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Contexto

A verdade de uma fala estará sempre na dependência do contexto onde foi dita. Sem isso não há como avaliar seu sentido, pois muitas vezes ela pode querer dizer exatamente o oposto do que está enunciado. Não quero com isso invalidar frases racistas, misóginas e homofóbicas, mas afirmo que é essencial que cada fala seja analisada em seu contexto para, só depois disso, fazermos um juízo. Como diria meu amigo Max, sem o contexto em nossas falas não somos mais que máquinas que falam, criaturas cujas palavras carecem de alma e simbolismo. Sem a linguagem nossas palavras viram meros símbolos operacionais, que apenas nos permitem comunicar como abelhas sinalizando o lugar das flores. Quer um exemplo?

– Quer tomar um sorvete?
– Capaz.

Digam: ela aceitou ou não? Quem é do Rio Grande do Sul sabe que não há como saber. Nosso falar sempre vai depender do contexto, o que inclui a entoação, o olhar e o jeito de dizer. Para formar um juízo sobre uma afirmação qualquer é fundamental saber onde ela está inserida. Vou dar como exemplo uma antiga fala do meu pai, sobre a qual escrevi um texto há mais de dez anos, na qual ele discorria sobre um técnico de futebol. Dizia ele:

– Ele é um excelente técnico, mas pesa contra ele o fato de ser negro.

Então? Essa fala é racista? Seria se o contexto fosse “negros não sabem comandar jogadores e não entendem de tática”. Todavia, o que meu pai estava dizendo era o oposto disso: sua intenção era afirmar que as críticas seriam sempre mais pesadas devido à sua cor. “O fato de ser negro vai fazer com que sofra preconceitos, e seu brilhantismo será eclipsado pela visão racista e retrógrada de parte da sociedade” Como eu sei a verdadeira interpretação? Pelo contexto, por estar presente e por conhecer a fundo o interlocutor. Portanto, uma frase que poderia ser interpretada como racista se fosse recortada e retirada de sua fala era, em verdade, uma crítica à falta de oportunidades para técnicos negros e uma queixa às injustiças com o trabalho das pessoas negras que ocupam estes cargos.

Espero ter sido claro…. (opss!)

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Bananas

No congresso de professores em São Paulo – XXVII Congresso da APEOESP , Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo – ocorrido há poucos dias o representante do PCO, criticou de forma veemente os participantes de outras vertentes políticas adversárias, acusando-os de outrora terem atacado Dilma e garantido apoio à Lava Jato. Ao final de sua fala, e ao ser acusado de direitista, fez um sinal com o braço dobrado e a mão na dobra gritando “Aqui ó, lavajatistas são vocês”. Sua fala foi a que se segue:

“… eu queria aproveitar meu minuto final, para dizer, o seguinte: não vamos vir aqui falar qualquer coisa, a gente aceitar que companheiro que estão numa chapa encabeçada pelo PSTU, que defendeu o golpe, que tem o PSOL, que defendia a Lava-Jato, vir aqui falar que nos somos lavajatistas! Aqui para vocês oh! (o companheiro levanta o braço e aponta para a chapa 2). Lavajatistas são vocês!”

Iniciou-se uma alteração verbal seguida de uma garrafa d’água arremessada na direção do ativista – a qual acabou acertando uma professora na mesa diretiva. Logo em seguida houve a tentativa de invasão da mesa, mas a turma do “deixa disso” conteve os mais exaltados e a briga se acalmou.

Até aqui esta história não deveria causar muita surpresa. Ora, os embates políticos são feitos de paixão, e esta emoção normalmente cobre com sobra e sem muitas dificuldades a tênue camada acinzentada que envolve nosso cérebro. Exigir racionalidade e ponderação para quem participa dos confrontos político-partidários é um exagero, pois essa chama de desejo e determinação é o que nos inflama e nos faz participar das lutas.

Entretanto, foi o que ocorreu depois que demonstra de forma muito clara o desvirtuamento do debate político no campo progressista, principalmente num setor bem específico: a, assim chamada, esquerda. No final do congresso uma militante negra da esquerda identitária pediu uma moção contra o companheiro que fez o gesto ofensivo aos adversários porque, segundo ela, se tratava de um …. gesto racista. Mais do que isso; ela ameaçou chamar a polícia.

Quem é da esquerda radical e já participou de movimentos estudantis, passeatas, greves, manifestações, etc. sabe muito bem de que lado a polícia burguesa sempre se situa. A força policial é estimulada a bater sem dó em professores, estudantes, trabalhadores de fábrica, pobres, favelados, etc., sempre que chamada a defender o patrimônio e os valores da burguesia; está no seu DNA. Ameaçar um parceiro do campo da esquerda de “chamar os homi” por uma disputa ideológica durante um congresso é um ato de profunda traição à todas as lutas do movimento operário. Quem age desta maneira ainda não entendeu qual o lado que devemos nos postar diante da trincheira.

