fazer uma queimação pública – com pitadas de escárnio – de uma profissional que se aproxima de muitos temas que nos são caros? Precisava rotular como charlatanismo? Não seria justo lembrar que este foi o tom usado contra a humanização durante 30 anos? Vamos repetir este modelo cibernético de “fritagem de reputações” sempre que discordamos do trabalho de alguém?

Ela é cesarista? Ela promove abuso de tecnologia? Ela objetualiza pacientes? Ou ela pesquisa uma forma de deixar as mulheres mais livres colocando em suas mãos o poder (ou a possibilidade) de mudar a posição do seu bebê?

Será mesmo que haverá um dia em que viraremos o jogo, tomaremos as rédeas, assumiremos a narrativa hegemônica do parto, com plena comprovação de nossas teses mestras e agiremos como perfeitos opressores vingativos contra qualquer proposta dissidente que nos ameace?

Parece que o mestre Thomas Kuhn tinha razão e clarividência.

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Aborto Livre

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O STF declara que, em função das iniciativas internacionais das quais o Brasil é signatário, o abortamento até 12 semanas NÃO pode ser considerado crime, pois tal postura ou normativa legal agride o princípio da autonomia. Essa é uma decisão que precisa ser comemorada e sustentada, pois outras instâncias vão tentar destruí-la.

Portanto, o aborto… PODE e DEVE ser debatido em todos os setores da sociedade, em especial na esfera de defesa da autonomia da mulher. Entretanto, por conhecer as características dos movimentos de outros países – em especial dos Estados Unidos – a conjunção das temáticas de aborto descriminalizado e livre e a humanização do Nascimento em um nível institucional tem o potencial de DIVIDIR o movimento. Muitas ativistas da Humanização são contrárias ao aborto – por questões religiosas ou morais – enquanto muitas ativistas pelo aborto não aceitam os postulados da Humanização ou da amamentação.

Se o aborto se tornar uma “pedra fundamental” do movimento de humanização do parto e Nascimento isso pode criar uma dissidência desnecessária e potencialmente destrutiva. Nos Estados Unidos esses assuntos são tratados separadamente exatamente para não criar um obstáculo à união dos ativistas. Pode ser que minha opinião, baseada em minha experiência pessoal, esteja equivocada e que devemos unificar essas lutas, mas ainda não vejo argumentos suficientemente consistentes para me demover da ideia de deixar esses temas separados, para o bem de AMBOS movimentos.

Minha postura sobre isso é clara, cristalina e não dogmática. Posso conversar sobre essas estratégias tomando um cafezinho ou escrevendo um texto, sem problemas. Posso me render a bons argumentos contrários às minhas ideias, mas ainda não ouvi nenhum que seja bom o suficiente. Pessoalmente eu apoio a ambas lutas, mas ainda acho que elas correm melhor separadas, pelas características especiais do aborto e suas conotações morais e religiosas. Sempre haverá intolerância em pautas que despertam tanta paixão.

Eu estou acostumado com isso, por esta razão não transformo esses debates em questões pessoais. A posição do movimento de humanização não precisa ser a minha. Eu apenas falo em meu nome, e como participante do movimento digo abertamente minhas ideias, que jamais podem ser entendidas como posições institucionais, que demandam um debate democrático de seus membros.

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Feminismo e Humanização

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Humanização do nascimento e feminismo são movimentos semelhantes e caminham em paralelo na trilha das ideias. Ambos são majoritariamente liderados por mulheres, contra culturais, contra hegemônicos, plurais e atacam o coração do sistema de poder patriarcal. É óbvio que encontraríamos exaltados(as) em ambos os movimentos, na medida em que os discursos de ambos ferem a estrutura máxima que sustenta a sociedade patriarcal. Portanto, é impossível imaginar que uma proposta de tal magnitude não produza radicalismos e visões extremistas. Porém, como em qualquer movimento social, os extremos não podem ser a voz mais ouvida, e nem a cara mais presente.

Para cada “feminazi” existe uma “diferentona” comedora de placenta, mas os conservadores – machistas e cesaristas – procuram encontrar a extrema esquerda de cada movimento e colocá-la como a sua representante oficial para assim desmerecer toda a proposta, classificando-a como radical.

Esse é o caminho natural de qualquer proposta social transformativa. Não há como fugir desse modelo, pois só com luta é possível quebrar as fortalezas que sustentam um paradigma. Cabe às feministas provarem que sua luta é pela equidade e não pela vingança, assim como cabe a nós do movimento de humanização a tarefa de mostrar a todos que não somos contrários a tecnologia e nem aos profissionais no topo da escala de poderes, mas que somos movidos por ciência e por uma observância fiel aos direitos humanos reprodutivos e sexuais das mulheres em benefício de mães e bebês.

Não há como criar uma mudança social de tal magnitude sem a energia – por vezes descontrolada – que brota naturalmente daqueles que lutam por ela.

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Sobre uma Crítica à Humanização

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Fiquei um pouco surpreso ao ler um texto escrito por um médico e que parece ter sido escrito nos anos 80. O articulista parece estar genuinamente preocupado com a questão da humanização e o problema da violência obstétrica, mas curiosamente o texto fala pouco das questões contemporâneas de violência contra a mulher no momento de parir, e preocupa-se mais com a questão por um viés corporativistas e de proteção do mercado para os médicos. Desta maneira, o colega parece ter descoberto que a humanização do nascimento não deve prescindir da tecnologia e dos médicos.

Eureka !!! No texto ele parece ter avistado a América e ficou maravilhado com sua descoberta, mas ainda não teve tempo de se dar conta que tudo isso já é velho, e que logo ali na frente está o porto e a cidade, construídas há muito tempo.

No texto aparece a frase “…e fôssemos falar em parto e quiçá gestação totalmente “humanizada”, conceituando mínima ou ausente tecnificação..”

Mínima ou ausente tecnificação?” Diante desta insinuação eu pergunto: A quem ainda interessa este conceito anacrônico de confundir humanização com desassistência e repulsa à tecnologia? Tal confusão foi sepultada há anos !!! O articulista prefere se defender de algo que não interessa a mais ninguém, ou seja, a falsa idéia de que a humanização do nascimento prega a ausência de atendimento e a supressão da figura do médico.

Desinformação ou interesse em criar confusão?

No mais o texto revela mais pelo que não diz do que pelo que expressa. A simples existência de um texto em defesa da boa prática médica demonstra uma preocupação crescente da corporação com as acusações cada dia mais consistentes de que o nascimento é local frequente de práticas envelhecidas, inconsistentes e com muita violência. Isso é positivo.

Espero que os equívocos do texto não desmereçam a nobre e positiva tentativa do seu autor em ajudar na construção de uma assistência mais digna e respeitosa às mulheres.

A quem realmente interessa a manutenção desses mitos? A quem interessa a ideia de que a humanização despreza tecnologia e médicos? A quem favorece a noção anacrônica de que a tecnologia pode ser aplicada indiscriminadamente, pois ela representaria o “progresso” e a “evolução” , e que só através dela poderemos nos proteger das incertezas da natureza?

Ora… a pergunta é: Quem se sente ameaçado com a justiça e a dignidade restituída às mulheres? Quem?

O texto nos remete a um falso dilema: Se quisermos a modernidade e o progresso, a alienação e a violência entram no pacote. É uma venda casada, na qual os médicos são os proprietários do parto, e a mulher um objeto sobre o qual eles atuam. Caso queira o parto natural, sem violência e protagonismo, então nós médicos não faremos parte, e seu destino é a selva e a desassistência.

O texto do colega sonega EXATAMENTE a humanização do nascimento, que vem propor a “terceira via”, o protagonismo restituído à mulher, a visão complementar e integrativa e acoplada às EVIDÊNCIAS científicas. Falta tocar no nervo exposto da assistência: a incapacidade crescente dos médicos de entenderem o parto normal como um direito das mulheres e um evento humano, para o qual a sua ajuda é bem vinda, mas não fundamental para a assistência direta.

Falta CORAGEM para olhar este cenário de frente. Por isso é que se cria essa dicotomia falsa e interesseira entre violência e tecnologia X desassistência e barbárie. MENTIRA. É possível oferecer partos humanizados, para todos os setores, públicos e privados, mas para isso é preciso sair das trevas, parar de pensar sobre conceitos estapafúrdios e anacrônicos, e encarar o desafio de oferecer a ética conjugada com a técnica, resguardando as mulheres de intervenções inadequadas no transcurso fisiológico dos seus partos.

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Robbie and Humanization

Robbie
Robbie Davis-Floyd

No início deste milênio eu estava em Florianópolis num seminário internacional promovido pela ReHuNa com a Prof. Robbie Davis-Floyd. Enquanto aguardávamos pelas próximas palestras, no saguão do Centro de Conferências, uma jovem jornalista se aproximou do pequeno grupo que envolvia Robbie e lhe fazia perguntas sobre as origens e significados da humanização do nascimento. Aguardou o término das perguntas e fez a ela a seguinte indagação: “Ok professora Robbie, pelo que eu entendi de suas palavras a humanização do nascimento é um conjunto de técnicas, um protocolo diferenciado, um grupo de rotinas ou um método que visa um parto normal e a satisfação das necessidades das mulheres e seus bebês, certo?”