Mas isto ainda não é o mais grave. Essa menina negra acusou o ativista da corrente adversária de ter feito um “gesto racista”. Sim, o gesto de dar “uma banana” para os seus adversários foi interpretado por ela como racista pela equação abaixo:

Banana ======》 Macaco ======》Homem negro

Sim, foi essa a interpretação que ela fez, a despeito do gesto ser realizado há milênios por qualquer pessoa, em várias partes do mundo e muito antes da escravidão, sempre que alguém estivesse mandando seu oponente enfiar uma banana, como a dizer “vá se phoder”. Detalhe importante: o militante de esquerda acusado de racismo… também é negro.

Esse é o risco de permitir às pessoas que interpretem gestos e palavras em absoluto “freestyle”, sem qualquer materialidade, baseado na mais abstrata imaginação e na interpretação subjetiva de quaisquer intenções veladas. Chamar a polícia burguesa em meio a um congresso de professores, acreditando na mediação dos poderes burgueses, já é por si só um escândalo; porém, interpretar um gesto de “banana” como “racismo” demonstra o desastre que significa o identitarismo, que há muito vem destruindo por dentro as instituições do campo socialista.

Repito: ou combatemos o identitarismo ou ele vai corroer a esquerda até não sobrar mais nada.

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Arquivado em Ativismo, Causa Operária, Política

Obediência

Quatro sujeitos entram em um mercado num dia muito quente de verão. Pelo calor reinante os rapazes adentram no local sem as camisas. O proprietário imediatamente pede que coloquem a roupa e aponta o cartaz com a proibição afixado ao lado na porta.

Os quatro rapazes brincam e avisam que não vão demorar pois querem apenas comprar refrigerantes e já vão se retirar. O proprietário, impaciente, pede uma segunda vez enquanto, ato contínuo, acena para o carro de polícia que está estacionado em frente.

Três policiais entram enquanto os meninos estão pegando os refrigerantes. Ainda com a porta do balcão refrigerado aberta, três deles são empurrados a força para fora, mas um deles é jogado no chão e tem a cabeça prensada pelo joelho do policial. Sua boca sangra enquanto as algemas são colocadas em seus punhos, colados em suas costas.

Ele então pergunta, “Por que essa violência? Viemos comprar refrigerante!! Nada disso é necessário!!”. Enquanto isso seus amigos assustados aguardavam olhando através do vidro do mercadinho.

“Cala boca, neguinho” grita o policial com o nariz grudado no rosto do rapaz. “Você vai aprender a obedecer quando lhe mandarem fazer algo.”

O jovem negro, ainda com a face colada ao piso frio, observa seus três amigos brancos aguardando, enquanto a viatura policial grita o som angustiante de sua presença.

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Religião anti corrupção

Essa religião da limpeza ética e contra a “corrupção” vai continuar existindo até o dia em que ficar explícito e evidente para todos que esse combate moralista é tão falso quanto às pregações furiosas dos pastores cristãos contra a “obscenidade e a luxúria”. Em verdade a “cruzada contra a corrupção” sempre foi usada em momentos de crise do capitalismo. Foi usada por Hitler e Mussolini. Também contra Getúlio, Juscelino, Jango e agora para atacar Lula e o PT. No fundo ela tenta encobrir elementos inconfessáveis do inconsciente coletivo.

Aqui no Brasil, o sentimento racista que foi atiçado com a emergência – ainda que acanhada – das classes populares precisava de uma expressão política. Essa saída veio com o bolsonarismo, onde esse sentimento de exclusão social e racial poderia se expressar de forma travestida, com a roupa da virtude e da lisura na coisa pública. Não é a toa que o bolsonarismo é mais forte e persistente no “Brasil branco” – Rio Grande do Sul e Santa Catarina – também a parte mais racista do país.

É fácil diagnosticar está falsidade no discurso anti corrupção quando vemos que todas as “outras” corrupções comprovadas que nos cercam não mereceram nenhuma atenção desses mesmos bolsonaristas. Aécio, Temer, Queiroz, Bolsonaros e mesmo a corrupção comprovada da Lava Jato não merecem uma batida sequer de panelas ou uma indignação de qualquer natureza.

Como diria o sociólogo Jessé de Souza, a raiz dessa perseguição às esquerdas é o fato de que elas ensaiaram combater – mesmo que de forma tímida – o verdadeiro mal desse pais: a desigualdade e a injustiça social. Para essa classe média branca e “remediada”, a ascensão dos pobres representa uma ameaça muito maior do que opressão dos ricos. Estes, no Olimpo do capitalismo mais cruel do planeta, acenam para a classe média com a ilusória ascensão meritocrática, tão enganosa quanto as benesses garantidas pelos pastores, prometidas aos dizimistas depois da morte.