Olhei para Robbie com curiosidade, pois, assim como Robbie, também percebi que esta pergunta se inseria em um contexto muito maior. Sabia da enorme polêmica surgida a partir do que ficou conhecido como “método Leboyer” de partos “naturais”. Robbie conhecia a repulsa que o mestre francês teve, durante toda sua vida, com a ideia de que seus ensinamentos poderiam sem encapsulados e circunscritos como um “método”. Como sabemos, um método é um procedimento, técnica ou meio de fazer alguma coisa de acordo com um plano preestabelecido, um processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa, instrução, investigação, apresentação etc. Humanizar o nascimento poderia ter um “método” que pudesse ser aplicado a todas as mulheres? Poderíamos ter planos preestabelecidos para atender o nascimento?

Robbie sabia que havia um truque que se escondia por trás da pergunta. Percebeu que a ideia era retirar a humanização do nascimento da esfera pessoal do médico e sacramentá-la na lei, nas paredes de um hospital, em manuais e nos livros textos. A ideia era olhar para esse movimento e criar mandamentos rígidos e imutáveis, gravados em “tábuas da lei”, que sobrevivessem aos milênios.

Robbie sorriu com aquele jeito de menina e, diante do inteligente questionamento da jornalista, respondeu: “Não, a humanização do nascimento vai além das normas escritas e afixadas em uma parede de hospital. Ela não pode ser burocratizada e reduzida a frios protocolos e rotinas, como se fosse algo dissociado das pessoas e alheio aos cuidadores do nascimento. Humanização do Nascimento, em verdade, é uma atitude, uma postura pessoal, subjetiva, emocional diante do evento do parto, mesmo quando as bases que a sustentam sejam racionais e científicas. É algo para além dos modelos de atenção, e que atinge a essência da relação entre cuidadores e gestantes, assim como de suas famílias e da comunidade.

Humanizar a assistência ao parto se expressa na forma como nos posicionamos diante da vida e do cuidado, como entendemos as grávidas e como as traduzimos, diante da complexidade infinita de um evento subjetivo e único que ocorre na intimidade do seu organismo. Isto, e não uma lista de procedimentos a fazer ou serem evitados, é a Humanização do Nascimento”.

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At the beginning of this millennium I was in Florianópolis at an international seminar promoted by ReHuNa with Prof. Robbie Davis-Floyd. While we waited for the next lectures, in the lobby of the Conference Center, a young journalist approached the small group that involved Robbie asking her questions about the origins and meanings of the humanization of childbirth. She waited for the questions to finish and asked her the following question: “Ok, Professor Robbie, from what I understand from your words, the humanization of childbirth is a set of techniques, a differentiated protocol, a group of routines or a method that aims at vaginal and normal births, meeting the needs of women and their babies, right?”

I looked at Robbie curiously because, like Robbie, I also realized that this question was part of a much larger context. She knew about the huge controversy that arose from what became known as the “Leboyer method” of “natural” births. Robbie knew the repulsion that the French master had, throughout his life, with the idea that his teachings could be encapsulated and circumscribed as a “method”. As we know, a method is a procedure, technique or means of doing something according to a pre-established plan, an organized, logical and systematic process of research, instruction, investigation, presentation, etc. Could humanizing birth have a “method” that could be applied to all women? Could we have pre-established plans to attend birth?

Robbie knew there was a trick behind the question. She realized that the idea was to remove the humanization of birth from the personal sphere of the doctor and make it sacred in the law, on the walls of a hospital, in manuals and textbooks. The idea was to look at this movement and create rigid and immutable commandments, engraved on “tablets of the law”, that would survive the millennia.

Robbie smiled in that girlish way and, faced with the journalist’s intelligent questioning, replied: “No, the humanization of birth goes beyond written norms and posted on a hospital wall. It cannot be bureaucratized and reduced to cold protocols and routines, as if it were something dissociated from people and alien to birth caregivers. Humanization of Birth, in fact, is an attitude, a personal, subjective, emotional posture in the event of childbirth, even when the bases that support it are rational and scientific. It is something beyond the models of care, and which reaches the essence of the relationship between caregivers and pregnant women, as well as their families and the community.

Humanizing childbirth care expresses itself in the way we position ourselves in the face of life and care, how we understand pregnant women and how we translate them, in view of the infinite complexity of a subjective and unique event that occurs in the intimacy of their organism. This, and not a list of procedures to be done or to be avoided, is the Humanization of Birth”.

 

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