É o racismo, nossa ferida mais profunda, o que nos permite aceitar tanta iniquidade e tanta injustiça. Enquanto essa chaga não for cauterizada continuaremos a matar negros e pobres como formigas.

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Quotas

Fernandinho Feriado, vereador negro e gay de SP, quer acabar com cotas para negros em concursos públicos para a prefeitura. Ele é um opositor ferrenho das cotas raciais em todos os níveis. Chama esse processo de coitadismo e vitimismo e usa a si mesmo como exemplo de meritocracia. “Se eu venci sendo negro, qualquer um consegue“.

Eu pergunto: quem seria a favor da discriminação? Se nascemos iguais deveríamos todos ser tratados iguais, certo? Portanto, seria justo pensar que qualquer sujeito que acredita que “somos todos iguais perante a lei” defenderia o fim das cotas raciais e sociais (positivamente) discriminatórias.

Verdade. Todavia, o fim das cotas não é a questão, mas quando. Eu mesmo serei o primeiro a festejar o fim das cotas quando elas não forem mais úteis e necessárias para acelerar o processo de equidade, e não precisemos mais dessa ferramenta para tapar o fosso que separa brancos e negros surgido com quase 400 anos de escravidão. Da mesma forma, quando tivermos uma sociedade economicamente mais equilibrada não quero mais que sejam oferecidas vagas sociais para pobres. Que todos lutem por seu espaço com igualdade de condições.

Enquanto houver racismo e a brutal iniqüidade social que separa os brasileiros em castas o dispensável não são as cotas, mas os capitães do mato que tanto a criticam.

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Arquivado em Ativismo, Política, Violência

Negro, negro

save me

Esta é uma das mais marcantes e mais contundentes história sobre racismo que eu já escutei. Não por ser um relato espetacular, como um massacre promovido pela KKK, ou o relato desumano e degradante da época da escravidão, mas por ser banal, algo que passa ao nosso lado todos os dias sem que possamos perceber.

Trata-se de uma situação corriqueira nas grandes cidades. Quem a contou para mim morava em um apartamento no primeiro andar de um edifício, com seu namorado e sua mãe. O edifício ficava incrustado em um grande condomínio habitacional da minha cidade. A mãe era aposentada, o namorado sargento da polícia militar e ela professora.

No meio da madrugada o namorado se acorda com um som estranho vindo da sala e silenciosamente se levanta para ver se o gato estava fazendo alguma farra noturna. Infelizmente não era um felino com insônia, mas um assaltante que havia invadido o pequeno apartamento e se ocupava em roubar pequenos objetos do apartamento.

Por ser um homem forte, treinado como policial militar para o combate, atirou-se sobre o invasor e tentou segurar seus braços, sendo rechaçado de imediato pelo ladrão, que era igualmente bastante forte. Diante do confronto inesperado o ladrão resolve bater em disparada, saindo pela mesma sacada por onde havia entrado.

Ao ver o meliante se projetar pela porta entreaberta da sacada o jovem correu até o quarto e pegou a arma de serviço que estava repousando sobre o criado mudo. Segurou a pistola com a mão firme e correu para a porta para iniciar a perseguição quando sentiu um corpo projetar-se sobre si aos gritos.

Não, não era o assaltante que voltava. Era a namorada, minha paciente, que aos prantos pedia que parasse.

“Preciso alcançá-lo. É minha obrigação. Sou um policial!!! Por que deveria parar? Por que deveria ficar aqui, acovardado?”

“Porque você é negro!!”, gritou ela em desespero. 

“Você é negro, negro, não percebe?, continuou ela. Você está de camiseta e calção, e estamos no meio da madrugada. Se você sair atrás de um ladrão com uma arma e encontrar o policial da ronda em quem você acha que ele vai atirar? Quem vai parecer sendo o assaltante? Quem tem cara de ladrão, de bandido? Até mostrar sua carteira de policial já poderá estar morto.”

Um breve silêncio se seguiu entrecortado pelos soluços da namorada que ainda o prendia com o corpo. Ele a abraçou mais forte e deixou a arma afrouxar em sua mão.

Nunca havia percebido de forma tão dura a dor de ser negro. Ela tinha razão, pois nesta sociedade de castas um negro armado de madrugada só pode estar do lado do crime. Ambos choraram a dor da impotência e a tristeza de ver que a cor da pele ainda nos separa de uma forma cruel, ainda mais quando invisível.

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